O Caso Dora



Um caso de histeria.


VOLUME VII
(1901-1905)
Dr. Sigmund Freud
FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA (1905[1901])
NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)
BRUCHSTÜCK EINER HYSTERIE-ANALYSE

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1901 24 de jan. Conclusão do primeiro manuscrito sob o título de “Traum und
Hysterie” [“Sonhos e Histeria”].)
1905 Mschr. Psychiat. Neurol., 18 (4 e 5), out. e nov., 285-310 e 408-467
1909 S.K.S.N., II, 1-110. (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S., 8, 3-126.
1932 Vier Krankengeschichten, 5-141.
1942 G.W., 5, 163-286.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria’
1925 C.P., 3, 13- 146. (Tr. Alix e James Strachey.)

A presente tradução inglesa é uma versão corrigida da que foi publicada em 1925.

Embora este caso clínico só tenha sido publicado em outubro e novembro de 1905, sua
maior parte foi escrita em janeiro de 1901. A descoberta das cartas de Freud a Wilhelm Fliess
(Freud, 1950a) proporcionou-nos um grande número de evidências contemporâneas sobre o
assunto.



Em 14 de outubro de 1900 (Carta 139), Freud diz a Fliess que começara pouco antes a
tratar de uma nova paciente, “uma jovem de dezoito  anos”. Esta moça era evidentemente “Dora”,
e, como sabemos pelo próprio caso clínico (ver em [1]), seu tratamento terminou cerca de três
meses depois, em 31 de dezembro. Durante todo aquele outono Freud estivera dedicado a sua
Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana(1901b) e, em 10 de janeiro, ele escreve (numa carta
não publicada) que está simultaneamente empenhado em dois trabalhos:  A Vida Cotidiana e
“Sonhos e Histeria, Fragmento de uma Análise”, que,como nos diz seu prefácio (ver em [1]), era o
título original do presente trabalho. Em 25 de janeiro (Carta 140) ele escreve: “ ‘Sonhos e Histeria’
foi concluído ontem. É um fragmento de análise de um caso de histeria em que as explicações se
agrupam em torno de dois sonhos. Portanto, é, na realidade, uma continuação do livro sobre os
sonhos. [A Interpretação dos Sonhos(1900a) fora publicada um ano antes.] Contém ainda
resoluções de sintomas históricos e considerações sobre a base sexual-orgânica de toda a
enfermidade. De qualquer forma, é a coisa mais sutil que já escrevi, e produzirá um efeito ainda
mais aterrador que de hábito. Cumpre-se com o próprio dever, entretanto, e o que se escreve não
é para um presente fugaz. O trabalho já foi aceito  por Ziehen.” Este era co-editor, com  Wernicke,
do Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie, no qual o trabalho veio finalmente a aparecer.
Alguns dias depois, em 30 de janeiro (Carta 141), Freud continua: “Espero que você não se
decepcione com ‘Sonhos e Histeria’. Seu interesse principal continua sendo a psicologia - uma
estimativa da importância dos sonhos e uma descrição de algumas das peculiaridades do
pensamento inconsciente. Há apenas vislumbres do orgânico - as zonas erógenas e a
bissexualidade. Mas ele [o orgânico] é claramente mencionado e reconhecido, ficando aberto o
caminho para seu exame exaustivo em outra oportunidade. Trata-se de uma histeria com  tussis
nervosae afonia, cujas origens podem ser encontradas nas  características de uma chupadora de
dedo; e o papel principal nos processos psíquicos em conflito é desempenhado pela oposição
entre uma atração pelos homens e outra pelas mulheres.” Esses excertos mostram como este
trabalho forma um elo entre A  Interpretação dos Sonhose os  Três Ensaios. O primeiro é seu
antecedente, e o segundo, sua conseqüência.


Em 15 de fevereiro (Carta 142), Freud anuncia a Fliess que  Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidianaestará terminado em poucos dias e que então as duas obras ficarão prontas para
ser corrigidas e enviadas aos editores. Mas, na verdade, a história dessas obras foi muito diferente.
Em 8 de maio (Carta 143), Freud já está revendo as primeiras provas de Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana(que foi devidamente publicada nas edições de julho e agosto do  Monatsschrift),
mas esclarece, agora, que ainda não se decidiu a publicar o caso clínico. Em 9 de junho, todavia
(em outra carta não publicada), ele anuncia que “ ‘Sonhos e Histeria’ foi despachado e enfrentará o
olhar estarrecido do público no outono”. Não temos  informações sobre como Freud veio
novamente a mudar de idéia e postergou a publicaçãopor mais quatro anos. Em sua biografia de
Freud, o Dr. Ernest Jones informa (Volume 2, p. 286) que a primeira revista para a qual o caso
clínico foi enviado foi  Journal für Psychologie und Neurologie. Seu editor, Brodmann, desistiu de
publicá-lo, aparentemente por considerá-lo uma quebra do sigilo profissional.


Não há meio de determinar até que ponto Freud revisou o trabalho antes de sua
publicação final em 1905. Todas as evidências internas, contudo, sugerem que ele o alterou muito
pouco. A última seção do “Posfácio” (ver em [1] e [2]) foi certamente acrescentada, assim como
algumas passagens, pelo menos nas “Notas Preliminares”, e certas notas de rodapé. Salvo esses
pequenos acréscimos, porém, é lícito considerar queo ensaio representa os métodos técnicos e as
concepções teóricas de Freud no período imediatamente posterior à publicação de A Interpretação
dos Sonhos. Talvez pareça surpreendente que sua teoria da sexualidade tivesse alcançado tal
ponto de desenvolvimento tantos anos antes da publicação dos Três Ensaios(1905d), que de fato
apareceram quase simultaneamente a este trabalho. Mas nota de rodapé da p. 55 corrobora
explicitamente o fato. Além disso, os leitores da correspondência com Fliess hão de estar cientes
de que grande parte desta teoria já existia em época ainda anterior. Para citar apenas um exemplo,
o dito de Freud no sentido de que as psiconeuroses  são o “negativo” das perversões (ver em [1])
ocorre com palavras quase idênticas numa carta a Fliess de 24 de janeiro de 1897 (Carta 57).
Mesmo antes dessa época, já houvera uma alusão a essa idéia numa carta de 12 de dezembro de
1896 (Carta 52), que também introduz a noção de “zonas erógenas” e prenuncia a teoria das
“pulsões parciais”.


É curioso que por quatro vezes, em seus escritos posteriores, Freud situe seu tratamento
de “Dora” no ano errado - 1899, ao invés de 1900. Oengano ocorre duas vezes na primeira seção
de sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d) e é repetido duas vezes na nota de rodapé
que ele acrescentou ao caso clínico em 1923 (ver em[1]). Não há nenhuma dúvida de que o
outono de 1900 foi a data correta, já que, além dasevidências externas citadas acima, essa data é
claramente fixada pelo “1902” estampado ao final dopróprio trabalho (ver em [1]).


O seguinte resumo cronológico, baseado nos dados fornecidos no relato do caso clínico,
talvez facilite ao leitor acompanhar os acontecimentos da narrativa:

1882 Nascimento de Dora.
1888 (Et. 6) Pai tuberculoso. Família muda-se para B
1889 (Et. 7) Enurese noturna.
1890 (Et. 8) Dispnéia.
1892 (Et. 10) Deslocamento da retina do pai.
1894 (Et. 12) Crise confusional do pai. Visita dele a Freud. Enxaqueca e tosse nervosa.
1896 (Et. 14) Cena do beijo.
1898 (Et. 16) (Princípios do verão:) Primeira visita de Dora a Freud. (Fins de junho:) Cena
junto ao lago. (Inverno:) Morte da tia. Dora em Viena.
1899 (Et. 17) (Março:) Apendicite. (Outono:) A família deixa B e se muda para a cidade
onde ficava a fábrica.
1900 (Et. 18) A família se muda para Viena. Ameaça de suicídio. (Outubro a dezembro:)
Tratamento com Freud.
1901 (Janeiro:) Redação do caso clínico.
1902 (Abril:) Última visita de Dora aFreud.
1905 Publicação do caso clínico.

 
NOTAS PRELIMINARES

Em 1895 e 1896 formulei algumas teses sobre a patogênese dos sintomas histéricos e
sobre os processos psíquicos que ocorrem na histeria. E agora que, passados muitos anos,
proponho-me fundamentá-las mediante o relato pormenorizado de um caso clínico e de seu
tratamento, não posso furtar-me a algumas observações preliminares, com o propósito, em parte,
de justificar por vários ângulos meu procedimento e, em parte, de reduzir a proporções moderadas
as expectativas que isso possa despertar.


Foi sem dúvida incômodo para mim ter de publicar osresultados de minhas investigações,
aliás de natureza surpreendente e pouco gratificante, sem que meus colegas tivessem
possibilidade de testá-los e verificá-los. Não menos embaraçoso, porém, é começar agora a expor
ao juízo público parte do material em que se basearam aqueles resultados. Não deixarei de ser
censurado por isso. Só que, se antes fui acusado denão comunicar nada sobre meus pacientes,
agora dirão que forneço sobre eles informações que  não deveriam ser comunicadas. Espero
apenas que sejam as mesmas pessoas a mudarem assim de pretexto para suas censuras e, desse
modo, renuncio antecipadamente a qualquer possibilidade de algum dia eliminar suas objeções.


Contudo, mesmo que eu não dê importância a esses críticos estreitos e malévolos, a
publicação de meus casos clínicos continua a ser para mim um problema de difícil solução. As
dificuldades são, em parte, de natureza técnica, mas em parte se devem à índole das próprias
circunstâncias. Se é verdade que a causação das enfermidades histéricas se encontra nas
intimidades da vida psicossexual dos pacientes, e que os sintomas histéricos são a expressão de
seus mais secretos desejos recalcados, a elucidaçãocompleta de um caso de histeria estará
fadada a revelar essas intimidades e denunciar esses segredos. É certo que os doentes nunca
falariam se lhes ocorresse que suas confissões teriam a possibilidade de ser utilizadas
cientificamente, e é igualmente certo que seria totalmente inútil pedir-lhes que eles mesmos
autorizassem a publicação do caso. Nessas circunstâncias, as pessoas delicadas, bem como as
meramente tímidas, dariam primazia ao dever do sigilo médico e lamentariam não poder prestar
nenhum esclarecimento à ciência. Em minha opinião, entretanto, o médico assume deveres não só
em relação a cada paciente, mas também em relação àciência; seus deveres para com a ciência,
em última análise, não significam outra coisa senãoseus deveres para com os muitos outros
pacientes que sofrem ou sofrerão um dia do mesmo mal. Assim, a comunicação do que se acredita
saber sobre a causação e a estrutura da histeria converte-se num dever, e é uma vergonhosa
covardia omiti-la quando se pode evitar um dano pessoal direto ao paciente em questão. Creio ter
feito tudo para impedir que minha paciente sofra qualquer dano dessa ordem. Escolhi uma pessoa
cujas peripécias não tiveram Viena por cenário, masantes uma cidadezinha distante de província,
e cujas circunstâncias pessoais devem, portanto, ser praticamente desconhecidas em Viena.
Desde o início, guardei com tal cuidado o sigilo dotratamento que apenas outro colega médico,
digno de minha total confiança, pode saber que essamoça foi minha paciente. Desde o término do
tratamento, esperei ainda quatro anos para sua publicação, até tomar conhecimento de que na
vida da paciente sobreveio uma modificação de tal ordem que me permite supor que seu próprio
interesse nos acontecimentos e processos anímicos aserem aqui relatados terá desaparecido.
Como é evidente, não conservei nenhum nome que pudesse colocar na pista algum leitor dos
círculos leigos; além disso, a publicação do caso numa revista especializada e estritamente
científica servirá como garantia contra esses leitores não habilitados. Naturalmente, não posso
impedir que a própria paciente sofra uma impressão  penosa, caso a história de sua própria doença
venha a cair acidentalmente em suas mãos. Mas ela não saberá por este relato nada de que já não
tenha conhecimento, e poderá perguntar a si mesma quem, além dela, poderia descobrir que é ela
o objeto deste trabalho.


Sei que existem - ao menos nesta cidade - muitos médicos que (por revoltante que possa
parecer) preferem ler um caso clínico como este, não como uma contribuição à psicopatologia das
neuroses, mas como um roman  à clefdestinado a seu deleite particular. A esse gênero de leitores
posso assegurar que todos os casos clínicos que eu  venha a publicar no futuro serão protegidos
contra sua perspicácia por garantias semelhantes desigilo, muito embora este propósito imponha
restrições extraordinárias a minha disponibilidade do material.


Nesta história clínica - a única que até agora consegui fazer romper as limitações impostas
pelo sigilo médico e por circunstâncias desfavoráveis - os aspectos sexuais são discutidos com
toda a franqueza possível, os órgãos e funções da vida sexual são chamados por seus nomes
exatos, e o leitor pudico poderá convencer-se, por  minha descrição, de que não hesitei em
conversar sobre tais assuntos nessa linguagem mesmocom uma jovem. Acaso devo defender-me
também dessa censura? Reclamei para mim simplesmente os direitos do ginecologista - ou
melhor, direitos muito mais modestos - e acrescentarei que seria um sinal de singular e perversa
lascívia supor que essas conversas possam ser um bom meio para excitar ou satisfazer os apetites
sexuais. De resto, sinto-me inclinado a expressar minha opinião a esse respeito com algumas
palavras tomadas de empréstimo.


“É deplorável ter de dar lugar a tais protestos e declarações num trabalho científico, mas
que ninguém recrimine a mim por isso; acuse-se, antes, o espírito da época, em virtude do qual
chegamos a um estado de coisas em que nenhum livro  sério pode estar seguro de sobreviver.”
(Schmidt, 1902, Prefácio).


Passo agora a comunicar o modo como superei as dificuldades técnicas da elaboração do
relatório deste caso clínico. Essas dificuldades são muito consideráveis para o médico que tem de
realizar cotidianamente seis ou oito desses tratamentos psicoterapêuticos e não pode tomar notas
durante a própria sessão com o paciente, pois isso despertaria a desconfiança dele e perturbaria a
apreensão do material a ser recebido por parte do médico. Além disso, ainda é para mim um
problema não resolvido o modo como devo registrar para publicação a história de um tratamento
mais prolongado. No presente caso, duas circunstâncias vieram em meu auxílio: primeiro, a
duração do tratamento não ultrapassou três meses, esegundo, os esclarecimentos do caso se
agruparam em torno de dois sonhos (um relatado no meio do tratamento e outro no fim) cujo
enunciado foi registrado imediatamente após a sessão, assim proporcionando um ponto de apoio
seguro para a teia de interpretações e lembranças deles decorrente. Quanto à própria história
clínica, só a redigi de memória após terminado o tratamento, enquanto minha lembrança do caso
ainda estava fresca e aguçada por meu interesse em  sua publicação. Por isso o registro não é
absolutamente - fonograficamente - fiel, mas pode-se atribuir-lhe alto grau de fidedignidade. Nada
de essencial foi alterado nele, embora em vários trechos, para maior coerência expositiva, a
seqüência das explicações tenha sido modificada.


Passo agora a salientar o que será encontrado nesterelato e o que falta nele. O trabalho
levava originalmente o título de “Sonhos e Histeria”, que me parecia peculiarmente apto a mostrar
como a interpretação dos sonhos se entrelaça na história de um tratamento e como, com sua
ajuda, podem preencher-se as amnésias e elucidarem-se os sintomas. Não foi sem boas razões
que, no ano de 1910, dei a um laborioso e exaustivoestudo sobre o sonho (A Interpretação dos
Sonhos) precedência sobre as publicações que tencionava fazer acerca da psicologia das
neuroses. Aliás, pude verificar por sua acolhida quão insuficiente é o grau de compreensão com
que tais esforços são ainda hoje recebidos pelos colegas. E nesse caso, não era válida a objeção
de que o material em que eu baseara minhas assertivas fora retido, sendo, portanto, impossível
promover-se uma convicção de sua veracidade fundamentada em verificações. Ocorre que
qualquer um pode submeter seus próprios sonhos ao exame analítico, e a técnica de interpretação
dos sonhos é facilmente assimilável pelas instruções e exemplos que ali forneci. Hoje, como
naquela época, devo insistir em que o aprofundamento nos problemas do sonho é um pré-requisito
indispensável para a compreensão dos processos psíquicos da histeria e das outras
psiconeuroses, e que ninguém que pretenda furtar-sea esse trabalho preparatório tem a menor
perspectiva de avançar um único passo nesse campo. Portanto, como este caso clínico pressupõe
o conhecimento da interpretação dos sonhos, sua leitura parecerá extremamente insatisfatória
àqueles que não atenderem a esse pressuposto. Em vez do esclarecimento buscado, eles só
encontrarão motivos de perplexidade nestas páginas,e certamente se inclinarão a projetar a causa
dessa perplexidade no autor e a declará-lo fantasioso. Na realidade, essa perplexidade está ligada
aos fenômenos da própria neurose; sua presença ali só é ocultada por nossa familiaridade médica
com os fatos, e ressurge a cada tentativa de explicá-los. Só seria possível eliminá-la por completo
se conseguíssemos rastrear cada elemento da neuroseaté fatores com que já estivéssemos
familiarizados. Mas tudo indica, ao contrário, que  seremos levados pelo estudo das neuroses a
fazer muitas novas suposições, que depois se converterão pouco a pouco em objeto de um
conhecimento mais seguro. O novo sempre despertou perplexidade e resistência.


Todavia, seria errôneo supor que os sonhos e sua interpretação ocupam em todas as
psicanálises uma posição tão destacada quanto nesteexemplo.


Se o presente caso clínico parece tão privilegiado  no que tange à utilização dos sonhos,
em outros aspectos se revelou mais precário do que  eu teria desejado. Mas suas deficiências
prendem-se justamente às circunstâncias que possibilitaram sua publicação. Como já disse, eu
não teria sabido como lidar com o material do relato de um tratamento que se tivesse estendido por
um ano inteiro. Este relato, que cobre apenas três  meses, pôde ser rememorado e revisto, mas
seus resultados permanecem incompletos em mais de um aspecto. O tratamento não prosseguiu
até alcançar a meta prevista, tendo sido interrompido por vontade da própria paciente depois de
chegar a certo ponto. Nessa ocasião, alguns dos enigmas do caso não tinham sequer sido
abordados, e outros se haviam esclarecido de maneira incompleta, ao passo que, se o trabalho
tivesse prosseguido, teríamos sem dúvida avançado em todos os pontos até o mais completo
esclarecimento possível. Assim só posso oferecer aqui um fragmento de análise.


Os leitores familiarizados com a técnica de análiseexposta nos  Estudos sobre a Histeria
[Breuer e Freud, 1895] talvez fiquem surpresos por não ter sido possível, em três meses, encontrar
uma solução completa ao menos para os sintomas abordados. Isso se tornará compreensível
mediante minha explicação de que, desde os  Estudos, a técnica psicanalítica sofreu uma
revolução radical. Naquela época, o trabalho [de análise] partia dos sintomas e visava a esclarecê-los um após outro. Desde então, abandonei essa técnica por achá-la totalmente inadequada para
lidar com a estrutura mais fina da neurose. Agora deixo que o próprio paciente determine o tema
do trabalho cotidiano, e assim parto da superfície  que seu inconsciente ofereça a sua atenção
naquele momento. Mas desse modo, tudo o que se relaciona com a solução de determinado
sintoma emerge em fragmentos, entremeado com várioscontextos e distribuído por épocas
amplamente dispersas. Apesar dessa aparente desvantagem, a nova técnica é muito superior à
antiga, e é incontestavelmente a única possível.


