O MÉTODO PSICANALÍTICO DE FREUD



O singular método psicoterápico que Freud pratica edesigna de psicanálise é proveniente
do chamado procedimento catártico, sobre o qual eleforneceu as devidas informações nos
Estudos sobre a Histeria, de 1895, escritos em colaboração com Joseph Breuer. A terapia catártica
foi uma descoberta de Breuer, que, cerca de dez anos antes, curara com sua ajuda uma paciente
histérica e obtivera, nesse processo, uma compreensão da patogênese de seus sintomas. Graças
a uma sugestão pessoal de Breuer, Freud retomou o procedimento e o pôs à prova num número
maior de enfermos.

 
O procedimento catártico pressupunha que o pacientefosse hipnotizável e se baseava na
ampliação da consciência que ocorre na hipnose. Tinha por alvo a eliminação dos sintomas
patológicos e chegava a isso levando o paciente a retroceder ao estado psíquico em que o sintoma
surgira pela primeira vez. Feito isso, emergiam no doente hipnotizado lembranças, pensamentos e
impulsos até então excluídos de sua consciência; e  mal ele comunicava ao médico esses seus
processos anímicos, em meio a intensas expressões afetivas, o sintoma era superado e se impedia
seu retorno. Os dois autores, em seu trabalho conjunto, explicaram essa experiência regularmente
repetida, afirmando que o sintoma toma o lugar de processos psíquicos suprimidos que não
chegam à consciência, ou seja, que ele representa uma transformação (“conversão”) de tais
processos. A eficácia terapêutica de seu procedimento foi explicada em função da descarga do
afeto, até ali como que “estrangulado”, preso às ações anímicas suprimidas (“ab-reação”). Mas
esse esquema simples da intervenção terapêutica complicava-se em quase todos os casos, pois
viu-se que participavam da gênese do sintoma, não uma única impressão (“traumática”), porém, na
maioria dos casos, uma série delas, difícil de abarcar.

 
Assim, a principal característica do método catártico, em contraste com todos os outros
procedimentos da psicoterapia, reside em que, nele,a eficácia terapêutica não se transfere para
uma proibição médica veiculada por sugestão. Espera-se, antes, que os sintomas desapareçam
por si, tão logo a intervenção, baseada em certas premissas sobre o mecanismo psíquico, tenha
êxito em fazer com que os processos anímicos passempara um curso diferente do que até então
desembocava na formação do sintoma.


As alterações que Freud introduziu no metódo catártico de Breuer foram, a princípio,
mudanças da técnica; estas, porém, levaram a novos  resultados e, em seguida, exigiram uma
concepção diferente do trabalho terapêutico, emboranão contraditória à anterior.

 
O método catártico já havia renunciado à sugestão,  e Freud deu o passo seguinte,
abandonando também a hipnose. Atualmente, trata seus enfermos da seguinte maneira: sem
exercer nenhum outro tipo de influência, convida-osa se deitarem de costas num sofá,
comodamente, enquanto ele próprio senta-se numa cadeira por trás deles, fora de seu campo
visual. Tampouco exige que fechem os olhos e evita  qualquer contato, bem como qualquer outro
procedimento que possa fazer lembrar a hipnose. Assim a sessão prossegue como uma conversa
entre duas pessoas igualmente despertas, uma das quais é poupada de qualquer esforço muscular
e de qualquer impressão sensorial passível de distraí-la e de perturbar-lhe a concentração da
atenção em sua própria atividade anímica.


Como a hipnotizabilidade, por mais habilidoso que seja o médico, reside sabidamente no
arbítrio do paciente, e como um grande número de pessoas neuróticas não pode ser colocado em
estado de hipnose através de procedimento algum, ficou assegurada, através da renúncia à
hipnose, a aplicabilidade do método a um número irrestrito de enfermos. Por outro lado, perdeu-se
a ampliação da consciência que proporcionava ao médico justamente o material psíquico de
lembranças e representações com a ajuda do qual se  podia realizar a transformação dos sintomas
e a liberação dos afetos. Caso não fosse encontradonenhum substituto para essa perda, seria
impossível falar em alguma influência terapêutica.

 
Freud encontrou um substituto dessa ordem, plenamente satisfatório, nas associações dos
enfermos, ou seja, nos pensamentos involuntários - quase sempre sentidos como perturbadores e
por isso comumente postos de lado - que costumam cruzar a trama da exposição intencional.