Ante o caráter incompleto de meus resultados analíticos, não me restou senão seguir o
exemplo daqueles descobridores que têm a felicidadede trazer à luz do dia, após longo
sepultamento, as inestimáveis embora mutiladas relíquias da antigüidade. Restaurei o que faltava
segundo os melhores modelos que me eram conhecidos  de outras análises, mas, como um
arqueólogo consciencioso, não deixei de assinalar em cada caso o ponto onde minha construção
se superpõe ao que é autêntico.


Há outra espécie de deficiência que eu mesmo introduzi intencionalmente. É que, em
geral, não reproduzi o trabalho interpretativo a que as associações e comunicações da paciente
tiveram de ser submetidas, expondo apenas seus resultados. À parte os sonhos, portanto, a
técnica do trabalho analítico só foi revelada em muito poucos pontos. Ocorre que meu objetivo
neste caso clínico era demonstrar a estrutura íntima da doença neurótica e o determinismo de seus
sintomas; só levaria a uma inextricável confusão seeu tentasse, ao mesmo tempo, cumprir
também a outra tarefa. Para a fundamentação das regras técnicas, a maioria das quais foi
descoberta de maneira empírica, seria preciso coligir material de muitos casos clínicos. Contudo,
não se deve imaginar que foi particularmente grandea abreviação produzida pela omissão da
técnica neste caso. Justamente a parte mais difícildo trabalho técnico nunca entrou em jogo com
essa paciente, pois o fator da “transferência”, considerado no final do caso clínico (ver a partir de
[1]), não foi abordado durante o curto tratamento.


De uma terceira espécie de deficiência neste relato, nem a paciente nem o autor têm
culpa. Ao contrário, é óbvio que um único caso clínico, ainda que fosse completo e não desse
margem a nenhuma dúvida, não poderia dar resposta atodas as questões levantadas pelo
problema da histeria. Não pode dar-nos conhecimentode todos os tipos dessa doença, nem de
todas as formas da estrutura interna da neurose, nem de todas as espécies possíveis de relação
entre o psíquico e o somático encontradas na histeria. Não é justo esperar de um único caso mais
do que ele pode oferecer. E quanto aos que até agora não quiseram acreditar na validade
universal e sem exceções da etiologia psicossexual  da histeria, eles dificilmente ficarão
convencidos disso tomando conhecimento de um único  caso clínico. Melhor fariam em adiar seu
julgamento até adquirirem por seu próprio trabalho o direito de ter uma convicção.


 
O QUADRO CLÍNICO

Tendo demonstrado  em A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, que os sonhos
em geral podem ser interpretados e que, uma vez concluído o trabalho de interpretação, podem
ser substituídos por pensamentos impecavelmente construídos, passíveis de ser inseridos num
ponto reconhecível no encadeamento anímico, gostaria de dar nas páginas seguintes um exemplo
da única aplicação prática que a arte de interpretar sonhos parece admitir. Já mencionei em meu
livrocomo foi que deparei com o problema dos sonhos. Encontrei-o em meu caminho quando me
empenhava em curar as psiconeuroses por meio de determinado método psicoterapêutico, pois,
entre outros eventos de sua vida anímica, meus pacientes também me contavam sonhos que
pareciam reclamar inserção na longa trama de relações tecida entre um sintoma da doença e uma
idéia patogênica. Nessa época, aprendi a traduzir alinguagem dos sonhos em formas de
expressão de nossa própria linguagem do pensamento,compreensíveis sem maior auxílio. Esse
conhecimento, posso asseverar, é imprescindível para o psicanalista, pois o sonho é um dos
caminhos pelos quais pode aceder à consciência o material psíquico que, em virtude da oposição
criada por seu conteúdo, foi bloqueado da consciência, recalcado, e assim se tornou patogênico. O
sonho é, em suma, um dos  desvios por onde se pode fugir ao recalcamento, um dos principais
recursos do que se conhece como modo indireto de representação no psíquico. O presente
fragmento da história do tratamento de uma jovem histérica destina-se a mostrar de que forma a
interpretação dos sonhos se insere no trabalho de análise. Ao mesmo tempo, dar-me-á uma
primeira oportunidade de trazer a público, com extensão suficiente para evitar outros mal-
entendidos, parte de minhas concepções sobre os processos psíquicos e condições orgânicas da
histeria. Não mais preciso desculpar-me pela extensão, já que agora se admite que as severas
exigências que a histeria faz ao médico e ao investigador só podem ser satisfeitas pelo mais
dedicado aprofundamento, e não por uma atitude de superioridade e desprezo. Decerto,

Nicht Kunst und Wissenschaft allein,
Geduld will bei dem Werkesein!


Se eu começasse por apresentar um relato clínico integral e acabado, isso colocaria o
leitor em condições muito diferentes das do observador médico. As informações dos parentes do
enfermo - neste caso, do pai da moça de dezoito anos - em geral fornecem um quadro muito
desfigurado do curso da doença. Na verdade, começo  o tratamento solicitando que me seja
narrada toda a biografia do paciente e a história de sua doença, mas, ainda assim, as informações
que recebo nunca bastam para me orientar. Esse primeiro relato se compara a um rio não
navegável cujo leito é ora bloqueado por massas rochosas, ora dividido entre baixios e bancos de
areia. Não posso deixar de me surpreender com a maneira como os autores conseguem
apresentar relatos clínicos tão acabados e precisosdos casos de histeria. Na realidade, os
pacientes são incapazes de fornecer tais relatos a  seu próprio respeito. De fato, podem dar ao
médico muitas informações coerentes sobre este ou aquele período de suas vidas, mas logo se
segue outro período em relação ao qual suas comunicações escasseiam, deixando lacunas e
enigmas; e em outras ocasiões fica-se diante de novos períodos de total obscuridade, não
iluminados por urna única informação que tenha serventia. As ligações, inclusive as aparentes, são
em sua maioria desconexas, e a seqüência dos diferentes acontecimentos é incerta. Durante o
próprio relato, os pacientes corrigem repetidamenteum pormenor ou uma data, talvez para
retornar, depois de muita hesitação, a sua versão inicial. A incapacidade dos doentes desfazerem
uma exposição ordenada de sua biografia no que ela coincide com a história de sua doença não é
característica apenas da neurose, mas tem também grande importância teórica. Essa deficiência
tem os seguintes fundamentos: em primeiro lugar, ospacientes retêm consciente e
intencionalmente parte do que lhes é perfeitamente  conhecido e que deveriam contar, por não
terem ainda superado seus sentimentos de timidez e  vergonha (ou discrição, quando há outras
pessoas em jogo); esta seria a contribuição da falta  conscientede franqueza. Em segundo lugar,
parte do conhecimento amnésico de que o paciente dispõe em outras ocasiões não lhe ocorre
enquanto ele narra sua história, sem que ele tenha  nenhuma intenção de retê-la: é a contribuição
da insinceridade  inconsciente. Em terceiro lugar, nunca faltam as amnésias verdadeiras - lacunas
da memória em que caíram não apenas lembranças antigas como até mesmo recordações bem
recentes - e as ilusões de memória [paramnésias], formadas secundariamente para preencher
essas lacunas. Quando os fatos em si são guardados na memória, opropósito subjacente às
amnésias pode ser cumprido com igual segurança destruindo-se uma ligação, e a maneira mais
certa de desfazer uma ligação é alterar a ordem cronológica dos acontecimentos. Esta última
sempre se revela o elemento mais vulnerável do acervo da memória e o mais facilmente sujeito ao
recalcamento. Muitas lembranças são encontradas, por assim dizer, num primeiro estágio de
recalcamento, apresentando-se cercadas de dúvidas.  Decorrido algum tempo, essas dúvidas
seriam substituídas por um esquecimento ou por uma falsificação da memória.


A existência desse estado de coisas no tocante às lembranças ligadas à história da doença
é o  correlato necessário e teoricamente indispensável dos sintomas patológicos. Depois, no
decorrer do tratamento, o paciente fornece os fatosque, embora sempre fossem de seu
conhecimento, tinham sido retidos por ele ou não lhe haviam ocorrido. As ilusões de memória se
revelam insustentáveis e as lacunas são preenchidas. Só quando o tratamento se aproxima do seu
término é que temos diante de nós uma história clínica inteligível, coerente e sem lacunas. Se o
objetivo prático do tratamento é eliminar todos os  sintomas possíveis e substituí-los por
pensamentos conscientes, podemos considerar como segundo objetivo, de cunho teórico, reparar
todos os danos à memória do paciente. Esses dois objetivos são coincidentes: quando se alcança
um, também o outro é atingido; um mesmo caminho conduz a ambos.


Pela natureza das coisas que compõem o material da  psicanálise, compete-nos o dever,
em nossos casos clínicos, de prestar tanta atenção  às circunstâncias puramente humanas e
sociais dos enfermos quanto aos dados somáticos e aos sintomas patológicos. Acima de tudo,
nosso interesse se dirigirá para as circunstâncias  familiares do paciente - e isso, como se verá
mais adiante, não apenas com o objetivo de investigar a hereditariedade, mas também em função
de outros vínculos.


O círculo familiar de nossa paciente de dezoito anos incluía, além dela própria, seus pais e
um irmão um ano e meio mais velho que ela. O pai era a pessoa dominante desse círculo, tanto
por sua inteligência e seus traços de caráter como  pelas circunstâncias de sua vida, que
forneceram o suporte sobre o qual se erigiu a história infantil e patológica da paciente. Na época
em que aceitei a jovem em tratamento, seu pai já beirava os cinqüenta anos e era um homem de
atividade e talento bastante incomuns, um grande industrial com situação econômica muito
cômoda. A filha era muito carinhosamente apegada a  ele e, por essa razão, seu senso crítico
precocemente despertado escandalizava-se ainda maiscom muitos dos atos e peculiaridades do
pai.


Essa ternura por ele era ainda aumentada em virtudedas muitas e graves doenças de que
padecera o pai desde que ela contava seis anos de idade. Nessa época ele ficara tuberculoso, e
isso ocasionara a mudança da família para uma cidadezinha de clima propício, situada numa de
nossas províncias do sul; ali a afecção pulmonar teve uma rápida melhora, mas em virtude das
precauções ainda consideradas necessárias, esse lugar, que chamarei de B , continuou a ser nos
dez anos seguintes a residência principal tanto dospais quanto dos filhos. Quando o pai já estava
bem de saúde, costumava ausentar-se temporariamentepara visitar suas fábricas; na época mais
quente do verão, a família mudava-se para uma estação de águas nas montanhas.


Quando a menina tinha cerca de dez anos, o pai tevede submeter-se a tratamento em
quarto escuro por causa de um descolamento de retina. Em conseqüência desse infortúnio, sua
visão ficou permanentemente reduzida. A doença maisgrave ocorreu cerca de dois anos depois;
consistiu numa crise confusional, seguida de sintomas de paralisia e ligeiras perturbações
psíquicas. Um amigo dele, de cujo papel ainda nos ocuparemos mais adiante (ver em [1]),
convenceu-o, mal tendo seu estado melhorado um pouco, a viajar para Viena com seu médico e
consultar-se comigo. Hesitei por algum tempo, sem saber se deveria supor a existência de uma
paralisia tabética, mas finalmente me decidi por umdiagnóstico de afecção vascular difusa; e como
o paciente admitiu ter tido uma infecção específicaantes do casamento, receitei-lhe um tratamento
antiluético enérgico, em conseqüência do qual cederam todos os distúrbios que ainda persistiam.
Foi sem dúvida graças a essa minha feliz intervenção que, quatro anos depois, ele me apresentou
sua filha, que nesse meio-tempo ficara inequivocamente neurótica, e passados mais dois anos
entregou-a a mim para tratamento psicoterápico.


Entrementes, eu também conhecera em Viena uma irmã  um pouco mais velha dele, em
quem reconheci uma forma grave de psiconeurose sem nenhum dos sintomas caracteristicamente
histéricos. Depois de uma vida acabrunhada por um casamento infeliz, essa mulher morreu de um
marasmo que progrediu rapidamente e cujos sintomas,aliás, nunca foram totalmente esclarecidos.


Um irmão mais velho do pai de minha paciente, a quem tive oportunidade de conhecer, era
um solteirão hipocondríaco.


As simpatias da própria moça, que, como disse, tornou-se minha paciente aos dezoito
anos, sempre penderam para o lado paterno da família e, depois de adoecer, ela tomara como
modelo a tia que acabei de mencionar. Tampouco me era duvidoso que fora dessa família que ela
derivara não só seus dotes e sua precocidade intelectual, como também a predisposição à doença.
Não cheguei a conhecer sua mãe. Pelas comunicações do pai e da moça, fui levado a imaginá-la
como uma mulher inculta e acima de tudo fútil, que,a partir da doença e do conseqüente
distanciamento de seu marido, concentrara todos os  seus interesses nos assuntos domésticos, e
assim apresentava o quadro do que se poderia chamarde “psicose da dona-de-casa”. Sem
nenhuma compreensão pelos interesses mais ativos dos filhos, ocupava o dia todo em limpar e
manter limpos a casa, os móveis e os utensílios, a tal ponto que se tornava quase impossível usá-los ou desfrutar deles. Esse estado, do qual se encontram indícios com bastante freqüência nas
donas-de-casa normais, não pode deixar de ser comparado com as formas de lavagem obsessiva
e outras obsessões pela limpeza. Mas tais mulheres,como acontecia no caso da mãe de nossa
paciente, desconhecem por completo sua doença, faltando-lhes, portanto, uma característica
essencial da “neurose obsessiva”. As relações entremãe e filha eram muito inamistosas havia
vários anos. A filha menosprezavaa mãe, criticava-aduramente e se subtraíra por completo de sua
influência.


Em épocas anteriores, o único irmão da moca, um anoe meio mais velho, fora o modelo
que ela ambicionara seguir. Nos últimos anos, porém, as relações entre ambos se haviam tornado
mais distantes. O rapaz procurava afastar-se o máximo possível das discussões da família, mas,
quando se via obrigado a tomar partido, apoiava a mãe. Assim, a costumeira atração sexual
aproximara pai e filha, de um lado, e mãe e filho, de outro.


Nossa paciente, a quem doravante darei o nome de “Dora”, já aos oito anos começara a
apresentar sintomas neuróticos. Nessa época, passoua sofrer de uma dispnéia crônica com
acessos ocasionais muito mais agudos, o primeiro dos quais ocorreu após uma pequena excursão
pelas montanhas, sendo por isso atribuído ao esforço excessivo. No curso de seis meses, graças
ao repouso e aos cuidados com que foi tratada, esseestado cedeu gradativamente. O médico da
família parece não ter hesitado nem por um momento em diagnosticar o distúrbio como puramente
nervoso e excluir qualquer causa orgânica para a dispnéia, mas é evidente que considerou esse
diagnóstico compatível com a etiologia do esforço excessivo.


A menina passou pelas doenças infecciosas habituaisda infância sem sofrer qualquer
dano permanente. Segundo ela própria me contou (comintenção mais simbolizante!) (ver em [1]),
seu irmão costumava ser o primeiro a contrair a doença em forma branda, seguindo-se então ela
com manifestações mais graves. Por volta dos doze anos ela começou a sofrer de dores de
cabeça unilaterais do tipo de enxaquecas, bem como  de acessos de tosse nervosa. A princípio
esses dois sintomas sempre apareciam juntos, mas depois se separaram e tiveram
desdobramentos diferentes. A enxaqueca tornou-se mais rara e, por volta dos dezesseis anos,
desapareceu completamente. Mas os acessos de  tussis nervosa, que sem dúvida tinham
começado com uma gripe comum, continuaram por todo  o tempo. Quando, aos dezoito anos, ela
entrou em tratamento comigo, tossia novamente de maneira característica. O número desses
acessos não pôde ser determinado, mas sua duração era de três a cinco semanas, e numa
ocasião se estendeu por vários meses. O sintoma mais incômodo durante a primeira metade de
uma dessas crises, pelo menos nos últimos anos, costumava ser a perda completa da voz. O
diagnóstico de que mais uma vez se tratava de nervosismo fora estabelecido desde longa data,
mas os vários métodos de tratamento usuais, inclusive hidroterapia e aplicação local de
eletricidade, não haviam produzido nenhum resultado. Foi nessas circunstâncias que a criança
transformou-se numa jovem madura, de juízo muito independente, que se acostumou a rir dos
esforços dos médicos e acabou por renunciar inteiramente à assistência deles. Além disso, ela
sempre se opusera a procurar orientação médica, embora não fizesse nenhuma objeção à pessoa
de seu médico de família. Qualquer proposta de consultar um novo médico despertava sua
resistência, e também a mim ela só veio movida pelaautoridade do pai.


Vi-a pela primeira vez no início do verão, quando estava com dezesseis anos, sofrendo de
tosse e rouquidão, e já nessa época propus um tratamento psíquico, que não foi adotado porque
também essa crise, que durara mais do que as outras, desapareceu espontaneamente. No inverno
seguinte, após a morte de sua amada tia, ela esteveem Viena na casa do tio e das filhas dele, e
aqui adoeceu com um quadro febril então diagnosticado como apendicite. No outono seguinte,
como a saúde do pai parecia justificar essa medida,a família deixou definitivamente a estação de
B , mudando-se a princípio para a cidade onde ficava a fábrica do pai e, depois, decorrido pouco
menos de um ano, fixando residência permanente em Viena.


Entrementes Dora havia crescido e se transformara numa moça em flor, com feições
inteligentes e agradáveis, mas que era fonte de sér ias preocupações para seus pais. O desânimo e
uma alteração do caráter se tinham tornado agora osprincipais traços de sua doença. Era evidente
que não estava satisfeita consigo mesma nem com a família, tinha uma atitude inamistosa em
relação ao pai e se dava muito mal com a mãe, que estava determinada a fazê-la participar das
tarefas domésticas. Dora procurava evitar os contactos sociais; quando a fadiga e a falta de
concentração de que se queixava o permitiam, ocupava-se em ouvir conferências para mulheres e
se dedicava a estudos mais sérios. Um dia, seus pais ficaram muito alarmados ao encontrarem,
dentro ou sobre a escrivaninha da moça, uma carta em que ela se despedia deles porque não
podia mais suportar a vida. É verdade que o pai, homem de bastante discernimento, calculou que a
moça não tinha intenções sérias de suicídio, mas, mesmo assim, ficou muito abalado; e quando um
dia, após uma ligeira troca de palavras entre ele ea filha, esta teve um primeiro ataque de perda
da consciência- acontecimento também posteriormente encoberto por uma amnésia -, ficou
decidido, apesar de sua relutância, que ela deveriatratar-se comigo.


Sem dúvida este caso clínico, tal como o esbocei até agora, não parece em seu conjunto
digno de ser comunicado. Trata-se de uma “petite hystérie” com os mais comuns de todos os
sintomas somáticos e psíquicos: dispnéia,  tussis nervosa, afonia e possivelmente enxaquecas,
junto com depressão, insociabilidade histérica e um  taediumvitae que provavelmente não era
muito levado a sério. Sem dúvida já se publicaram casos mais interessantes de histeria, amiúde
registrados com maior cuidado, pois nas páginas quese seguem nada se encontrará sobre
estigmas de sensibilidade cutânea, limitação do campo visual ou coisas semelhantes. Permito-me
observar, contudo, que todas essas coleções de estranhos e assombrosos fenômenos da histeria
não nos fizeram avançar grande coisa em nosso conhecimento dessa moléstia, que ainda continua
a ser enigmática. O que nos falta é justamente a elucidação dos casos mais comuns e de seus
sintomas mais freqüentes e típicos. Eu me daria porsatisfeito se as circunstâncias me tivessem
permitido dar um esclarecimento completo deste casode pequena histeria. Segundo minhas
experiências com outros pacientes, não tenho nenhuma dúvida de que meu método analítico me
teria bastado para fazê-lo.


Em 1896, pouco depois da publicação de meus Estudos sobre a Histeria, em colaboração
com o Dr. J. Breuer [1895], pedi a um eminente colega sua opinião sobre a teoria psicológica da
histeria ali defendida. Ele respondeu sem rodeios que a considerava uma generalização
injustificável de conclusões que poderiam ser corretas para uns poucos casos. Desde então tenho
visto inúmeros casos de histeria, ocupando-me de cada um por vários dias, semanas ou anos, e
em nenhum deles deixei de descobrir as condições psíquicas postuladas nos  Estudos, ou seja, o
trauma psíquico, o conflito dos afetos e, como acrescentei em publicações posteriores, a comoção
na esfera sexual. Quando se trata de coisas que se  tornaram patogênicas por seu afã de ocultar-se, decerto não se deve esperar que o doente vá ao  encontro do médico exibi-las, nem tampouco
deve este contentar-se com o primeiro “Não” que se oponha às investigações.


No caso de Dora, graças à já tão salientada inteligência do pai, não foi preciso que eu
mesmo procurasse os pontos de referência vitais, pelo menos no tocante à conformação mais
recente de sua doença. Contou-me o pai que ele e a família tinham feito uma amizade íntima em B
com um casal ali radicado já há muitos anos. A Sra.K. cuidara dele durante sua longa
enfermidade, tendo assim feito jus à sua eterna gratidão. O Sr. K. sempre fora extremamente
amável com sua filha Dora, levando-a a passear com  ele quando estava em B e dando-lhe
pequenos presentes, mas ninguém via nenhum mal nisso. Dora tratava com o mais extremo
cuidado os dois filhinhos dos K., dedicando-lhes uma atenção quase maternal. Quando pai e filha
vieram consultar-me dois anos antes, no verão, estavam justamente prestes a viajar para ir ao
encontro do Sr. e Sra. K., que passavam o verão numde nossos lagos nos Alpes. Dora deveria
passar várias semanas na casa dos K., enquanto seu  pai pretendia regressar dentro de poucos
dias. Durante esse período, também o Sr. K. estivera lá. Mas quando o pai se preparava para
partir, a moça de repente declarou com extrema firmeza que iria com ele, e de fato assim fez. Só
depois de alguns dias esclareceu seu estranho comportamento, contando à mãe, para que esta
por sua vez o transmitisse ao pai, que o Sr. K. tivera a audácia de lhe fazer uma proposta amorosa,
durante uma caminhada depois de um passeio pelo lago. Chamado a prestar contas de seu
comportamento ao pai e ao tio da moça quando do encontro seguinte entre eles, o acusado negou
do modo mais enfático qualquer atitude de sua parteque pudesse ter dado margem a essa
interpretação, e começou a lançar suspeitas sobre amoça, que, segundo soubera pela Sra. K., só
mostrava interesse pelos assuntos sexuais, e que até na própria casa dele junto ao lago lera a
Fisiologia do Amor, de Mantegazza, e livros semelhantes. Provavelmente, excitada por tais leituras,
ela teria “imaginado” toda a cena que descrevera.


“Não tenho dúvida”, disse o pai, “de que esse incidente é responsável pelo abatimento,
irritabilidade e idéias suicidas de Dora. Ela vive  insistindo em que eu rompa relações com o Sr. K.,
e em particular com a Sra. K., a quem antes positivamente venerava. Mas não posso fazer isso,
primeiro porque eu mesmo acredito que a história deDora sobre a impertinência imoral do homem
é uma fantasia que se impôs a ela, e segundo porqueestou ligado à Sra. K. por laços de honrosa
amizade e não quero magoá-la. A pobre mulher já é muito infeliz com o marido, a quem, por sinal,
não tenho em grande conceito; ela mesma já sofreu muito dos nervos e tem em mim seu único
apoio. Considerando meu estado de saúde, não preciso assegurar-lhe que não há nada de ilícito
por trás de nossas relações. Somos apenas dois pobres coitados que consolamos um ao outro
como podemos através de um interesse amistoso. O senhor bem sabe que não tenho nada disso
com minha própria mulher. Mas Dora, que herdou minha obstinação, é inabalável em seu ódio
pelos K. Seu último ataque ocorreu depois de uma conversa em que ela tornou a me fazer a
mesma exigência [de romper com os K.]. Por favor, tente agora colocá-la no bom caminho.”


Não se harmonizava muito com essas declarações o fato de que o pai, em outras
conversas, procurava atribuir a culpa maior pelo comportamento insuportável de Dora à mãe, cujas
peculiaridades tiravam todo o gosto pela vida doméstica. Mas eu resolvera desde longa data
suspender meu juízo sobre o verdadeiro estado de coisas até que tivesse ouvido também o outro
lado.


A experiência de Dora com o Sr. K. - suas propostasamorosas a ela e a conseqüente
afronta a sua honra - parece fornecer, no caso de nossa paciente, o trauma psíquico que Breuer e
eu declaramos, no devido tempo, ser a condição prévia indispensável para a gênesede um estado
patológico histérico. Mas este novo caso também mostra todas as dificuldades que depois me
fizeram ir além dessa teoria, acrescidas de uma nova dificuldade de cunho mais  especial. Como é
tão freqüente nos casos clínicos de histeria, o trauma que sabemos ter ocorrido na vida do
paciente não basta para esclarecer a especificidadedo sintoma, para determiná-lo; entenderíamos
tanto ou tão pouco de toda a história se, em vez de  tussis nervosa, afonia, abatimento e  taedium
vitae, outros sintomas tivessem resultado do trauma. Mashá ainda a consideração de que alguns
desses sintomas (a tosse e a perda da voz) tinham sido produzidos pela paciente anos antes do
trauma, e que suas primeiras manifestações remontavam à infância, pois tinham ocorrido no oitavo
ano de vida. Portanto, se não queremos abandonar a  teoria do trauma, devemos retroceder até a
infância da moça e buscar ali influências ou impressões que pudessem ter surtido efeito análogo
ao de um trauma.Além disso, é digno de nota que, mesmo na investigação de casos em que os
primeiros sintomas não se tinham instalado na infância, fui levado a reconstituir a biografiados
pacientes até seus primeiros anos de vida.


Superadas as primeiras dificuldades do tratamento,  Dora comunicou-me uma experiência
anterior com o Sr. K., mais bem talhada ainda para  operar como um trauma sexual. Estava então
com quatorze anos. O Sr. K. combinara com ela e comsua mulher para que, à tarde, elas fossem
encontrá-lo em sua loja comercial, na praça principal de B , para dali assistirem a um festival
religioso. Mas ele induziu sua mulher a ficar em casa, despachou os empregados e estava sozinho
quando a moça entrou na loja. Ao se aproximar a hora da procissão, pediu à moça que o
aguardasse na porta que dava para a escada que levava ao andar superior, enquanto ele abaixava
as portas corrediças externas. Em seguida voltou e,ao invés de sair pela porta aberta, estreitou
subitamente a moça contra si e depôs-lhe um beijo nos lábios. Era justamente a situação que,
numa mocinha virgem de quatorze anos, despertaria uma nítida sensação de excitação sexual.
Mas Dora sentiu naquele momento uma violenta repugnância, livrou-se do homem e passou
correndo por ele em direção à escada, daí alcançando a porta da rua. Mesmo assim, as relações
com o Sr. K. prosseguiram; nenhum dos dois jamais mencionou essa pequena cena, e Dora afirma
tê-la guardado em segredo até sua confissão duranteo tratamento. Por algum tempo depois disso,
ela evitou ficar a sós com o Sr. K. Por essa época,os K. tinham combinado fazer uma excursão de
alguns dias, da qual Dora também deveria participar. Depois da cena do beijo na loja, ela se
recusou a acompanhá-los, sem dar nenhuma razão.


Nessa cena - a segunda da seqüência, mas a primeirana ordem temporal -, o
comportamento dessa menina de quatorze anos já era total e completamente histérico. Eu tomaria
por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual
despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz
de produzir sintomas somáticos. Esclarecer o mecanismo dessa  inversão do afetoé uma das
tarefas mais importantes e, ao mesmo tempo, uma dasmais difíceis da psicologia das neuroses.
Em minha própria opinião, ainda estou bem longe de  alcançar essa meta, e no contexto desta
comunicação posso também acrescentar que até do quesei só me será possível apresentar uma
parte.


O caso de nossa paciente Dora ainda não fica suficientemente caracterizado acentuando-se apenas a inversão do afeto; é preciso dizer, além disso, que houve aqui um deslocamentoda
sensação. Ao invés da sensação genital que uma jovem sadia não teria deixado de sentir em tais
circunstâncias, Dora foi tomada da sensação de desprazer própria  da membrana mucosa da
entrada do tubo digestivo - isto é, pela repugnância. A estimulação de seus lábios pelo beijo foi
sem dúvida importante para localizar a sensação nesse ponto específico, mas creio reconhecer
também o efeito de outro fator.


A repugnância que Dora sentiu nessa ocasião não se  tornou um sintoma permanente, e
mesmo na época do tratamento existia apenas potencialmente, por assim dizer. Ela se alimentava
mal e confessou certa aversão pelos alimentos. Por outro lado, a cena deixara outra conseqüência,
sob a forma de uma alucinação sensorial que ocorriade tempos em tempos e chegou a se verificar
enquanto ela a relatou a mim. Disse continuar sentindo na parte superior do corpo a pressão
daquele abraço. Segundo certas regras da formação de sintomas que vim a conhecer, e ao mesmo
tempo levando em conta algumas outras particularidades da paciente, que de outra forma seriam
inexplicáveis - por exemplo, não queria passar por  nenhum homem a quem visse em conversa
animada ou terna com uma mulher -, formei para mim  mesmo a seguinte reconstrução da cena.
Creio que, durante o abraço apaixonado, ela sentiu não só o beijo em seus lábios, mas também a
pressão do membro ereto contra seu ventre. Essa percepção revoltante para ela foi eliminada de
sua memória, recalcada e substituída pela sensação  inocente de pressão sobre o tórax, que
extraía de sua fonte recalcada uma intensidade excessiva. Uma vez mais, portanto, vemos um
deslocamentoda parte inferior para a parte superior do corpo. Por outro lado, a compulsão em seu
comportamento construía-se como se proviesse da lembrança inalterada da cena: ela não gostava
de passar por nenhum homem a quem julgasse em estado de excitação sexual porque não queria
voltar a ver o sinal somático desse estado.


Vale ressaltar que, aqui, três sintomas - a repugnância, a sensação de pressão na parte
superior do corpo e a evitação dos homens em conversa afetuosa - provinham de uma mesma
experiência, e somente levando em conta a inter-relação desses três signos é que se torna
possível compreender o processo de formação dos sintomas. O nojo corresponde ao sintoma do
recalcamento da zona erógena dos lábios(mimada demais em Dora, como veremos (em [1]), pelo
sugar infantil). A pressão do membro ereto provavelmente levou a uma alteração análoga no órgão
feminino correspondente, o clitóris, e a excitação  dessa segunda zona erógena foi fixada no tórax
por deslocamento para a sensação simultânea de pressão. O horror aos homens que pudessem
achar-se em estado de excitação sexual obedece ao mecanismo de uma fobia destinada a dar
proteção contra o reavivamento da percepção recalcada.


Para evidenciar a possibilidade dessa complementação da história, perguntei à paciente
com extrema cautela se ela conhecia o sinal corporal da excitação no corpo do homem. Sua
resposta foi “Sim” quanto ao momento atual, mas, notocante àquela época, ela achava que não.
Desde o início tive com esta paciente o máximo cuidado de não lhe fornecer nenhum novo
conhecimento na esfera da vida sexual, não por escrupulosidade, mas porque queria submeter
meus pressupostos a uma prova rigorosa neste caso.  Por isso, só chamava uma coisa por seu
nome quando as alusões dela se tinham tornado tão claras que parecia haver muito pouco risco
em traduzi-las para a linguagem direta. Sua resposta sempre pronta e franca era que ela já sabia
disso,mas de  ondevinha esse conhecimento era um enigma que suas lembranças não permitiam
resolver. Ela esquecera a fonte de todos esses conhecimentos.


Se me é lícito representar dessa maneira a cena do  beijo ocorrido na loja, chego à
seguinte derivação para a repugnância. A sensação de nojo parece ser, originalmente, umareação
ao cheiro (e depois também à visão) dos excrementos. Mas os órgãos genitais, e em especial o
membro masculino, podem lembrar as funções excretoras, porque aqui o órgão, além de
desempenhar a função sexual, serve também à da micção. Na verdade, esta é a primeira das duas
a ser conhecida, e é a única conhecida durante o período pré-sexual. É assim que a repugnância
se inclui nas manifestações afetivas da vida sexual. É o “inter urinas et faeces nascimur” dos
Padres da Igreja, que adere à vida sexual e dela não pode desprender-se, a despeito de todos os
esforços de idealização. Gostaria, contudo, de enfatizar expressamente minha opinião de que o
problema não fica resolvido pela simples indicação  dessa via associativa. O fato de que essa
associaçãopode ser evocada ainda não explica que ela de fatoo seja. E não o é, em
circunstâncias normais. O conhecimento das vias nãotorna dispensável o conhecimento das
forças que por elas transitam.


Não me era fácil, além disso, dirigir a atenção de minha paciente para suas relações com o
Sr. K. Ela afirmava ter rompido com essa pessoa. A  camada mais superficial de todas as suas
associações durante as sessões, e tudo aquilo de que se conscientizava com facilidade e que era
conscientemente lembrado da véspera sempre se relacionava com o pai. Era bem verdade que ela
não podia perdoá-lo por continuar a manter relaçõescom o Sr. K. e, mais particularmente, com a
Sra. K. Mas encarava essas relações de maneira muito diferente da que o pai queria deixar
transparecer. Para ela não havia nenhuma dúvida de  que o que ligava seu pai àquela mulher
jovem e bonita era um relacionamento amoroso corriqueiro. Nada que pudesse contribuir para
corroborar essa tese escapava à sua percepção, que  nesse sentido era implacavelmente aguda;
aqui não havia nenhuma lacuna em sua memória. O relacionamento com os K. tinha começado
antes da doença grave do pai, mas só se tornou íntimo quando, no curso dessa enfermidade, a
jovem senhora assumiu oficialmente a posição de enfermeira, enquanto a mãe de Dora se
mantinha afastada do leito do doente. Nas primeirasférias de verão após a recuperação do pai,
aconteceram coisas que deveriam ter aberto os olhosde todos para a verdadeira natureza daquela
“amizade”. As duas famílias tinham alugado um conjunto de aposentos em comum no hotel, e um
belo dia a Sra. K. anunciou que não podia continuarno quarto que até então partilhara com um de
seus filhos; poucos dias depois, o pai de Dora deixou seu próprio quarto e ambos se mudaram
para outros - os quartos da extremidade, separados apenas pelo corredor-, enquanto os aposentos
que haviam abandonado não ofereciam tal garantia contra interferências. Mais tarde, sempre que
Dora repreendia o pai por causa da Sra. K., ele costumava dizer que não podia entender sua
hostilidade e que, ao contrário, seus filhos tinhamtodas as razões para serem gratos a ela. A mãe,
a quem Dora foi pedir uma explicação sobre esse misterioso comentário, disse-lhe que, naquela
época, papai estava tão triste que quisera suicidar-se nos bosques; a Sra. K., suspeitando disso,
fora atrás dele e o persuadira com suas súplicas a  se preservar para os seus. Naturalmente, Dora
não acreditava nisso; sem dúvida, os dois tinham sido vistos juntos no bosque e papai inventara a
história do suicídiopara justificar o encontro deles.


Quando retornaram a B , o pai visitava todos os dias a Sra. K. em determinados horários,
enquanto o marido dela estava na loja. Todo mundo comentara isso e as pessoas interrogavam
Dora de maneira significativa a esse respeito. O próprio Sr. K. muitas vezes se queixara
amargamente à mãe de Dora, embora poupasse a filha de qualquer alusão ao assunto - o que ela
parecia atribuir a uma delicadeza da parte dele. Nos passeios de todos em comum, seu pai e a
Sra. K. sempre sabiam arranjar as coisas de modo a  ficarem a sós. Não havia dúvida alguma de
que ela aceitava dinheiro dele, pois fazia gastos que seria impossível sustentar com seus recursos
ou com os do marido. O pai começara também a dar grandes presentes à Sra. K. e, para disfarçá-los, tornou-se ao mesmo tempo particularmente generoso com a mãe de Dora e com ela própria. E
a Sra. K., até então doentia, ela mesma obrigada a  passar meses num sanatório para doentes
nervosos por não poder andar, tornara-se agora uma mulher sadia e cheia de vida.


Mesmo depois de deixarem B [mudando-se para a cidade onde ficava a fábrica], esse
relacionamento de anos prosseguiu, pois de tempos em tempos o pai declarava não suportar o
rigor do clima e ter de fazer algo por sua saúde; começava a tossir e a se queixar, até que de
repente partia para B de onde escrevia as mais alegres cartas. Todas essas doenças não
passavam de pretextos para que ele revisse sua amiga. Depois, um belo dia, ficou decidido que
eles se mudariam para Viena, e Dora começou a suspeitar de uma combinação. E de fato, mal se
haviam passado três semanas desde que estavam em Viena, ela soube que também os K. se
tinham transferido para lá. No momento, contou-me ela, continuavam em Viena, e era freqüente
ela topar com o pai na rua em companhia da Sra. K.  Também encontrava amiúde o Sr. K.; ele
sempre a acompanhava com o olhar e, certa feita, quando a encontrou sozinha, seguiu-a por um
longo trecho para ver aonde ela ia e se não estariaindo a um encontro.


O pai era insincero, havia um traço de falsidade emseu caráter, só pensava em sua
própria satisfação e tinha o dom de arranjar as coisas da maneira que mais lhe conviesse: tais
foram as críticas mais freqüentes que ouvi de Dora  um dia, quando o pai tornou a sentir que seu
estado havia piorado e viajou para B por várias semanas, ao que a arguta Dora prontamente se
inteirou de que também a Sra. K. fizera uma viagem  para a mesma cidade para fazer uma visita a
seus parentes.