Para apoderar-se dessas idéias incidentes, ele exorta os pacientes a se deixarem levar em
suas comunicações, “mais ou menos como se faz numa  conversa a esmo, passando de um
assunto a outro”. Antes de exortá-los a um relato pormenorizado de sua história clínica, ele os
instiga a dizerem tudo o que lhes passar pela cabeça, mesmo o que julgarem sem importância, ou
irrelevante, ou disparatado. Ao contrário, pede comespecial insistência que não excluam de suas
comunicações nenhum pensamento ou idéia pelo fato de serem embaraçosos ou penosos. No
empenho de compilar esse material costumeiramente desdenhado, Freud fez as observações que
se tornaram decisivas para toda a sua concepção. Jáno relato da história clínica surgem lacunas
na memória do doente, ou seja, esquecem-se acontecimentos reais, confundem-se as relações de
tempo ou se rompem as conexões causais, daí resultando efeitos incompreensíveis. Não há
nenhuma história clínica de neurose sem algum tipo  de amnésia. Quando o paciente é instado a
preencher essas lacunas de sua memória através de um trabalho redobrado de atenção, verifica-se
que as idéias que lhe ocorrem a esse respeito são repelidas por ele com todos os recursos da
crítica, até que ele sente um franco mal-estar quando a lembrança realmente se instala. Dessa
experiência Freud concluiu que as amnésias são o resultado de um processo ao qual ele chama
recalcamentoe cuja motivação é identificada no sentido de desprazer. As forças psíquicas que
deram origem a esse recalcamento estariam, segundo  ele, na  resistênciaque se opõe à
restauração [das lembranças].

 
O fator da resistência tornou-se um dos fundamentosde sua teoria. Quanto às idéias
postas de lado sob toda sorte de pretextos (como asenumeradas na fórmula acima), Freud as
encara como derivados das formações psíquicas recalcadas (pensamentos e moções), como
deturpações delas provocadas pela resistência a suareprodução.


Quanto maior a resistência, mais profusa é essa distorção. O valor das idéias
inintencionais para a técnica terapêutica reside nessa relação delas com o material psíquico
recalcado. Quando se dispõe de um procedimento que  permite avançar das associações até o
recalcado, das distorções até o distorcido, pode-setambém tornar acessível à consciência o que
era antes inconsciente na vida anímica, mesmo sem ahipnose.

 
Com base nisso, Freud desenvolveu uma arte de  interpretaçãoà qual compete a tarefa,
por assim dizer, de extrair do minério bruto das associações inintencionais o metal puro dos
pensamentos recalcados. São objeto desse trabalho interpretativo não apenas as idéias que
ocorrem ao doente, mas também seus sonhos, que abrem a via de acesso mais direta para o
conhecimento do inconsciente, suas ações inintencionais e desprovidas de planos (atos
sintomáticos), e os erros que ele comete na vida cotidiana (lapsos da fala, equívocos na ação etc.).
Os detalhes dessa técnica de interpretação ou tradução ainda não foram publicados por Freud.
Segundo suas indicações, trata-se de uma série de regras empiricamente adquiridas para construir
o material inconsciente a partir das ocorrências deidéias, de instituições sobre como é preciso
entender a situação em que deixam de ocorrer idéiasao paciente, e de experiências sobre as
resistências típicas mais importantes que surgem nodecorrer desses tratamentos. Um volumoso
livro sobre  A Interpretação dos Sonhos, publicado por Freud em 1900, deve ser visto como  o
precursor de tal introdução à técnica.


Dessas indicações sobre a técnica do método psicanalítico poder-se-ia concluir que seu
inventor deu-se um trabalho desnecessário e fez malem abandonar o procedimento hipnótico,
menos complicado. De um lado, porém, a técnica da psicanálise, uma vez aprendida, é muito mais
fácil de praticar do que indicaria qualquer descrição dela, e de outro, nenhum caminho alternativo
leva à meta desejada, donde o caminho trabalhoso é  ainda o mais curto. A hipnose é censurável
por ocultar a resistência e por ter assim impedido  ao médico o conhecimento do jogo das forças
psíquicas. E não elimina a resistência; apenas a evade, com o que fornece tão-somente dados
incompletos e resultados passageiros.

 
A tarefa que o método psicanalítico se empenha em resolver pode expressar-se em
diferentes fórmulas, que em essência, no entanto, são equivalentes. Pode-se dizer: a tarefa do
tratamento é eliminar as amnésias. Preenchidas todas as lacunas da memória, esclarecidos todos
os efeitos enigmáticos da vida psíquica, tornam-se  impossíveis a continuação e mesmo a
reprodução da doença. Pode-se ainda conceber a condição para isso da seguinte maneira: todos
os recalcamentos devem ser desfeitos; o estado psíquico passa então a ser idêntico àquele em
que todas as amnésias foram preenchidas. De alcanceainda maior é outra formulação: trata-se de
tornar o inconsciente acessível à consciência, o que se consegue mediante a superação das
resistências. Mas não se deve esquecer que tal estado tampouco se apresenta no ser humano
normal, e que só raramente fica-se em condições de  levar o tratamento a um ponto que se
aproxime disso. Assim como a saúde e a doença não se diferenciam em princípio, estando apenas
separadas por fronteiras quantitativas determináveis na prática, não se pode estabelecer como
meta de tratamento outra coisa senão o restabelecimento prático do enfermo, a restauração de sua
capacidade de rendimento e de gozo. Num tratamento  incompleto ou havendo um resultado
imperfeito, obtém-se sobretudo uma significativa melhora do estado psíquico geral, enquanto os
sintomas, embora com uma importância diminuída parao paciente, podem persistir, sem que a
pessoa seja rotulada de enferma.