Não pude contestar de maneira geral essa caracterização do pai; também era fácil ver por
qual recriminação particular Dora estava justificada. Quando ficava com o ânimo mais exasperado,
impunha-se a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr. K. como prêmio pela tolerância dele
para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora; e por trás da ternura desta pelo pai podia-se pressentir sua fúria por ser usada dessa maneira. Noutras ocasiões, ela sabia muito bem que
era culpada de exagero ao falar assim. Naturalmente, os dois homens nunca haviam firmado um
pacto formal de que ela fosse tratada como objeto de troca, tanto mais que seu pai teria recuado
horrorizado ante tal insinuação. Mas ele era um desses homens que sabem como fugir a um
conflito falseando seu julgamento sobre uma das alternativas em oposição. Se lhe tivessem
chamado a atenção para a possibilidade de que uma adolescente corresse perigo na companhia
constante e não vigiada de um homem insatisfeito com sua própria mulher, ele certamente teria
respondido que podia confiar na filha, que um homemcomo K. jamais poderia ser perigoso para
ela e que seu amigo era incapaz de tais intenções.  Ou então: que Dora ainda era uma criança e
era tratada como criança por K. Mas, na realidade,  ocorre que cada um dos dois homens evitava
extrair da conduta do outro qualquer conseqüência que pudesse ser inconveniente para suas
próprias pretensões. Assim, o Sr. K. pôde enviar flores a Dora todos os dias por um ano inteiro
enquanto esteve por perto, aproveitar todas as oportunidades de dar-lhe presentes valiosos e
passar todo o seu tempo livre na companhia dela, sem que os pais da moça discernissem nesse
comportamento o caráter de uma corte amorosa.


Quando surge no tratamento psicanalítico uma seqüência correta, fundamentada e
incontestável de pensamentos, isso bem pode representar um momento de embaraço para o
médico, do qual o paciente se aproveita para perguntar: “Tudo isso é perfeitamente verdadeiro e
correto, não é? Que quer o Sr. modificar, agora quelhe contei?” Mas logo se evidencia que o
paciente está usando tais pensamentos inatacáveis pela análise para acobertar outros que se
querem subtrair da crítica e da consciência. Um rosário de censuras a outras pessoas leva-nos a
suspeitar da existência de um rosário de autocensuras de conteúdo idêntico. Basta que se volte
cada censura isolada para a própria pessoa do falante. Há algo de inegavelmente automático
nessa maneira de defender-se de uma autocensura dirigindo a mesma censura contra outrem.
Encontra-se um modelo disso nos argumentos  tu quoquedas crianças; quando uma delas é
acusada de mentirosa, retruca sem hesitar: “Você é que é.” Um adulto empenhado em revidar um
insulto procuraria um ponto fraco real de seu oponente e não poria a ênfase principal na repetição
do mesmo conteúdo. Na paranóia, essa projeção da censura em outrem sem qualquer alteração
do conteúdo, e portanto, sem nenhum apoio na realidade, torna-se manifesta como processo de
formação do delírio.


Também as censuras de Dora a seu pai estavam assim  “forradas” ou “revestidas” de
autocensuras de conteúdo idêntico, quase sem exceção, como se verá em detalhe. Tinha razão
em achar que seu pai não queria esclarecer o comportamento do Sr. K. em relação a ela para não
ser molestado em seu próprio relacionamento com a Sra. K. Mas Dora fizera precisamente a
mesma coisa. Tornara-se cúmplice desse relacionamento e repudiara todos os sinais que
pudessem mostrar sua verdadeira natureza. Só da aventura no lago (ver em [1]) é que datavam
sua visão clara do assunto e suas exigências ao pai. Durante todos os anos anteriores ela fizera o
possível para favorecer as relações do pai com a Sra. K. Nunca ia vê-la quando suspeitava de que
seu pai estivesse lá. Sabia que, nesse caso, as crianças seriam afastadas, e rumava pelo caminho
em que estava certa de encontrá-las, indo passear com elas. Na casa de Dora tinha havido uma
pessoa que cedo quis abrir-lhe os olhos para as relações do pai com a Sra. K. e induzi-la a tomar
partido contra essa mulher. Fora sua última governanta, uma moça solteira e mais velha, muito lida
e de opiniões avançadas. Mestra e aluna se deram esplendidamente por algum tempo, até que, de
repente, Dora se desentendeu com ela e insistiu em  sua dispensa. Enquanto a governanta teve
alguma influência, usou-a para acirrar os ânimos contra a Sra. K. Disse à mãe de Dora que era
incompatível com sua dignidade tolerar tal intimidade entre seu marido e uma estranha e chamou a
atenção de Dora para tudo o que saltava aos olhos naquele relacionamento. Mas seus esforços
foram em vão, pois Dora continuava ternamente ligada à Sra. K. e não queria saber de nenhum
motivo que fizesse as relações do pai com ela parecerem indecentes. Por outro lado, percebia
muito bem os motivos que impeliam sua governanta. Cega num sentido, Dora tinha a percepção
bem aguçada no outro. Notou que a governanta estavaapaixonada por seu pai. Quando ele estava
em casa, ela parecia uma pessoa completamente diferente, podendo ser divertida e obsequiosa.
Na época em que a família morava na cidade industrial e a Sra. K. não estava no horizonte, sua
animosidade se voltava contra a mãe de Dora, que era então sua rival mais imediata. Mas Dora
ainda não levava nada disso a mal. Só se zangou ao  observar que ela própria era totalmente
indiferente para a governanta, cuja afeição demonstrada por ela de fato era dirigida a seu pai.
Enquanto o pai estava ausente da cidade industrial,a moça não tinha tempo para ela, não queria
passear com ela e não se interessava por seus estudos. Mal o pai voltava de B , ela tornava a se
mostrar prestimosa em toda sorte de serviço e ajuda. Por isso Dora a deixou de lado.


A pobre mulher elucidara com clareza indesejada umaparte do comportamento de Dora. O
que a governanta às vezes era para Dora, esta fora  para os filhos do Sr. K. Fora uma mãe para
eles, instruindo-os, passeando com eles e lhes oferecendo um substituto completo para o escasso
interesse que a verdadeira mãe lhes demonstrava. O  Sr. e a Sra. K. freqüentemente falavam em
divórcio, que nunca se concretizou porque o Sr. K.,que era um pai afetuoso, não queria abrir mão
de nenhum dos dois filhos. O interesse comum pelos filhos fora desde o início um elo entre o Sr. K.
e Dora. Evidentemente, ocupar-se de crianças era para Dora um disfarce destinado a ocultar dela
mesma e dos outros alguma outra coisa.


De seu comportamento para com as crianças, considerado à luz da conduta da governanta
com ela própria, extraía-se a mesma conclusão que de sua tácita aquiescência às relações do pai
com a Sra. K., a saber, que em todos aqueles anos ela estivera apaixonada pelo Sr. K. Quando
formulei essa conclusão, não obtive dela nenhum assentimento. É verdade que me disse de
imediato que também outras pessoas (por exemplo, uma prima que passara algum tempo com eles
em B ) lhe tinham dito: “Ora, você é simplesmente louca por este homem!” Mas ela própria não
queria lembrar-se de nenhum sentimento dessa ordem.Mais tarde, quando a abundância do
material surgido tornou-lhe difícil persistir na negativa, ela admitiu que poderia ter estado
enamorada do Sr. K. em B , mas declarou que desde acena do lago isso havia acabado. De
qualquer forma, era certo que a censura, por fazer ouvidos de mercador aos chamados imperativos
do dever e por arranjar as coisas da maneira mais conveniente do ponto de vista do próprio
enamoramento, ou seja, a censura que ela fazia contra o pai recaía sobre sua própria pessoa.


A outra censura, de que as doenças do pai eram criadas como um pretexto e exploradas
em proveito próprio, coincide também com todo um fragmento de sua própria história secreta. Um
dia, Dora queixou-se de um sintoma supostamente novo, que consistia em dores de estômago
dilacerantes, e acertei em cheio ao perguntar: “A quem você está copiando nisso?” No dia anterior
ela fora visitar as primas, filhas da tia que morrera. A mais jovem ficara noiva e com isso a mais
velha adoecera com umas dores de estômago,sendo mandada para Semering. Dora achava que
era apenas inveja por parte da mais velha, pois elasempre adoecia quando queria alguma coisa, e
o que queria agora era afastar-se de casa para não  ter de assistir à felicidade da irmã. Mas suas
próprias dores de estômagodiziam que Dora se identificara com a prima, assimdeclarada
simuladora, fosse porque ela também invejava o amorda moça mais afortunada, fosse porque via
sua própria história refletida na da irmã mais velha, que tivera recentemente um caso amoroso de
final infeliz. Mas Dora também aprendera, observando a Sra. K., quanto proveito se podia tirar das
doenças. O Sr. K. passava parte do ano viajando; sempre que voltava, encontrava sua mulher
adoentada, embora, como Dora sabia, ela tivesse gozado de boa saúde até o dia anterior. Dora
compreendeu que era a presença do marido que fazia a mulher adoecer, e que esta considerava a
doença bem-vinda para escapar aos deveres conjugaisque tanto detestava. Nesse ponto inseriu-se uma observação repentina de Dora sobre suas próprias alternações entre doença e saúde nos
primeiros anos de sua infância em B , e assim fui levado a suspeitar de que seus próprios estados
de saúde dependiam de alguma outra coisa, tal como  os da Sra. K. É que na técnica da
psicanálise existe uma regra de que uma conexão interna ainda não revelada se anuncia pela
contigüidade, pela proximidade temporal entre as associações, exatamente como, na escrita, um a
e um b postos lado a lado significam que se pretendeu formar com eles a sílaba ab. Dora tivera um
grande número de acessos de tosse acompanhados de perda da voz. Teria a presença ou
ausência do homem amado exercido alguma influência  sobre o aparecimento e desaparecimento
dos sintomas patológicos? Se assim fosse, em algum  ponto se deveria revelar uma coincidência
denunciadora. Perguntei-lhe qual tinha sido a duração média desses ataques. “Três a seis
semanas, talvez.” Quanto tempo duravam as ausênciasdo Sr. K.? “Três a seis semanas, também”,
teve ela de admitir. Com suas doenças, portanto, ela demonstrava seu amor por K., tal como a
mulher dele demonstrava sua aversão. Bastava supor que seu comportamento fora o oposto do da
Sra. K.: enferma quando ele estava ausente e sadia quando ele voltava. Isso realmente parece ter
acontecido pelo menos durante o primeiro período dos ataques. Em épocas posteriores, sem
dúvida, tornou-se necessário obscurecer a coincidência entre seus ataques de doença e a
ausência do homem secretamente amado,para que a constância dessa coincidência não traísse
seu segredo. A duração dos acessos permaneceria, depois, como uma marca de seu sentido
originário.


Lembrei-me de ter visto e ouvido tempos atrás, na clínica de Charcot [1885-6], que nas
pessoas que sofrem de mutismo histérico a escrita funcionava vicariamente em lugar da fala. Elas
escreviam com maior fluência, mais depressa e melhor do que as outras ou elas mesmas
anteriormente. O mesmo acontecera com Dora. Nos primeiros dias de suas crises de afonia “a
escrita sempre lhe fluía da mão com especial facilidade”. Essa peculiaridade, como expressão de
uma função fisiológica substitutiva criada pela necessidade, na verdade não requeria
esclarecimento psicológico, mas era notável a facilidade com que este era encontrado. O Sr. K. lhe
escrevia profusamente quando em viagem, e lhe mandava cartões-postais; houve ocasiões em
que só ela estava a par da data de seu regresso, enquanto este apanhava sua mulher de surpresa.
Além disso, corresponder-se com um ausente com quemnão se pode falar não é mais
compreensível do que, tendo perdido a voz, tentar fazer-se entender pela escrita. A afonia de Dora,
portanto, admitia a seguinte interpretação simbólica: quando o amado estava longe, ela renunciava
à fala; esta perdia seu valor, já que não podia falar com ele. Por outro lado, a escrita ganhava
importância como único meio de se manter em relaçãocom o ausente.


Devo, então, afirmar que em todos os casos em que há crises periódicas de afonia
devemos diagnosticar a existência de um amado que se ausenta temporariamente? Por certo não
é esta minha intenção. A determinação do sintoma nocaso de Dora é por demais específica para
que se possa pensar na repetição freqüente dessa mesma etiologia acidental. Mas, que valor tem
então o esclarecimento da afonia em nosso caso? Nãonos teremos simplesmente deixado
enganar por um  jeu d’esprit? Creio que não. Aqui convém lembrar a questão tão  freqüentemente
levantada de saber se os sintomas da histeria são de origem psíquica ou somática ou, admitindo-se o primeiro caso, se todos têm necessariamente umcondicionamento psíquico. Esta pergunta,
como tantas outras a que os investigadores têm voltado repetidamente sem sucesso, não é
adequada. As alternativas nelas expostas não cobrema essência real dos fatos. Até onde posso
ver, todo sintoma histérico requer a participação de ambos os lados. Não pode ocorrer sem a
presença de uma certa complacência somáticafornecida por algum processo normal ou patológico
no interior de um órgão do corpo ou com ele relacionado. Porém não se produz mais de uma vez -
e é do caráter do sintoma histérico a capacidade dese repetir - a menos que tenha uma
significação psíquica, um sentido. O sintoma histérico não traz em si esse sentido,  mas este lhe é
emprestado, soldado a ele, por assim dizer, e em cada caso pode ser diferente, segundo a
natureza dos pensamentos suprimidos que lutam por se expressar. Todavia, há uma série de
fatores que operam para tornar menos arbitrárias asrelações entre os pensamentos inconscientes
e os processos somáticos de que estes dispõem como  meio de expressão, assim como para
aproximá-las de algumas formas típicas. Para a terapia, os determinantes mais importantes são os
fornecidos pelo material psíquico acidental; os sintomas são dissolvidos buscando-se sua
significação psíquica. Uma vez removido tudo o que  se pode eliminar pela psicanálise, fica-se em
condições de formar toda sorte de conjecturas, provavelmente acertadas, sobre as bases
somáticas dos sintomas, que em geral são constitucionais e orgânicas. Tampouco no caso dos
acessos de tosse e afonia de Dora nos contentaremoscom uma interpretação psicanalítica, mas
indicaremos por trás dela o fator orgânico de que partiu a “complacência somática” que lhe
possibilitou expressar sua afeição por um amado temporariamente ausente. E se neste caso a
conexão entre a expressão sintomática e o conteúdo  dos pensamentos inconscientes nos parecer
fruto de um habilidoso e impressionante artifício,  ficaremos reconfortados em saber que ela cria a
mesma impressão em todos os outros casos e em todosos outros exemplos.


Estou pronto a ouvir, nesta altura, que não há grande vantagem em sermos informados,
graças à psicanálise, de que não mais precisamos buscar a chave do problema da histeria numa
“labilidade peculiar das moléculas nervosas” ou numa suscetibilidade aos “estados hipnóides”, mas
numa “complacência somática”. Em resposta a essa observação, quero frisar que dessa maneira o
enigma não só recuou um pouco, mas também se tornouum pouco menor. Já não temos de lidar
com o enigma inteiro, mas apenas da parte dele em que se inclui a característica particular da
histeria  que a diferenciadas outras psiconeuroses. Os processos psíquicos em todas as
psiconeuroses são os mesmos durante um extenso percurso, até que entre em cena a
“complacência somática” que proporciona aos processos psíquicos inconscientes uma saída no
corporal. Quando esse fator não se faz presente, surge da situação total algo diferente de um
sintoma histérico, mas ainda de natureza afim: uma  fobia, talvez, ou uma idéia obsessiva - em
suma, um sintoma psíquico.


Volto agora à censura pela “simulação” de doença que Dora fez ao pai. Logo se evidenciou
que a ela correspondiam não só autocensuras concernentes a estados patológicos anteriores, mas
também outras relativas à época atual. Nesse ponto,cabe comumente ao médico a tarefa de
adivinhar e complementar aquilo que a análise lhe oferece apenas sob a forma de alusões. Tive de
assinalar à paciente que seu atual estado de saúde  era tão determinado por motivos e tão
tendencioso quanto fora a doença da Sra. K., que ela entendera tão bem. Não havia nenhuma
dúvida, disse eu, de que ela visava a um objetivo que esperava alcançar através de sua doença.
Este não podia ser outro senão o de fazer seu pai afastar-se da Sra. K. Mediante súplicas ou
argumentos ela não conseguia; talvez esperasse ter  êxito assustando o pai (vide a carta de
despedida), despertando sua compaixão (por meio dosataques de desmaios) (ver em [1]), ou se
tudo isso fosse em vão, pelo menos se vingaria dele. Ela sabia muito bem, prossegui, o quanto ele
lhe era apegado e que seus olhos se enchiam de lágrimas quando lhe perguntavam pelo estado da
filha. Eu estava plenamente convencido de que ela se recuperaria imediatamente se o pai lhe
dissesse que tinha sacrificado a Sra. K, em prol dasaúde dela. Mas, acrescentei, eu esperava que
ele não se deixasse persuadir a fazê-lo, pois entãoela ficaria conhecendo a poderosa arma que
tinha nas mãos e por certo não deixaria de servir-se em todas as ocasiões futuras de sua
possibilidade de adoecer. Se o pai não cedesse, porém, eu deveria estar preparado para isto: ela
não renunciaria tão facilmente a sua doença.


Omito os detalhes que mostraram quão plenamente correto era tudo isso, preferindo
acrescentar algumas observações gerais sobre o papel desempenhado na histeria pelos  motivos
da doença. Os motivos do adoecimento devem ser nitidamente distinguidos, enquanto conceito,
das possibilidades de adoecer - do material de que  se formam os sintomas. Eles não têm
participação alguma na formação de sintomas e nem sequer estão presentes no início da doença.
Só aparecem secundariamente, mas é apenas com seu advento que se constitui plenamente a
enfermidade. Pode-se contar com sua existência em todos os casos em que haja um sofrimento
real e de longa data. A princípio, o sintoma é paraa vida psíquica um hóspede indesejável: tudo
está contra ele, e é por isso que pode dissipar-se  com tanta facilidade, aparentemente por si só,
sob a influência do tempo. No início, não tem nenhum emprego útil na economia doméstica
psíquica, porém com muita freqüência encontra serventia secundariamente. Uma ou outra corrente
psíquica acha cômodo servir-se do sintoma, que assim adquire uma função secundáriae fica como
que ancorado na vida anímica. Aquele que pretende curar o doente tropeça então, para seu
assombro, numa grande resistência, que lhe ensina que a intenção do paciente de se livrar de
seus males não é nem tão cabal nem tão séria quantoparecia. Imaginemos um trabalhador, um
pedreiro, digamos, que tenha caído de uma construção e ficado aleijado, e que agora ganhe a vida
mendigando nas esquinas. Chega um milagreiro e promete endireitar-lhe a perna torta e devolver-lhe a marcha. Não se deve esperar, acho eu, ver umaexpressão de particular contentamento em
seu rosto. Sem dúvida, na época em que sofreu a lesão, ele há de ter-se sentido extremamente
infeliz, ao compreender que nunca mais poderia voltar a trabalhar e teria de passar fome ou viver
de esmolas. Desde então, porém, o que antes o deixara sem seu ganha-pão tornou-se sua fonte
de renda: ele vive de sua invalidez. Se esta lhe for tirada, talvez ele fique totalmente desamparado;
nesse meio tempo, ele esqueceu seu ofício, perdeu seus hábitos de trabalho e se acostumou à
indolência, e talvez também à bebida.


Os motivos para adoecer muitas vezes começam a se fazer sentir já na infância. A menina
sedenta de amor, que a contragosto partilha com seus irmãos a afeição dos pais, percebe que toda
esta volta a afluir-lhe quando seu adoecimento desperta a preocupação deles. Agora ela conhece
um meio de atrair o amor dos pais, e se valerá deletão logo disponha do material psíquico para
produzir uma doença. Quando essa menina se transforma em mulher e, em total contradição com
as exigências de sua infância, casa-se com um homempouco atencioso que sufoca sua vontade,
explora impiedosamente sua capacidade de trabalho enão lhe dá nem ternura nem dinheiro, a
doença é a única arma que lhe resta para afirmar-sena vida. Ela lhe proporciona a ansiada
consideração, força o marido a fazer sacrifícios pecuniários e a demonstrar-lhe um respeito que
não teria se ela estivesse com saúde, e o obriga a  tratá-la com prudência caso ela se recupere,
pois do contrário poderá haver uma recaída. O caráter aparentemente objetivo e involuntário de
seu estado patológico, que o médico encarregado de  tratá-la por certo defenderá, possibilita esse
uso oportuno, sem autocensuras conscientes, de um meio que ela constatara ser eficaz na
infância.


E ainda assim essas doenças são obra da intenção! Em geral, esses estados patológicos
se destinam a uma determinada pessoa, de modo que desaparecem quando ela se afasta. As
opiniões mais rudes e banais sobre a natureza dos distúrbios histéricos, como as que se ouvem de
parentes incultos e de enfermeiras, de certa forma  são corretas. É verdade que a mulher que jaz
paralisada na cama se levantaria de um salto se irrompesse um incêndio em seu quarto, e que a
esposa excessivamente mimada esqueceria todos os seus sofrimentos se um filho seu adoecesse
com risco de vida ou se alguma catástrofe ameaçassea situação do lar. Todos os que assim falam
dos pacientes estão certos, a não ser num único ponto: desconsideram a distinção psicológica
entre consciente e inconsciente, o que talvez seja  permissível quando se trata de crianças, mas
com adultos já não tem cabimento. Por isso é que denada servem todas essas afirmações de que
é “apenas uma questão de vontade” e todas as exortações e insultos dirigidos ao doente. Primeiro
é preciso tentar, pelas vias indiretas da análise, fazer com que a pessoa convença a si mesma da
existência dessa intenção de adoecer.


Na histeria, é no combate aos motivos da doença quereside, de modo bastante geral, o
ponto fraco para qualquer terapia, inclusive a psicanálise. Para o destino as coisas são mais fáceis:
ele não precisa atacar a constituição ou o materialpatogênico do enfermo; basta-lhe eliminar o
motivo de adoecimento para que o doente fique temporária ou até permanentemente livre de seu
mal. Quão menor seria o número de curas milagrosas  e desaparecimentos espontâneos dos
sintomas que nós, os médicos, teríamos de admitir na histeria, se nos fosse dado conhecer mais
amiúde os interesses vitais que os doentes nos ocultam! Ora um prazo se esgotou, ora
desapareceu a consideração por alguma outra pessoa,ora uma situação foi fundamentalmente
alterada por algum acontecimento externo, e eis quetodo distúrbio até então pertinaz desaparece
de um só golpe, de modo aparentemente espontâneo, mas, na verdade, por ter sido privado de
seu motivo mais poderoso - um dos usos que tinha navida do enfermo.


Em todos os casos plenamente desenvolvidos é provável que se encontrem motivos que
sustentam a condição do doente. Mas há casos com motivos puramente internos, como, por
exemplo, a autopunição, ou seja, o arrependimento ea penitência. Neles, verifica-se que a tarefa
terapêuticaé mais fácil de solucionar do que nos casos em quea doença se relaciona com a
consecução de algum objetivo externo. No caso de Dora, esse objetivo era claramente o de
sensibilizar o pai e afastá-lo da Sra. K.


Nenhum dos atos do pai parecia irritá-la tanto quanto sua presteza em tomar a cena do
lago como produto da fantasia dela. Dora ficava fora de si ante a idéia de se pensar que ela
simplesmente imaginara algo naquela ocasião. Durante muito tempo fiquei em apuros para
adivinhar que autocensura se ocultaria por trás de  sua recusa apaixonada dessa explicação. Era
justificável suspeitar de que houvesse algo oculto,pois uma censura que não acerta o alvo
tampouco ofende em termos duradouros. Por outro lado, cheguei à conclusão de que o relato de
Dora devia corresponder à verdade em todos os aspectos. Mal ela percebera a intenção do Sr. K.,
não deixara que ele terminasse de falar, esbofeteara-o no rosto e se afastara às carreiras. Seu
comportamento, depois que ela se foi, deve ter parecido tão incompreensível para o homem
quanto para nós, pois ele já deveria ter depreendido desde muito antes, por pequenos indícios, que
tinha assegurada a afeição da moça. Na discussão dosegundo sonho encontraremos tanto a
solução desse enigma quanto a autocensura em vão buscada no começo (ver a partir de [1]).


Como as acusações contra o pai se repetiam com cansativa monotonia e ao mesmo tempo
sua tosse continuava, fui levado a achar que esse sintoma poderia ter algum significado
relacionado com o pai. Além disso, as exigências que costumo fazer à explicação de um sintoma
estavam longe de ser satisfeitas. Segundo uma regraque eu pudera confirmar repetidamente pela
experiência mas que ainda não me atrevera a consolidar num princípio geral, o sintoma significa a
representação - a realização - de uma fantasia de conteúdo sexual, isto é, uma situação sexual.
Melhor dizendo, pelo menos umdos significados de um sintoma corresponde à representação de
uma fantasia sexual, enquanto para os outros significados não se impõe tal limitação do conteúdo.
Quando se empreende o trabalho psicanalítico, logo se constata que os sintomas têm mais de um
significado e servem para representar simultaneamente diversos cursos inconscientes de
pensamento. E eu acrescentaria que, na minha opinião, um único curso de pensamento ou
fantasia inconsciente dificilmente bastará para a produção de um sintoma.


Logo surgiu uma oportunidade de atribuir à tosse nervosa de Dora uma interpretação
desse tipo, mediante uma situação sexual fantasiada. Quando ela insistiu mais uma vez em que a
Sra. K. só amava seu pai porque ele era “ein vermögender Mann” [“um homem de posses”], certos
pormenores da maneira como se expressou (que omito  aqui, como a maioria dos aspectos
puramente técnicos da análise) levaram-me a notar que por trás dessa frase se ocultava seu
oposto, ou seja, que o seu pai era “ein unvermögender Mann” [“um homem sem recursos”]. Isso só
poderia ser entendido num sentido sexual - que seu  pai, como homem, era sem recursos, era
impotente. Depois que Dora confirmou essa interpretação com  base em seu conhecimento
consciente, assinalei a contradição em que ela caíaquando, por um lado, continuava a insistir em
que as relações do pai com a Sra. K. eram um caso amoroso corriqueiro e, por outro, asseverava
que o pai era impotente e, portanto, incapaz de tirar proveito de tal relacionamento. Sua resposta
mostrou que ela não precisava reconhecer a contradição. Ela sabia muito bem, disse, que há mais
de uma maneira de se obter satisfação sexual. A fonte desse conhecimento, aliás, novamente lhe
era inidentificável. Como lhe perguntei se ela se estava referindo ao uso de outros órgãos que não
os genitais na relação sexual e ela respondeu afirmativamente, pude prosseguir dizendo que,
nesse caso, ela devia estar pensando precisamente nas partes do corpo que nela se achavam em
estado de irritação - a garganta e a cavidade bucal. Obviamente, ela não queria saber de seus
pensamentos a tal ponto, e de fato, se era isso quepossibilitava o sintoma, não poderia mesmo
ser-lhe inteiramente claro. Mas era irrecusável a complementação de que, com sua tosse
espasmódica - que, como de hábito, tinha por estímulo uma sensação de cócega na garganta -, ela
representava uma cena de satisfação sexual per osentre as duas pessoas cuja ligação amorosa a
ocupava tão incessantemente. Muito pouco tempo depois de ela aceitar em silêncio essa
explicação, a tosse desapareceu - o que se afinava  muito bem com minha visão; mas não quero
atribuir um valor excessivo a essa mudança, visto que ela já se produzira tantas vezes
espontaneamente.


Caso esse trechinho da análise tenha despertado no  leitor médico, além do ceticismo a
que ele tem direito, também estranheza, e horror, estou disposto a averiguar, neste ponto, se
essas duas reações são justificáveis. A estranheza,penso eu, é motivada por minha ousadia em
falar sobre coisas tão delicadas e desagradáveis com uma jovem - ou, de modo geral, com
qualquer mulher sexualmente ativa. O horror sem dúvida concerne à possibilidade de que uma
moça virgem possa conhecer semelhantes práticas e ocupar-se delas em sua fantasia. Em ambos
os pontos eu recomendaria moderação e prudência. Não há motivos para indignação em nenhum
dos dois casos. Pode-se falar com moças e muIheres  sobre toda sorte de assuntos sexuais sem
causar-lhes qualquer prejuízo e sem acarretar suspeitas sobre si mesmo, desde que, em primeiro
lugar, adote-se uma certa maneira de fazê-lo, e, emsegundo, consiga-se despertar nelas a
convicção de que isso é inevitável. Afinal, nessas  mesmas condições, o ginecologista se permite
submetê-las a todos os desnudamentos possíveis. A melhor maneira de falar sobre tais coisas é
ser seco e direto; e ela é, ao mesmo tempo, a que mais se afasta da lascívia com que os mesmos
temas são tratados na “sociedade”, com a qual as moças e mulheres estão plenamente
acostumadas. Dou aos órgãos e funções do corpo seusnomes técnicos, e os comunico - refiro-me
aos nomes - quando por acaso são ignorados. J’apelle un chat un chat. Certamente já ouvi falar de
pessoas - médicos e leigos - que se escandalizam com uma terapia em que ocorrem tais
conversas, e que parecem invejar a mim ou a meus pacientes pela excitação que, segundo suas
expectativas, tal método deve proporcionar. Mas conheço demasiadamente bem o decoro desses
senhores para me irritar com eles. Resistirei à tentação de escrever uma sátira a seu respeito. Mas
há uma coisa que quero dizer: muitas vezes, depois  de tratar por algum tempo de uma paciente
para quem, de início, não foi fácil a franqueza nasquestões sexuais, tive a satisfação de ouvi-la
exclamar: “Ora, afinal, seu tratamento é muito maisdecente do que a conversa do Sr. X!”


Antes de se empreender o tratamento de um caso de histeria, é preciso estar convencido
da impossibilidade de evitar a menção de temas sexuais, ou pelo menos estar disposto a se deixar
convencer pela experiência. A atitude correta é: “pour faire une omelette il faut casser des oeufs”.
Os próprios pacientes são fáceis de convencer, e háinúmeras oportunidades para isso no decorrer
do tratamento. Não há por que recriminar-se por falar com eles sobre os fatos da vida sexual
normal ou anormal. Com um pouco de cautela, não se  faz mais do que traduzir em idéias
conscientes o que já se sabia no inconsciente, e toda a eficácia do tratamento se baseia em nosso
conhecimento de que a ação do afeto ligado a uma idéia inconsciente é mais intensa e, como ele
não pode ser inibido, mais prejudicial que a do afeto ligado a uma idéia consciente. Nunca se corre
qualquer perigo de corromper uma jovem inexperiente; quando não há no inconsciente nenhum
conhecimento sobre os processos sexuais, tampouco surge qualquer sintoma histérico. Quando se
constata uma histeria, não há como falar em “inocência dos pensamentos” no sentido usado pelos
pais e educadores. Nas crianças de dez, doze ou quatorze anos, sejam elas meninos ou meninas,
pude convencer-me da confiabilidade desta afirmação, sem exceções.


Quanto à segunda reação emocional, que já não se dirige a mim e sim a minha paciente -
supondo-se que minha visão dela esteja correta -, eque considera horrível o caráter perverso de
suas fantasias, cabe-me frisar que não compete ao médico tal condenação apaixonada. Entre
outras coisas, considero despropositado que um médico, ao escrever sobre as aberrações das
pulsões sexuais, sirva-se de cada oportunidade paraintercalar no texto expressões de sua
repugnância pessoal ante coisas tão revoltantes. Estamos diante de um fato, e é de se esperar que
nos acostumemos a ele pondo de lado nossos própriosgostos. Precisamos aprender a falar sem
indignação sobre o que chamamos de perversões sexuais - essas transgressões da função sexual
tanto na esfera do corpo quanto na do objeto sexual. Já a indefinição dos limites do que se deve
chamar de vida sexual normal nas diferentes raças eépocas deveria arrefecer tal ardor fanático.
Tampouco nos devemos esquecer de que a perversão que nos é mais repelente, o amor sensual
de um homem por outro, não só era tolerada num povoculturalmente tão superior a nós quanto os
gregos, como também lhe eram atribuídas entre eles  importantes funções sociais. Na vida sexual
de cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos transgredimos um pouquinho os estreitos limites do que
se considera normal. As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético
dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, em sua totalidade, na disposição
sexual indiferenciada da criança, e cuja supressão  ou redirecionamento para objetivos assexuais
mais elevados - sua “sublimação” - destina-se a fornecer a energia para um grande  número de
nossas realizações culturais. Portanto, quando alguém  se tornagrosseira e manifestamente
pervertido, seria mais correto dizer que  permaneceucomo tal, pois exemplifica um estágio de
inibição do desenvolvimento. Todos os psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas
fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu
desenvolvimento. Por isso suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das
ações documentadas nos perversos, mesmo que eles não tenham lido a Psychopathia Sexualisde
Krafft-Ebing, livro a que as pessoas ingênuas atribuem uma parcela tão grande de culpa na gênese
das tendências perversas. As psiconeuroses são, porassim dizer, o negativo das perversões. Nos
neuróticos, a constituição sexual, na qual está contida a expressão da hereditariedade, atua em
combinação com as influências acidentais de sua vida que possam perturbar o desenvolvimento da
sexualidade normal. O curso d’água que encontra um  obstáculo em seu leito reflui para leitos
antigos que antes pareciam destinados a permanecer  secos. As forças impulsoras da formação
dos sintomas histéricos não provêm apenas da sexualidade  normalrecalcada, mas também das
moções perversasinconscientes.


As menos chocantes dentre as chamadas perversões sexuais são amplamente difundidas
por toda a população, como sabe todo o mundo, exceto os médicos que escrevem sobre o
assunto. Ou melhor, esses autores também sabem, só  que se empenham em esquecê-lo no
momento em que tomam da pena para escrever a respeito. Portanto, não surpreende que nossa
histérica de quasedezenove anos soubesse da existência desse tipo derelação sexual (sucção do
órgão masculino), criasse uma fantasia inconscientedessa natureza e a expressasse através da
sensação de cócega na garganta e da tosse. Tampoucoseria assombroso que ela chegasse a tal
fantasia mesmo sem contar com qualquer esclarecimento externo, como pude comprovar com
certeza em outras pacientes. É que, no caso dela, um fato digno de nota proporcionava a
precondição somática para tal criação independente  de uma fantasia que coincide com a prática
dos perversos. Ela lembrava muito bem de ter sido,  na infância, uma “chupadora de dedo”. O pai
também se recordava de tê-la feito abandonar esse hábito, que persistira até os quatro ou cinco
anos de idade. A própria Dora tinha clara na memória a imagem de uma cena de sua tenra infância
em que, sentada num canto do assoalho, ela chupava  o polegar esquerdo, enquanto com a mão
direita puxava o lóbulo da orelha do irmão, sentadoquieto a seu lado. Essa é a forma completa da
autogratificação pelo ato de chupar, tal como também me foi descrita por outras pacientes que
depois se tornaram anestésicas e histéricas.


Uma dessas pacientes deu-me uma informação que esclarece perfeitamente a origem
desse estranho hábito. Essa jovem senhora, que nunca deixara o hábito de chupar o dedo, via-se
numa lembrança de infância, supostamente da primeira metade de seu segundo ano de vida,
mamando no seio de sua ama e, ao mesmo tempo, puxando-lhe ritmicamente o lóbulo da orelha.
Ninguém há de contestar, penso eu, que a membrana mucosa dos lábios e da boca pode ser
considerada como umazona erógenaprimária, já que parte dessa significação é ainda preservada
no beijo tido como normal. A intensa atividade dessa zona erógena em idade precoce constitui,
portanto, a condição para a complacência somática posterior do trato da membrana mucosa que
começa nos lábios. Se depois, numa época em que já  se conhece o objeto sexual propriamente
dito, o membro masculino, surgem circunstâncias quetornam a aumentar a excitação da zona da
boca, que preservou seu caráter erógeno, não é preciso um grande dispêndio de força criadora
para substituir, na situação de satisfação, o mamilo originário e o dedo que fazia as vezes dele
pelo objeto sexual atual, o pênis. Assim, essa fantasia perversa e sumamente escandalosa de
chupar o pênis tem a mais inocente das origens; é anova versão do que se pode chamar de
impressão pré-histórica de sugar o seio da mãe ou da ama - uma impressão comumente revivida
no contato com crianças que estejam sendo amamentadas. Na maioria das vezes, o úbere da vaca
serve de representação intermediária adequada entreo mamilo e o pênis.


A recém-mencionada interpretação do sintoma da garganta de Dora também pode dar
margem a outra observação. Pode-se perguntar de quemodo essa situação sexual fantasiada se
harmoniza com nossa outra explicação, a saber, a deque o aparecimento e desaparecimento das
manifestações patológicas refletia a presença e ausência do homem amado, e, portanto, no
tocante à conduta da Sra. K., expressava o seguintepensamento: “Se  eufosse mulher dele, eu o
amaria de maneira muito diferente; adoeceria (de saudade, digamos) quando ele estivesse fora e
ficaria curada (de alegria) quando voltasse para casa.” A isso devo responder, por minha
experiência na resolução dos sintomas histéricos, que não é necessário que os diversos
significados de um sintoma sejam compatíveis entre  si, ou seja, que se complementem num todo
articulado. Basta que a interarticulação seja constituída pelo tema que deu origem às diversas
fantasias. Em nosso caso, além disso, tal compatibilidade não está excluída; um dos dois
significados se relaciona mais com a tosse, e o outro, com a afonia e o caráter cíclico do distúrbio.
Uma análise mais acurada provavelmente permitiria reconhecer um número muito maior de
elementos anímicos nos pormenores da enfermidade.