O procedimento terapêutico, abstraídas algumas modificações insignificantes, mantém-se
o mesmo para todos os quadros sintomáticos da histeria, com suas múltiplas formas, e para todas
as configurações da neurose obsessiva. Mas isso nãoimplica que sua aplicabilidade seja irrestrita.
A natureza do método psicanalítico envolve indicações e contra-indicações, tanto em relação às
pessoas a serem tratadas quanto com respeito ao quadro patológico. Os mais favoráveis para
psicanálise são os casos crônicos de psiconeurose com poucos sintomas violentos ou perigosos, e
portanto, em primeiro lugar, todas as espécies de neurose obsessiva, pensamento e ação
obsessivos, e os casos de histeria em que as fobiase abulias desempenham o papel principal; e
ainda todas as expressões somáticas da histeria, desde que a pronta eliminação dos sintomas não
seja a tarefa primordial do médico, como na anorexia. Nos casos agudos de histeria, é preciso
aguardar a chegada de uma fase mais calma; em todosos casos em que o esgotamento nervoso
domina o quadro clínico, deve-se evitar um procedimento que por si só requer esforço, traz apenas
progressos lentos e, por algum tempo, não pode levar em consideração a persistência dos
sintomas.

 
Para que uma pessoa se submeta com proveito a psicanálise, são muitos os requisitos
exigidos. Em primeiro lugar, ela deve ser capaz de  um estado psíquico normal; durante os
períodos de confusão ou de depressão melancólica, não se consegue nada nem mesmo num caso
de histeria. Cabe ainda exigir dela certo grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético;
com pessoas sem nenhum valor, o médico logo perde ointeresse que lhe permite aprofundar-se
na vida anímica do doente. As malformações de caráter acentuadas, traços de uma constituição
realmente degenerada, externam-se no tratamento como fontes de uma resistência difícil de
superar. Nesse aspecto, a constituição estabelece um limite geral para a capacidade curativa da
psicoterapia. Também a faixa etária próxima dos cinqüenta anos cria condições desfavoráveis para
a psicanálise. Nesse caso, já não é possível dominar a massa do material psíquico, o tempo
exigido para a cura torna-se longo demais e a capacidade para desfazer processos psíquicos
começa a enfraquecer.


Apesar de todas essas limitações, é extraordinariamente grande o número de pessoas
aptas para a psicanálise, e a extensão trazida a nossos poderes terapêuticos por esse
procedimento é, segundo Freud, muito considerável.  Para um tratamento eficaz, Freud requer
períodos longos, de seis meses a três anos; contudo, informa que até agora, em vista de diversas
circunstâncias fáceis de imaginar, só esteve em condições de testar seu tratamento, na maioria
das vezes, em casos muito graves: em pessoas enfermas desde longa data e totalmente
incapacidadas, que, frustradas por toda sorte de tratamentos, foram buscar como que um último
recurso em seu procedimento novo e recebido com muitas dúvidas. Nos casos de doença mais
branda, a duração do tratamento poderia encurtar-semuito, obtendo-se em ganho extraordinário
em termos de prevenção para o futuro.




NOTA DO EDITOR INGLÊS

“DIE FREUDSCHE PSYCHOANALYTISCHE METHODE”

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:
(1903 Data provável de redação.)
1904 Em L. Loewenfeld,  Die psychischen Zwangserscheinungen, 545-551
(Wiesbaden: Bergmann).
1906 S.K.S.N. I, 218-224. (1911, 2ª ed., 213-219; 1920, 3ª ed.;1922, 4ª ed.)
1924 Technick und Metapsychol., 3-10.
1925  G.S., 6, 3-10.
1942  G.W., 5, 3-10

(b)TRADUÇÃO INGLESA:
“Freud’s Psycho-Analytic Method”
1924  C.P., 1, 264-271. (Trad. de J. Bernays.)


Esta tradução [inglesa], com um novo título, “Freud’s Psycho-Analytic Procedure”, é uma
versão consideravelmente alterada da que se publicou em 1924.


O livro de Loewenfeld sobre os fenômenos obsessivos, para o qual esse artigo constituiu
originalmente uma contribuição, é mencionado por Freud em seu caso clínico do “Homem dos
Ratos” (1909d, nota de rodapé no início da Parte II) como o “manual padrão” sobre a neurose
obsessiva. Loewenfeld esclarece ter convencido Freud a fazer essa contribuição em vista das
grandes modificações por que passara sua técnica desde que fora descrita nos  Estudos sobre a
Histeria(1895d). O prefácio de Loewenfeld traz a data de “novembro de 1903”, sendo portanto
presumível que o artigo de Freud tenha sido redigido naquele mesmo ano, um pouco mais cedo.


Essa exposição mostra que o único vestígio remanescente do método hipnótico original
era a solicitação de Freud de que o paciente se deitasse. Quanto aos aspectos externos, sua
técnica permaneceu inalterada desde então. O livro  de Loewenfeld foi resenhado pelo próprio
Freud, conforme a descoberta do Prof. Saul Rosenzweig, da Universidade Washington, em St.
Louis. A resenha foi publicada no  Journal für Psychologie und Neurologie, 3 (1904), pp. 190-1.
(Freud, 1904f.)