Já constatamos que, com bastante regularidade, um sintoma corresponde
simultaneamentea diversos significados; acrescentemos agora que também pode expressar
diversos significados sucessivamente. No decorrer dos anos, um sintoma pode alterar um  de seus
significados ou seu sentido principal, ou então o papel principal pode passar de um significado para
outro. Há como que um traço conservador no caráter das neuroses: uma vez formado, se possível,
o sintoma é preservado, mesmo que o pensamento inconsciente que nele encontrou expressão
tenha perdido seu significado. Mas também é fácil explicar mecanicamente essa tendência à
conservação do sintoma: é tão difícil a produção deum sintoma dessa natureza, são tantas as
condições favorecedoras necessárias à transposição de uma excitação puramente psíquica para o
corporal - isso que denominei de “conversão” -, e é tão raro dispor-se da complacência somática
necessária à conversão, que o impulso para a descarga da excitação vinda do inconsciente utiliza,
tanto quanto possível, qualquer via de descarga já  transitável. Muito mais fácil do que criar uma
nova conversão parece ser a produção de vínculos associativos entre um novo pensamento
carente de descarga e o antigo, que já não precisa  dela. Pela via assim facilitada flui a excitação
da nova fonte excitante para o antigo ponto de descarga, e o sintoma se assemelha, segundo as
palavras do Evangelho, a um odre velho repleto de vinho novo. Por estas observações, a parte
somática do sintoma histérico parece ser a mais estável e a mais difícil de substituir, enquanto a
psíquica se afigura como o elemento mais variável emais facilmente substituível. Todavia, não se
deve pretender inferir dessa relação nenhuma hierarquia entre os dois elementos. Para a terapia
psíquica, a parte psíquica é sempre a mais significativa.


No caso de Dora, a incessante repetição dos mesmos  pensamentos sobre as relações
entre seu pai e a Sra. K. possibilitou extrair da análise um outro material ainda mais importante.


Uma seqüência de pensamentos como essa pode ser descrita como hiperintensa, ou
melhor, reforçada ou hipervalente[“überwertig”] na acepção de Wernicke [1900, 140]. Ela mostra
seu caráter patológico, a despeito do conteúdo aparentemente correto, pela peculiaridade singular
de que, por maiores que sejam os esforços de pensamento conscientes e voluntários da pessoa,
não se pode dissipá-la ou eliminá-la. Uma seqüêncianormal de pensamentos, por mais intensa
que seja, acaba podendo ser eliminada. Dora achava,com toda razão, que seus pensamentos
sobre o pai reclamavam um julgamento especial. “Nãoconsigo pensar em outra coisa”, queixava-se ela repetidamente. “Meu irmão me diz que nós, osfilhos, não temos o direito de criticar esses
atos do papai, que não nos devemos preocupar com isso, e que talvez devamos até alegrar-nos
por ele ter encontrado uma mulher a quem pode se afeiçoar, já que mamãe o compreende tão
pouco. Também vejo isso, e gostaria de pensar como  meu irmão, mas não posso. Não posso
perdoá-lo.”


Ora, que fazer diante de tal pensamento hipervalente, depois de se tomar conhecimento de
sua fundamentação consciente, bem como dos protestos ineficazes feitos contra ele? Diz-se que
essa  seqüência hiperintensa de pensamentos deve seu reforço ao inconsciente. Ela é impossível
de resolver pelo trabalho do pensamento, seja porque suas raízes chegam até o material
inconsciente, recalcado, seja porque outro pensamento inconsciente se oculta por trás dela. Este
último é, na maioria das vezes, seu oposto direto.  Os opostos sempre estão estreitamente
interligados e, muitas vezes, separam-se em duplas  de tal maneira, que  um pensamento é
consciente com hiperintensidade, enquanto sua contrapartida é recalcada e inconsciente. Essa
relação entre os dois pensamentos é um efeito do processo de recalcamento. Com efeito, o
recalcamento muitas vezes se efetua por meio de um  reforço excessivo do oposto do pensamento
a ser recalcado. A esse processo  chamo reforço reativo, e designo por  pensamento reativoo
pensamento que se afirma na consciência com hiperintensidade e que, à maneira de um
preconceito, mostra-se indestrutível. Os dois pensamentos comportam-se então entre si como as
duas agulhas de um galvanômetro estático. O pensamento reativo mantém o pensamento
objetável sob recalcamento por meio de um certo excesso de intensidade, mas, em vista disso, ele
próprio fica “amortecido” e invulnerável aos esforços conscientes do pensamento. Portanto, a
maneira de retirar o reforço do pensamento hiperintensificadoconsiste em tornar consciente seu
oposto recalcado.


Não devemos excluir a expectativa de encontrar casos que não apresentam apenas um
desses fundamentos da hipervalência, mas sim a concorrência de ambos. Podem ainda surgir
outras complicações, mas é fácil articulá-las com oesquema geral.


Apliquemos agora nossa teoria ao exemplo fornecido  pelo caso de Dora. Começaremos
pela primeira hipótese, ou seja, de que a raiz de sua preocupação obsessiva com as relações entre
seu pai e a Sra. K. lhe era desconhecida por situar-se no inconsciente. Não é difícil adivinhar a
natureza dessa raiz a partir da situação e das manifestações de Dora. Seu comportamento
obviamente ia muito além da esfera de interesse de uma filha; ela se sentia e agia mais como uma
esposa ciumenta, como se consideraria compreensívelem sua mãe. Por sua exigência ao pai (“ou
ela ou eu”), pelas cenas que costumava criar e pelaameaça de suicídio que deixou entrever, é
evidente que ela se estava colocando no lugar da mãe. E se adivinhamos com acerto a fantasia de
situação sexual subjacente a sua tosse, nessa fantasia ela deveria estar-se colocando no lugar da
Sra. K. Portanto, identificava-se com as duas mulheres, a que o pai amara um dia e a que amava
agora. É óbvia a conclusão que sua inclinação pelo pai era muito maior do que ela sabia ou estava
disposta a admitir, ou seja, que estava apaixonada por ele.


Aprendi a ver nessas relações amorosas inconscientes entre pai e filha ou entre mãe e
filho, conhecidas por suas conseqüências anormais,  uma revivificação de germes dos sentimentos
infantis. Expus em outros lugaresem que tenra idade a atração sexual se faz sentir  entre pais e
filhos, e mostrei que a lenda de Édipo provavelmente deve ser considerada como a elaboração
poética do que há de típico nessas relações. É provável que se encontre na maioria dos seres
humanos um traço nítido dessa inclinação precoce dafilha pelo pai e do filho pela mãe, e deve-se
presumir que ela seja mais intensa, já desde o início, no caso das crianças constitucionalmente
destinadas à neurose, que têm amadurecimento precoce e são famintas de amor. Entram então
em jogo certas influências que não abordaremos aquie que levam à fixação desse impulso
amoroso rudimentar, ou que o reforçam de tal modo que ele se transforma, ainda na infância ou,
no máximo, na puberdade, em algo equiparável a uma  inclinação sexual e que, como esta, tem a
libido a seu dispor. As circunstâncias externas de nossa paciente não  eram nada desfavoráveis a
tal suposição. Sua predisposição sempre a atraíra para o pai, e as numerosas doenças deste hão
de ter forçosamente aumentado sua ternura por ele.  Em muitas dessas doenças, ele não permitia
que ninguém senão ela lhe prestasse os pequenos serviços que seu tratamento requeria;
orgulhoso do desenvolvimento precoce da inteligência dela, ele a tornara, ainda criança, sua
confidente. Com o aparecimento da Sra. K., na verdade não foi a mãe, e sim ela, que foi
desalojada de mais de uma posição.


Quando comuniquei a Dora que só me era possível supor que sua inclinação pelo pai, já
em época precoce, deveria ter tido o caráter de um  completo enamoramento, é verdade que ela
me deu sua resposta corriqueira: “Não me lembro disso.” Logo em seguida, porém, contou-me algo
análogo sobre uma prima de sete anos (por parte da  mãe), em quem ela freqüentemente julgava
ver uma espécie de reflexo de sua própria infância.Essa menina tornara a testemunhar uma
discussão acalorada entre os pais e sussurrou no ouvido de Dora, que acabava de chegar para
uma visita: “Você não pode imaginar como odeio essapessoa!” (apontando para a mãe) “E um dia,
quando ela morrer, vou me casar com papai.” Costumover nessas associações, que trazem à tona
algo que concorda com o conteúdo de uma afirmação minha, uma confirmação vinda do
inconsciente. Nenhuma outra espécie de “sim” pode ser extraída do inconsciente; não existe, em
absoluto, um “não” inconsciente.


Por anos a fio Dora não externalizara essa paixão pelo pai; ao contrário, manteve-se por
muito tempo na mais cordial harmonia com a mulher que a suplantara junto a ele e, como sabemos
através de suas autocensuras, ainda facilitou as relações dessa mulher com seu pai. Esse amor
pelo pai, portanto, fora recentemente reavivado e, sendo esse o caso, podemos perguntar-nos com
que finalidade isso ocorreu. Obviamente, como sintoma reativo para suprimir alguma outra coisa
que, por conseguinte, ainda era poderosa no inconsciente. Considerando a situação, não pude
deixar de supor, em primeiro lugar, que o suprimidoera seu amor pelo Sr. K. Foi-me forçoso
presumir que ela ainda estava apaixonada por ele, mas que desde a cena do lago, por motivos
desconhecidos, seu amor tropeçava numa violenta resistência, que a moça retomara e reforçara
sua velha afeição pelo pai para não ter de notar nada em sua consciência sobre esse amor dos
primeiros anos de sua adolescência, que agora se tornara penoso para ela. Assim pude também
discernir um conflito que muito se prestava para desorganizar a vida anímica da moça. Por um
lado, muito a consternava ter de rejeitar a proposta desse homem e ela sentia muita saudade da
pessoa dele e de todos os pequenos sinais de sua afeição; por outro lado, esses impulsos de
ternura e saudade eram combatidos por motivos poderosos, dentre os quais era fácil perceber seu
orgulho. Desse modo, ela conseguiu convencer-se de que havia rompido com o Sr. K. - era esse o
lucro que retirava desse processo típico de recalcamento -, mas, ainda assim, era obrigada a
recorrer a sua afeição infantil pelo pai e a exagerá-la, para se proteger do enamoramento que
assediava constantemente sua consciência. O fato deela ser quase incessantemente dominada
pelo mais amargo ciúme parecia ainda admitir mais uma determinação.


Não trouxe nenhum desapontamento para minhas expectativas que essa exposição dos
fatos provocasse em Dora a mais enfática negativa.  O “não” ouvido do paciente depois de se
apresentar pela primeira vez um pensamento recalcado à sua percepção consciente não faz senão
constatar a existência de um recalcamento e sua firmeza; serve, por assim dizer, para medir a
força deste. Quando esse “não”, em vez de ser considerado como expressão de um juízo imparcial
(do qual, por certo, o doente não é capaz), é ignorado, dando-se prosseguimento ao trabalho, logo
aparecem as primeiras provas de que, nesses casos,  o “não” significa o desejado “sim”. Dora
admitiu que não conseguia ficar tão zangada com o Sr. K. quanto ele merecia. Contou-me que um
dia o encontrara na rua quando estava em companhia de uma prima que não o conhecia. A prima
exclamara repentinamente: “Dora, o que há com você?Você ficou pálida como um cadáver!” Ela
própria não sentira nada dessa alteração, mas expliquei-lhe que a fisionomia e a expressão dos
afetosobedecem mais ao inconsciente do que ao conscientee são traiçoeiras para o primeiro. De
outra feita, Dora apareceu-me no pior mau humor, depois de vários dias em que estivera sempre
no melhor dos ânimos. Não soube explicá-lo; estava  muito contrariada, declarou; era aniversário
de seu tio e ela não se animava a cumprimentá-lo, não sabia por quê. Minha arte interpretativa
estava embotada nesse dia; deixei que ela continuasse falando e, de repente, ela se lembrou de
que era também aniversário do Sr. K., fato este quenão deixei de aproveitar contra ela. Já então
não foi difícil explicar por que os lindos presentes que ela ganhara em seu aniversário, alguns dias
antes, não lhe trouxeram nenhuma alegria. É que faltava um presente, o do Sr. K., que obviamente
fora antes o mais precioso de todos.


Não obstante, Dora continuou por algum tempo a negar minha afirmação, até que, próximo
do término da análise, a prova conclusiva de sua exatidão veio à tona (ver em [1]).


Devo agora considerar uma outra complicação a que certamente não daria espaço, fosse
eu um escritor empenhado na criação de um espaço anímico desse tipo para um conto, e não um
médico empenhado em sua dissecação. O elemento que  apontarei agora só serve para turvar e
confundir a beleza e a poesia do conflito que pudemos supor em Dora; ele é justificadamente
sacrificado pela censura do escritor, que sem dúvida simplifica e abstrai quando faz as vezes de
psicólogo. Mas no fundo da realidade, que me esforço por retratar aqui, a regra é a complicação
dos motivos, a acumulação e a combinação das moçõesanímicas - em suma, a
sobredeterminação. Por trás da seqüência hipervalente de pensamentos que se ocupavam com as
relações entre o pai de Dora e a Sra. K. ocultava-se, de fato, um impulso de ciúme cujo objeto era
essa mulher - ou seja, um impulso que só se poderiafundamentar numa inclinação para o mesmo
sexo. Há muito se sabe e já se tem assinalado que,  na puberdade, com freqüência, tanto os
meninos quanto as meninas, mesmo nos casos normais,mostram claros indícios da existência de
uma inclinação para pessoas do mesmo sexo. A amizade entusiástica por uma colega de escola,
acompanhada de juras, beijos, promessas de correspondência eterna e toda a sensibilidade do
ciúme, é o precursor comum da primeira paixão intensa de uma moça por um homem. Em
circunstâncias favoráveis, a corrente homossexual amiúde seca por completo, mas, quando não se
é feliz no amor por um homem, ela torna a ser despertada pela libido nos anos posteriores e é
aumentada em maior ou menor intensidade. Se nas pessoas sadias isso pode ser confirmado sem
esforço e se levarmos em conta nossas observações anteriores (ver em [1] e [2]) sobre o maior
desenvolvimento, nos neuróticos, dos germes normaisda perversão, devemos também esperar, na
constituição destes, uma predisposição homossexual  mais forte. E deve ser assim, pois até hoje
nunca passei por uma só psicanálise de um homem ou de uma mulher sem ter de levar em conta
uma corrente homossexual bastante significativa. Nas mulheres e moças histéricas cuja libido
sexual voltada para o homem é energicamente suprimida, constata-se com regularidade que a
libido dirigida para as mulheres é vicariamente reforçada e até parcialmente consciente.


Não continuarei abordando aqui esse importante tema, particularmente indispensável ao
entendimento da histeria masculina, porque a análise de Dora terminou antes que pudesse lançar
luz sobre essas circunstâncias. Mas convém lembrar a já citada governanta (ver em [1]) com quem,
a princípio, Dora conviveu na mais íntima troca de  idéias até descobrir que ela não a apreciava
nem a tratava bem por sua própria causa, e sim por causa de seu pai, e então obrigá-la a deixar a
casa. Dora também costumava repisar com notável freqüência e com ênfase peculiar a história de
uma outra desavença que até mesmo a ela parecia inexplicável. Sempre se dera particularmente
bem com sua segunda prima, a mesma que depois ficounoiva (ver em [1]), partilhando com ela
toda sorte de segredos. Na primeira vez em que o pai voltou a B depois do passeio interrompido
no lago, e Dora naturalmente se recusou a acompanhá-lo, pediram a essa prima que viajasse com
ele, e ela aceitou. Daí em diante, Dora sentira frieza em relação a ela, e se surpreendia, ela
própria, ao verificar o quanto a outra lhe era agora indiferente, por mais que, como admitia, não
pudesse fazer à prima nenhuma grande censura. Essassusceptibilidades levaram-me a perguntar
quais tinham sido suas relações com a Sra. K. até aépoca do rompimento. Inteirei-me, então, de
que a jovem mulher e a menina apenas adolescente tinham vivido durante anos na mais estreita
intimidade. Quando Dora se hospedava com os K., costumava partilhar o quarto com a Sra. K.,
sendo o marido desalojado. Dora era a confidente e  conselheira da mulher em todas as
dificuldades de sua vida conjugal; não havia nada de que não conversassem. Medéia ficou muito
contente em ver Creusa tornar-se amiga de seus doisfilhos, e também não fez nada para estorvar
o relacionamento entre a moça e o pai das crianças.Como foi que Dora conseguiu apaixonar-se
pelo homem sobre quem sua adorada amiga tinha tantas coisas ruins a dizer constitui um
interessante problema psicológico, sem dúvida solucionável quando compreendermos que, no
inconsciente, os pensamentos vivem muito comodamente lado a lado, e até os opostos se toleram
sem antagonismo - um estado de coisas que, com bastante freqüência, persiste até mesmo no
consciente.


Quando Dora falava sobre a Sra. K., costumava elogiar seu “adorável corpo alvo” num tom
mais apropriado a um amante do que a uma rival derrotada. Noutra ocasião, mais triste do que
com raiva, ela me disse estar convencida de que os  presentes que o pai lhe oferecia eram
escolhidos pela Sra. K., pois reconhecia seu gosto.De outra feita ainda, ela assinalou que a
haviam presenteado, evidentemente por intervenção da Sra. K., com algumas jóias que eram
exatamente idênticas às que vira na casa dela, expressando então em voz alta o desejo de possuí-las. Na verdade, devo dizer que nunca ouvi dela umasó palavra áspera ou irada sobre essa
mulher, embora, do ponto de vista de seus pensamentos hipervalentes, devesse ver nela a
principal causadora de suas desventuras. Dora parecia comportar-se de maneira
inconseqüente,mas sua aparente inconseqüência era justamente a expressão de uma corrente
complicadora de sentimentos. De fato, como se comportara para com Dora essa amiga tão
entusiasticamente amada? Depois que Dora formulou sua acusação contra o Sr. K e seu pai
escreveu para ele pedindo-lhe uma explicação, o Sr.K. respondeu, inicialmente, protestando a
mais alta estima por ela e se oferecendo para ir até a cidade industrial a fim de esclarecer todos os
mal-entendidos. Passadas algumas semanas, quando o pai de Dora falou com ele em B , já não se
tocou mais na estima. Ao contrário, o Sr. K. depreciou a moça e jogou seu trunfo: uma moça que
lia tais livros e se interessava por aquelas coisasnão podia ter nenhuma pretensão ao respeito de
um homem. A Sra. K., portanto, a havia traído e caluniado, pois somente com ela é que Dora falara
sobre Mantegazza e sobre temas proibidos. Era uma repetição do que acontecera com a
governanta: a Sra. K. também não a amara por ela mesma, e sim por causa do pai. Ela a havia
sacrificado sem um momento de hesitação para que seu relacionamento com o pai de Dora não
fosse perturbado. Essa ofensa talvez a tenha tocadomais de perto e tido maior efeito patogênico
do que a outra com que ela tentou encobri-la, ou seja, a de ter sido sacrificada pelo pai. Acaso a
amnésia tão obstinadamente perseverante a respeito das fontes de seu conhecimento proibido (ver
em [1] e [2]) não apontaria diretamente para o valor emocional da acusação que lhe foi feita e, por
conseguinte, para sua traição pela amiga?


Creio não estar errado, portanto, em supor que a seqüência hipervalente de pensamentos
de Dora, que a fazia ocupar-se das relações entre seu pai e a Sra. K., destinava-se não apenas a
suprimir seu amor pelo Sr. K., que antes fora consciente, mas também a ocultar o amor pela Sra.
K., que era inconsciente num sentido mais profundo.A seqüência hipervalente de pensamentos
era diretamente oposta a esta última corrente. Doradizia a si mesma incessantemente que seu pai
a sacrificara a essa mulher, fazia demonstrações ruidosas de que a invejava pela posse do pai e,
dessa maneira, ocultava de si mesma o oposto que: invejava o pai pelo amor da Sra. K. e que não
perdoava à mulher amada a desilusão que ela lhe causara com sua traição. A moção de ciúme
feminino estava ligada, no inconsciente, ao ciúme que um homem sentiria. Essas correntes de
sentimentos masculinos, ou, melhor dizendo, ginecofílicos, devem ser consideradas típicas da vida
amorosa inconsciente das moças histéricas.


 
O PRIMEIRO SONHO

Justamente no momento em que havia perspectivas de  esclarecer um ponto obscuro da
infância de Dora através do material que se impunhaà análise, ela me informou que, algumas
noites antes, voltara a ter um sonho que já lhe ocorrera repetidas vezes exatamente da mesma
maneira. Um sonho periodicamente repetido, já por essa simples característica, estava fadado a
despertar minha curiosidade; e de fato, era justificável, no interesse do tratamento, considerar o
entrelaçamento desse sonho na trama da análise. Resolvi, portanto, proceder a uma investigação
particularmente cuidadosa.


Eis o sonho, tal como Dora o relatou: “Uma casa estava em chamas. Papai estava ao lado
da minha cama e me acordou. Vesti-me rapidamente. Mamãe ainda queria salvar sua caixa de
jóias, mas papai disse: `Não quero que eu e meus dois filhos nos queimemos por causa da sua
caixa de jóias.’ Descemos a escada às pressas e, logo que me vi do lado de fora, acordei.”


Como se tratava de um sonho recorrente, naturalmente lhe perguntei quando o tivera pela
primeira vez. Não sabia dizer. Mas se recordava de ter tido o sonhotrês noites sucessivas em L (o
lugar no lago onde ocorrera a cena com o Sr. K.), eagora voltara a tê-lo algumas noites atrás, aqui
[em Viena]. Naturalmente, a ligação assim estabelecida entre o sonho e os acontecimentos de L
aumentou minhas expectativas a respeito de sua solução. Mas primeiro eu queria descobrir qual
fora o motivo de sua recente repetição, e, por conseguinte, pedi a Dora, que por alguns pequenos
exemplos antes analisados já estava instruída na interpretação dos sonhos, que decompusesse o
sonho e me comunicasse o que lhe ocorria a propósito dele.


- “Ocorre-me uma coisa”, disse ela, “mas não pode ter nenhuma relação com isso, porque
é muito recente, ao passo que sem dúvida eu já tivera o sonho antes.”

- Não tem importância, vá em frente - respondi; - éjustamente a última coisa que se
adequa ao sonho.

- “Está bem; nesses últimos dias papai teve uma discussão com mamãe porque ela tranca
a sala de jantar à noite. É que o quarto de meu irmão não tem entrada independente, e só se pode
chegar a ele pela sala de jantar. Papai não quer que meu irmão fique trancado assim à noite. Diz
ele que isso não é bom; pode acontecer alguma coisadurante a noite que torne necessário sair.”

- E isso a fez pensar no risco de um incêndio?

- “Sim”.

- Bem, peço-lhe que preste muita atenção a suas próprias expressões. Talvez precisemos
delas. Você disse que “pode acontecer alguma coisadurante a noite que torne necessário sair.”


Dora, porém, descobrira agora o vínculo entre a causa recente e a causa original do
sonho, pois prosseguiu:

- “Quando chegamos a L naquela ocasião, papai e eu, ele manifestou abertamente sua
angústia diante da possibilidade de um incêndio. Chegamos em meio a uma violenta tempestade e
vimos que a casinha de madeira não tinha pára-raios. Logo, a angústia era muito natural.”


Cabia-me agora estabelecer a relação entre os acontecimentos em L e os sonhos do
mesmo teor que ela tivera nessa época. Assim, perguntei: Você teve o sonho nas primeiras noites
em L ou nas últimas, antes de sua partida? Quer dizer, antes ou depois da conhecida cena no
bosque? (De fato, eu sabia que a cena não ocorrera  logo no primeiro dia, e que depois disso ela
ainda permanecera alguns dias em L sem deixar transparecer nenhum indício do incidente.)


Sua primeira resposta foi “Não sei”, mas, passados  alguns momentos, acrescentou: “Mas
creio que foi depois.”


Portanto, agora eu sabia que o sonho fora uma reação àquela experiência. Mas por que se
repetira ali três vezes? Continuei perguntando: Quanto tempo você ainda ficou em L depois da
cena?

- “Mais quatro dias, e no quinto fui embora com papai.”

- Agora tenho certeza de que o sonho foi o efeito imediato de sua experiência com o Sr. K.
Foi em L que você teve o sonho pela primeira vez, e não antes. Você introduziu essa incerteza na
lembrançaapenas para obliterar em si mesma a ligação. Mas para mim, os números ainda não se
ajustam muito. Se você ainda ficou em L mais quatro noites, poderia ter tido o sonho mais quatro
vezes. Será que foi isso?


Ela não contradisse mais minha afirmação, porém, aoinvés de responder a minha
pergunta, prosseguiu: “Na tarde seguinte ao nosso passeio pelo lago, doqual o Sr. K. e eu
voltamos ao meio-dia, eu tinha-me recostado no sofádo quarto, como de costume, para dormir um
pouco. De repente, acordei e vi o Sr. K. parado em frente a mim…”

- Quer dizer, tal como você viu seu pai no sonho aolado de sua cama?

- “Foi. Mandei que ele explicasse o que estava procurando ali. Como resposta, ele disse
que não ia deixar de entrar no seu próprio quarto quando quisesse; além disso, queria apanhar
alguma coisa. Com isso, fiquei prevenida, pergunteià Sra. K. se não havia uma chave do quarto e,
na manhã seguinte (no segundo dia), tranquei-me enquanto fazia minha toalete. À tarde, quando
quis me trancar para deitar de novo no sofá, a chave tinha sumido. Estou convencida de que o Sr.
K. a havia retirado.”


Aí está, portanto, o tema de trancar ou não o quarto, que surgiu na primeira associação ao
sonhoe que, casualmente, também desempenhou um papel nacausa recente do sonho.
Pertenceria também a esse contexto a frase “Vestia-me rapidamente”?

- “Foi então que resolvi não ficar mais na casa dosK. na ausência do papai. Nas manhãs
seguintes, eu não podia deixar de temer que o Sr. K. me surpreendesse enquanto fazia minha
toalete, e  por isso sempre me vestiamuito rapidamente. É que papai ficava no hotel, e a Sra. K.
sempre saía cedo para fazer alguma excursão com ele. Mas o Sr. K. não voltou a me importunar.”

- Compreendo. Na tarde do segundo dia, você formou  o propósito de escapar dessas
perseguições, e então, na segunda, terceira e quarta noites depois da cena no bosque, teve tempo
de repetir esse propósito enquanto dormia. (Já na segunda tarde - antes do sonho, portanto, - você
sabia que na manhã seguinte, a terceira, não teria  a chave para se trancar enquanto se vestia, e
pôde então formar o propósito de se vestir o mais depressa possível.) Mas seu sonho se repetia
todas as noites justamente por corresponder a um propósito. O propósito persiste até ser realizado.
Você como que disse a si mesma: “Não terei tranqüilidade, não poderei ter um sono tranqüilo
enquanto não estiver fora desta casa.” É o inverso  disso que você diz no sonho: “Logo que me vi
do lado de fora, acordei.”


lnterrompo aqui o relato da análise para comparar esse pequeno fragmento de
interpretação dos sonhos com minhas teses gerais sobre o mecanismo da formação dos sonhos.
Em meu livro  A Interpretação dos Sonhos(1900a), afirmei que todo sonho é um desejo que se
representa como realizado, que a representação é encobridora quando se trata de um desejo
recalcado, que pertence ao inconsciente, e que, salvo no caso dos sonhos das crianças, só o
desejo inconsciente ou um desejo que chegue até o inconsciente possui a força para formar um
sonho. Creio que minha teoria conseguiria com mais  certeza obter aceitação geral se eu me
tivesse contentado com a afirmação de que todo sonho tem um sentido possível de ser descoberto
mediante um certo processo de interpretação. Uma vez completa a interpretação, poder-se-ia
substituir o sonho por pensamentos que se enquadrariam na vida anímica de vigília num ponto
facilmente reconhecível. E teria então podido prosseguir dizendo que esse sentido do sonho é tão
diversificado quanto os processos de pensamento da  vigília. Numa ocasião se trataria de um
desejo realizado, noutra, de um temor realizado, noutra ainda, de uma reflexão prosseguida
durante o sono, ou de um propósito (como no sonho de Dora), de um fragmento de produção
mental durante o sono etc. Essa exposição sem dúvida teria sido atraente por sua simplicidade, e
poderia ter-se apoiado num grande número de exemplos bem interpretados, como no caso do
sonho aqui analisado.


Em vez disso, formulei uma tese geral que restringeo sentido dos sonhos a uma única
forma de pensamento - a representação de desejos -,e assim provoquei a inclinação universal à
discordância. Devo dizer, porém, que não me achei no direito ou no dever de simplificar um
processo psicológico para torná-lo mais agradável aos leitores, quando minha investigação
mostrava nele uma complicação cuja solução, para ser homogênea, teria primeiro de ser
encontrada em outro lugar. Por isso, tem para mim um valor especial demonstrar que as aparentes
exceções, como esse sonho de Dora, que a princípio  se afigurou como a continuação de um
propósito diurno durante o sono, não fazem senão corroborar novamente a regra contestada. (Ver
a partir de [1])


Certamente, temos ainda uma grande parte do sonho por interpretar. Minhas perguntas
prosseguiram:

- Como é isso da caixa de jóias que sua mãe queria salvar?

- “Mamãe gosta muito de jóias e ganhou várias do papai.”

- E você?

- “Eu também gostava muito de jóias antes; desde a  doença não tenho usado nenhuma.
Um dia, faz uns quatro anos (um ano antes do sonho), houve uma grande discussão entre papai e
mamãe por causa de uma jóia. Mamãe queria para ela  algo especial, umas gotas de pérolas
[Tropfen von Perlen] para usar como pingentes nas orelhas. Mas papai não gostava disso e, em
vez das gotas, trouxe-lhe uma pulseira. Ela ficou furiosa e disse que, já que ele tinha gasto tanto
dinheiro num presente de que ela não gostava, melhor seria que o desse a outra pessoa.”

- E você terá pensado que o aceitaria com prazer?

- “Não sei, não tenho a menor idéia de como mamãe entra no sonho; ela não estava
conosco em L nessa época.”

- Depois lhe explicarei isso. Não lhe ocorre nada mais sobre a caixa de jóias
[Schrmuckkästchen]? Até agora, você só falou sobre as jóias [Schmuck], e nada sobre a caixinha
[Kästchen].

- “Sim, o Sr. K. me presenteara pouco tempo antes com uma caixinha de jóias
dispendiosa.”

- Então seria muito apropriado retribuir o presente. Talvez você não saiba que “caixa de
jóias” é uma expressão muito apreciada para a mesmacoisa a que você aludiu, não faz muito
tempo, com a bolsinhaque estava usando: os genitais femininos.

- “Sabia que o senhor ia dizer isso.”

- Ou seja, você  sabiadisso… Agora o sentido do sonho está ficando aindamais claro.
Você disse a si mesma: esse homem está me perseguindo; quer forçar a entrada em meu quarto,
minha “caixa de jóias” está em perigo e, se acontecer alguma desgraça, a culpa é do papai. Foi por
isso que escolheu, no sonho, uma situação que expressa o oposto, um perigo de que seu pai a
salva. Nessa parte do sonho, em geral, tudo está transformado em seu oposto; você logo saberá
por quê. O mistério certamente reside em sua mãe. Como é que a mamãe entra no sonho? Ela é,
como você sabe, sua rival anterior nos favores de seu pai. No episódio da pulseira, você teria
aceito de bom grado o que sua mãe rejeitou. Agora, vamos substituir “aceitar” por “dar” e “rejeitar”
por “recusar”. Isso quer dizer, então, que você estaria disposta a dar a seu pai o que sua mãe lhe
recusava, e a coisa que se trata teria a ver com uma jóia. Pois bem, lembre-se agora da caixa de
jóias que o Sr. K. lhe deu. Você tem aí o ponto de  partida para uma seqüência paralela de
pensamentos, na qual seu pai deve ser substituído pelo Sr. K., tal como aconteceu na situação de
ele estar em frente a sua cama. Ele lhe deu uma caixa de jóias e, portanto, você tem de presenteá-lo com sua caixa de jóias; por isso falei há pouco  em “retribuição do presente”. Nessa seqüência
de pensamentos, sua mãe deve ser substituída pela Sra. K., que estava presente, ela sim, naquela
ocasião. Logo, você está disposta a dar ao Sr. K. oque a mulher dele lhe recusa. Aí está o
pensamento que você teve de recalcar com tanto esforço e que tornou necessária a transformação
de todos os elementos em seu oposto. O sonho torna a corroborar o que eu já lhe tinha dito antes
de você sonhá-lo: que você está evocando seu antigoamor por seu pai para se proteger de seu
amor pelo Sr. K. Mas, o que mostram todos esses esforços? Não só que você temeu o Sr. K., mas
que temeu ainda mais a si mesma, temeu ceder à tentação dele. Confirmam também, portanto,
quão intenso era seu amor por ele.


Naturalmente, Dora não quis acompanhar-me nessa parte da interpretação. Mas eu
conseguira dar um passo adiante na interpretação dosonho, que parecia indispensável tanto para
a anamnese do caso quanto para a teoria dos sonhos.Prometi comunicar isso a Dora na sessão
seguinte.


O fato é que eu não podia esquecer a indicação que parecia brotar das já citadas palavras
ambíguas (pode acontecer uma desgraça durante a noite que torne necessário sair). A isso se
acrescentou o fato de que o esclarecimento do sonhome pareceria incompleto enquanto não se
satisfizesse um certo requisito, que certamente nãoquero estabelecer como universal, mas cuja
satisfação procuro buscar. Um sonho de formação regular apóia-se, por assim  dizer, em duas
pernas, uma das quais está em contato com a causa atual essencial, e a outra, com algum
acontecimento relevante da infância. Entre esses dois fatores, a experiência infantil e a atual, o
sonho estabelece uma ligação esforçando-se por remodelar o presente segundo o modelo do
passado mais remoto. É que o desejo que cria o sonho sempre provém da infância e sempre tenta
retransformá-la em realidade, corrigir o presente segundo a infância. Eu acreditava já poder
discernir claramente, no conteúdo do sonho de Dora,os elementos passíveis de se combinarem
numa alusão a um acontecimento da infância.


Iniciei sua elucidação com um pequeno experimento que, como de hábito, teve êxito.
Casualmente, havia sobre a mesa uma grande caixa defósforos. Pedi a Dora que olhasse em
volta para ver se notava sobre a mesma algo de especial que não costumasse estar ali. Não viu
nada. Perguntei-lhe então se sabia por que as crianças eram proibidas de brincar com fósforos.

- “Sim, é por causa do perigo de incêndio. Os filhos de meu tio gostam muito de brincar
com fósforos.”

- Não é só por isso. Elas são advertidas de “não brincar com fogo”, e isso é acompanhado
de uma certa crença.


Dora nada sabia a respeito. - Pois bem, teme-se queelas molhem a cama. A antítese entre
águae  fogopor certo se encontra na base disso. Talvez elas sonhem com fogo e depois tentem
apagá-lo com água. Não sei dizer com exatidão. Mas  vejo que a oposição entre água e fogo no
sonho presta a você extraordinários serviços. Sua mãe queria salvar a caixa de jóias para que ela
não fosse  queimada; nos pensamentos do sonho, em contrapartida, trata-se de que a “caixa de
jóias” não fique molhada. Mas fogo não é empregado apenas como oposto de água; serve também
como representação direta do amor, de estar enamorado, ardendo de paixão. Portanto, de “fogo”
parte uma via que, passando por esse sentido simbólico, chega aos pensamentos amorosos,
enquanto que a outra via, por intermédio do oposto “água” e depois de fazer uma ramificação que
estabelece outro vínculo com “amor” (pois também este deixa as coisas molhadas), leva a outra
direção. Mas, para onde? Pense em sua própria expressão: à noite, pode acontecer uma desgraça
que torne forçoso sair. Não significaria isso uma necessidade física? E,  se você transpuser essa
desgraça para a infância, que outra coisa ela poderia ser senão molhar a cama? E o que é que se
costuma fazer para evitar que as crianças molhem a  cama? Não são elas despertadas do sono
durante a noite,  exatamente como seu pai acordou você no sonho? Esse seria, portanto, o
acontecimento real que lhe permitiu substituir o Sr. K., que realmente a despertou do sono, por seu
pai. Devo então inferir que você continuou a molhara cama por mais tempo do que costuma
acontecer com as crianças. O mesmo deve ter ocorrido com seu irmão, pois seu pai disse: “Não
quero que meus dois filhos… pereçam. Seu irmão nada tem a ver com a situação  atual dos K.,
nem tampouco foi a L . Que dizem suas lembranças sobre isso?

- “Quanto a mim, não sei nada” - respondeu ela -, “mas meu irmão molhava a cama até os
seis ou sete anos, e muitas vezes isso lhe aconteceu até de dia.”


Eu estava a ponto de lhe fazer uma observação sobrecomo é mais fácil recordar uma
coisa assim a respeito de um irmão do que de si mesmo, quando ela prosseguiu, com a memória
recuperada:

- “Sim, isso também me aconteceu por algum tempo, mas só no sétimo ou oitavo ano.
Deve ter sido grave, porque agora me lembro que o médico foi consultado. Durou até pouco antes
de minha asma nervosa” (ver em [1]).

- Que disse o médicoa respeito?

- “Explicou que era uma debilidade nervosa; passaria logo, achou ele; e receitou um
tônico.”


A interpretação do sonho agora me parecia completa. No dia seguinte, porém, Dora ainda
me trouxe um aditamento. Esquecera de contar que todas as vezes, depois de acordar, sentia
cheiro de fumaça. A fumaça, é claro, combinava bem com o fogo, mas indicava, além disso, que o
sonho tinha uma relação especial comigo, pois, quando ela afirmava que por trás disto ou daquilo
não havia nada escondido, eu costumava retrucar: “onde há fumaça há fogo.” Mas Dora fez a essa
interpretação puramente pessoal a objeção de que o  Sr. K. e seu pai eram fumantes apaixonados,
como eu também, aliás. Ela mesma fumara durante suaestada no lago, e o Sr. K. acabara de
enrolar-lhe um cigarro pouco antes de iniciar sua lastimável corte. Ela também acreditava lembrar
com certeza que o cheiro de fumaça não aparecera pela primeira vez apenas na ocasião do último
reaparecimento do sonho, mas também nas três vezes  em que ele ocorreu em L . Posto que se
recusasse a fornecer-me outras informações, coube amim determinar como inserir esse
aditamento na trama dos pensamentos do sonho. Como  ponto de referência, pude servir-me do
fato de que a sensação da fumaça só havia surgido como um acréscimo ao sonho, ou seja, deveria
ter tido que superar um esforço especial do recalcamento. Por conseguinte, provavelmente se
relacionava com o pensamento mais obscuramente representado e mais bem recalcado no sonho,
ou seja, a tentação de se mostrar disposta a ceder  ao homem. Sendo assim, dificilmente poderia
significar outra coisa senão a ânsia de um beijo, que, trocado com um fumante, necessariamente
cheiraria a fumo; mas tinha havido um beijo entre eles cerca de dois anosantes, e por certo ter-se-ia repetido mais de uma vez se a moça tivesse cedido ao galanteio. Os pensamentos ligados à
tentação, portanto, pareciam ter remontado à cena anterior e revivido a lembrança do beijo contra
cuja atração sedutora a pequena “chupadora de dedo”se protegera, a seu tempo, por meio do
asco. Por fim, considerando os indícios de uma transferência para mim, posto que também sou
fumante, cheguei à conclusão de que um dia, duranteuma sessão, provavelmente lhe ocorrera
que ela desejaria ser beijada por mim. Esse teria sido o pretexto que a levou a repetir o sonho de
advertência e a formar a intenção de interromper o tratamento. Tudo se encaixa muito bem dessa
maneira, mas, devido às particularidades da “transferência”, fica privado de comprovação. (ver em
[1])


Agora eu poderia hesitar entre considerar primeiramente o partido a ser tirado desse sonho
para a história clínica do caso, ou começar por abordar a objeção que, com base nele, pode-se
fazer a teoria dos sonhos. Opto pela primeira alternativa.


Vale a pena examinar detidamente a significação da  enurese para a história primitiva do
neurótico. A bem da clareza, limito-me a destacar que o caso de Dora, no aspecto de molhar a
cama, não era o habitual. Essa perturbação não apenas persistira além da época admitida como
normal, mas também, segundo o depoimento explícito  de Dora, primeiro desaparecera e depois
tornara a surgir em época relativamente tardia, após o sexto ano de vida (ver em [1]). Ao que eu
saiba, esse tipo de enurese não tem outra causa mais provável do que a masturbação, a qual, na
etiologia da enurese em geral, desempenha um papel que ainda não foi suficientemente apreciado.
Em minha experiência, as próprias crianças tiveram  um dia um conhecimento muito claro dessa
ligação, e daí decorrem todas as suas conseqüênciaspsíquicas, como se elas nunca a tivessem
esquecido. Ora, na época em que Dora relatou o sonho, estávamos empenhados numa linha de
investigação que levava diretamente à admissão de que ela se masturbara na infância. Pouco
antes, ela havia perguntado exatamente por que havia adoecido, e, antes que eu lhe desse uma
resposta, pusera a culpa no pai. A justificação disso não provinha de seus pensamentos
inconscientes, mas de um conhecimento consciente. Ajovem sabia, para minha surpresa, qual
tinha sido a natureza da doença de seu pai. Depois de ele regressar de meu consultório (ver em [1]
e [2]), ela entreouvira uma conversa em que o nome da doença fora mencionado. Em época ainda
anterior, na ocasião do descolamento da retina (verem [1]), um oculista consultado deve ter
aludido à etiologia luética, pois a menina curiosa  e preocupada, dessa vez, ouvira uma tia idosa
dizer a sua mãe: “Ele já era doente antes do casamento”, e acrescentar algo que lhe fora
incompreensível, mas que, posteriormente, ela interpretara para si mesma como ligado a coisas
indecorosas.


Portanto, o pai adoecera por levar uma vida leviana, e ela supunha que lhe tivesse
transmitido o estado doentio por hereditariedade. Tive o cuidado de não lhe dizer que, como já
afirmei (em [1]), também eu sou de opinião que os descendentes dosluéticos são muito
particularmente predispostos a graves neuropsicoses. Esse curso de pensamento acusatório ao
pai prosseguiu através do material inconsciente. Por um período de vários dias ela se identificou
com a mãe através de pequenos sintomas e peculiaridades, o que lhe deu oportunidade de
produzir alguns comportamentos realmente insuportáveis; deu-me então a entender que estava
pensando numa temporada que passara em Franzensbad, que ela visitara em companhia da mãe -
já não sei em que ano. A mãe sofria de dores no baixo ventre e de uma secreção (catarro) que
tornaram necessário um tratamento em Franzensbad. Dora era de opinião - mais uma vez,
provavelmente justificada - que essa doença era devida a seu pai, que assim teria transmitido sua
doença venérea à mãe dela. Era muito compreensível que, ao extrair essa conclusão, ela, como a
maioria dos leigos, confundisse gonorréia com sífilis, e também o hereditário com o transmissível
pelo contato. Sua persistência nessa identificação [com a mãe] quase me forçou a perguntar-lhe se
ela também tinha alguma doença venérea, e foi entãoque me inteirei de que ela estava com um
catarro (fluor albus) de cujo início não conseguia lembrar-se.


Compreendi então que, por trás da seqüência de pensamentos que acusava
expressamente o pai, ocultava-se, como de hábito, uma autoacusação. Fui em direção a ela
assegurando-lhe que, a meu ver, a leucorréia das mocinhas apontava primordialmente para a
masturbação, e que todas as outras causas comumenteatribuídas a essa queixa eram relegadas
para segundo plano pela masturbação. Assim, ela estava em vias de responder a sua própria
pergunta sobre exatamente por que havia adoecido mediante a confissão de que se havia
masturbado, provavelmente na infância. Ela negou terminantemente lembrar-se de qualquer coisa
assim. Passados alguns dias, porém, fez algo que tive de considerar como mais um passo a
aproximá-la da confissão. Ocorre que, nesse dia, ela trazia na cintura uma bolsinha porta-moedas
do formato que havia entrado em voga (coisa que nunca fizera antes e nem faria depois) e,
enquanto falava estendida no divã, pôs-se a brincarcom ela: abria-a, introduzia um dedo, tornava
a fechá-la, etc. olhei-a por algum tempo e depois lhe expliquei o que vem a ser um ato sintomático.
Chamo de atos sintomáticos as funções que as pessoas executam, como se costuma dizer, de
maneira automática e inconsciente, sem reparar nelas, como que brincando, querendo negar-lhes
qualquer significação e, se inquiridas, explicando-as como indiferentes e casuais. A observação
mais cuidadosa, porém, mostra que tais ações, das quais a consciência nada sabe ou nada quer
saber, expressam pensamentos e impulsos inconscientes, sendo, portanto, valiosas e instrutivas
enquanto manifestações permitidas do inconsciente.  Há dois modos de conduta consciente frente
aos atos sintomáticos. Quando se pode atribuir-lhesuma motivação irrelevante, toma-se
conhecimento deles; quando falta à consciência um pretexto dessa ordem, em geral não se
observa em absoluto que estão sendo executados. No  caso de Dora, a motivação era fácil: “Por
que não usaria eu uma bolsinha dessas, já que agoraestá na moda?” Mas tal justificativa não
descarta a possibilidade de que o referido ato tenha uma origem inconsciente. Por outro lado, nem
essa origem nem o sentido atribuído ao ato podem ser comprovados de maneira concludente.
Temos de contentar-nos em constatar que tal sentidose ajusta excepcionalmente bem à trama da
situação em pauta, à ordem do dia do inconsciente.


Em outra oportunidade apresentarei uma coletânea desses atos sintomáticos, tal como
podem ser observados nas pessoas sadias e nos neuróticos. Suas interpretações são amiúde
muito fáceis. A bolsinha de dupla abertura de Dora não passava de uma representação dos órgãos
genitais, e sua maneira de brincar com ela, abrindo-a e ali inserindo seu dedo, era uma
comunicação pantomímica bastante desembaraçada, masinconfundível, do que gostaria de fazer:
masturbar-se. Faz pouco tempo ocorreu-me um caso similar, muito divertido. Em meio à sessão,
uma paciente mais velha apanhou uma caixinha de marfim, pretensamente para se refrescar com
um bombom, esforçou-se por abri-la e depois a entregou a mim, para que eu me convencesse de
como era difícil fazê-lo. Externei minha suspeita de que essa caixinha deveria significar algo
especial, pois era a primeira vez que eu a via, embora sua dona me viesse consultando há mais de
um ano. Retrucou então a dama vivamente: “Sempre trago essa caixinha comigo, carrego-a para
onde quer que vá!” Só se acalmou depois que a fiz notar, rindo, quão bem suas palavras se
adequavam a um outro sentido. A caixa -  Dose[em alemão],  πυξιζ- , assim como a bolsinha e a
caixa de jóias, mais uma vez não era outra coisa senão um substituto para a concha de Vênus,
para a genitália feminina!


Há na vida muito desse simbolismo, que comumente nos passa despercebido. Quando me
propus a tarefa de trazer à luz o que os seres humanos guardam escondido, não mediante a
compulsão da hipnose, mas a partir do que eles dizem e mostram, julguei que tal tarefa fosse mais
difícil do que realmente é. Quem tem olhos para vere ouvidos para ouvir fica convencido de que os
mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam denunciam-se com
as pontas dos dedos; a denúncia lhes sai por todos  os poros. Por isso, a tarefa de tornar
consciente o que há de mais secreto no anímico é perfeitamente exeqüível.


O ato sintomático de Dora com a bolsinha não foi o precursor imediato do sonho. A sessão
que nos levou ao relato do sonho começou por outro ato sintomático. Quando entrei na sala onde
ela me aguardava, ela escondeu às pressas uma cartaque estava lendo. Naturalmente, perguntei-lhe de quem era, e a princípio ela se recusou a dizer-me. Surgiu então algo que era extremamente
irrelevante e não tinha nenhuma relação com nosso tratamento. Tratava-se de uma carta de sua
avó em que esta a exortava a escrever-lhe com mais  freqüência. Creio que Dora queria apenas
brincar de “segredo” comigo e indicar que estava prestes a deixar que seu segredo fosse
arrancado pelo médico. Expliquei então a mim mesmo sua antipatia por qualquer novo médico por
sua angústia de que, fosse ao examiná-la (pelo catarro), fosse ao fazer-lhe perguntas (pela
comunicação do hábito de urinar na cama), ele pudesse adivinhar a razão de seu sofrimento: a
masturbação. Mais tarde, ela sempre falava com muito desprezo dos médicos a quem, antes,
obviamente superestimara. (ver em [1])


Acusações ao pai por tê-la feito adoecer, e mais a auto-acusação por trás disso; leucorréia,
brincadeira com a bolsinha; enurese depois dos seisanos; e um segredo que não se queria deixar
arrancar pelos médicos: considero estabelecida sem  nenhuma lacuna a prova circunstancial da
masturbação infantil. No caso de Dora, eu começara a suspeitar da masturbação quando ela me
falou sobre as dores estomacais da prima (ver em [1]) e em seguida se identificou com ela,
queixando-se por dias a fio de sensações dolorosas  similares. É sabido que, com freqüência, as
dores gástricas surgem justamente nos masturbadores. Segundo uma comunicação pessoal que
me foi feita por Wilhelm Fliess, são precisamente essas as gastralgias passíveis de ser
interrompidas mediante a aplicação de cocaína no “ponto gástrico” por ele descoberto no nariz, e
curadas mediante sua cauterização. Dora me confirmou ter consciência de duas coisas:de que ela
mesma sofrera muitas vezes de espasmos gástricos e de que tinha boas razões para considerar
sua prima uma masturbadora. É muito comum os pacientes reconhecerem em outros uma relação
que suas resistências emocionais os impossibilitam  de reconhecer em sua própria pessoa. Dora
não mais negou essa relação, embora ainda não se lembrasse de nada. Até mesmo a cronologia
da enurese, durando “até pouco antes do surgimento  da asma nervosa” (ver em [1]), parece-me
clinicamente valorizável. Os sintomas histéricos quase nunca se apresentam enquanto as crianças
se masturbam, mas só depois, na abstinência; constituem um substituto de satisfação
masturbatória, que continua a ser desejada no inconsciente até que surja alguma outra satisfação
mais normal, caso esta ainda seja possível. Dessa última condição depende a possibilidade de
cura da histeria pelo casamento e pelas relações sexuais normais. Caso a satisfação no
casamento volte a ser interrompida - por exemplo, devido ao coito interrompido, ao distanciamento
psíquico etc. -, a libido torna a refluir para seu  antigo curso e se manifesta mais uma vez nos
sintomas histéricos.


Gostaria de acrescentar infomações precisas sobre quando e mediante que influência
especial a masturbação de Dora foi suprimida, mas aincompletude da análise obriga-me a
apresentar aqui um material cheio de lacunas. Tive conhecimento de que ela urinava na cama até
pouco antes de adoecer pela primeira vez com dispnéia. Ora, o único esclarecimento que pôde
prestar sobre esse primeiro ataque foi que, nessa ocasião, seu pai saíra em viagem pela primeira
vez desde que melhorara de saúde. Nesse pequeno fragmento de lembrança preservado deve
haver uma relação alusiva à etiologia da dispnéia.  Os atos sintomáticos e outros sinais de Dora
forneceram-me boas razões para supor que a menina,  cujo quarto era contíguo ao dos pais, teria
entreouvido uma visita noturna do pai a sua mulher  e escutado a respiração ofegante do homem
(aliás, habitualmente entrecortada) durante o coito. As crianças, nesses casos, pressentem o
sexual nesse ruído insólito. A rigor, os movimentosexpressivos da excitação sexual já se acham
prontos nelas como mecanismos inatos. Indiquei, anos atrás, que a dispnéia e as palpitações da
histeria e da neurose de angústia são apenas fragmentos isolados do ato do coito, e em muitos
casos, como no de Dora, pude reconduzir o sintoma da dispnéia, da asma nervosa, à mesma
origem casual: ao som entreouvido da relação sexualentre adultos. Sob a influência da excitação
concomitante experimentada nessa ocasião, é perfeitamente possível que tenha sobrevindo uma
reviravolta na sexualidade da menina, substituindo  sua inclinação para a masturbação por uma
inclinação para a angústia. Tempos depois, estando o pai ausente e a menina enamorada a pensar
nele com saudade, repetiu-se a impressão então havida, sob a forma de um ataque de asma. Pela
lembrança preservada do que ensejou esse súbito adoecimento, pode-se ainda conjecturar a
seqüência angustiada de pensamentos que acompanhou  o ataque. Este lhe surgiu pela primeira
vez depois de ela se haver extenuado numa excursão  pelas montanhas (ver em [1]), na qual
provavelmente sentira um pouco de dispnéia real. A  isto somou-se a idéia de que seu pai estava
proibido de escalar montanhas, de que não podia extenuar-se por ter o fôlego curto; seguiu-se a
lembrança de quanto ele se havia extenuado com a mãe naquela noite (acaso isso não o teria
prejudicado?); depois veio a preocupação de saber se ela mesma não se haveria esforçado
demais na masturbação, que levava igualmente ao orgasmo sexual acompanhado de uma ligeira
dispnéia; e por fim houve o retorno intensificado da dispnéia como sintoma. Parte desse material
ainda me foi possível deduzir da análise, mas a outra eu mesmo tive de complementar. Pelo modo
como se constatou a masturbação, já pudemos ver queo material concernente a um determinado
tema só pode ser coligido fragmento por fragmento, em diferentes épocas e contextos.


Surge agora uma série de perguntas da máxima importância sobre a etiologia da histeria:
será lícito considerar o caso de Dora como típico no tocante à etiologia? Será que ele representa o
único tipo de causação? etc. No entanto, creio estar no caminho certo ao adiar minha resposta a
essas perguntas para depois da comunicação de um número mais amplo de casos similares
analisados. Além disso, eu deveria começar por retificar a formulação das perguntas. Em vez de
me pronunciar por um “sim” ou um “não” a propósito  de se dever buscar a etiologia desse caso
patológico na masturbação infantil, eu teria de discutir primeiramente o conceito de etiologianas
psiconeuroses. O ponto de vista desde o qual eu poderia responder mostrar-se-ia então
sensivelmente distante do ponto de vista desde o qual a pergunta me é formulada. No tocante a
este caso, basta chegarmos à convicção de que a masturbação infantilé demonstrável e não é
nada acidental nem irrelevante para a conformação do quadro patológico.


O exame da significação do fluor albusconfessado por Dora acena com uma compreensão
ainda maior dos sintomas. A palavra “catarro”, com a qual ela aprendeu a designar sua afecção na
época em que uma queixa similar forçou sua mãe a visitar Franzensbad (ver em [1]), não passa de
outra “reviravolta no sentido” (ver em [1]) através do qual toda a série de pensamentos sobrea
culpa de seu pai pela doença obteve acesso à manifestação no sintoma da tosse. Essa tosse, sem
dúvida originariamente surgida de um diminuto catarro real, era ainda uma imitação do pai, cujos
pulmões estavam afetados, e pôde expressar sua compaixão e inquietação por ele. Além disso,
porém, também proclamava ao mundo, por assim dizer,algo que talvez ainda não se tivesse
tornado consciente para ela: “Sou a filha de papai.Tal como ele, tenho um catarro. Ele me fez
adoecer, assim como fez mamãe adoecer. Tenho dele as paixões pérfidas que são castigadas pela
doença.”


Podemos agora fazer uma tentativa de reunir os diversos determinantes que encontramos
para os ataques de tosse e rouquidão. Na camada mais inferior da estratificação devemos
presumir a presença de uma irritação real e organicamente condicionada da garganta, ou seja, o
grão de areia em torno do qual a ostra forma a pérola. Esse estímulo era passível de fixação por
dizer respeito a uma região do corpo que, na menina, conservava em alto grau a significação de
uma zona erógena. Por conseguinte, estava apto a dar expressão à libido excitada. Ficou fixado
através do que foi, provavelmente, seu primeiro revestimento psíquico - a imitação compassiva do
pai enfermo - e, depois, através das auto-acusaçõespor causa do “catarro”. Esse mesmo grupo de
sintomas, além disso, mostrou-se passível de representar as relações dela com o Sr. K., seu pesar
pela ausência dele e o desejo de ser para ele uma esposa melhor. Depois que uma parte da libido
voltou-se novamente para o pai, o sintoma obteve o  que talvez seja sua significação última:
representar a relação sexual com o pai pela identificação de Dora com a Sra. K. Gostaria de
afiançar, em contrapartida, que esta série de modo  algum está completa. Infelizmente, a análise
incompleta não nos permite seguir a cronologia das  reviravoltas no sentido, nem esclarecer a
sucessão e a coexistência dos diversos significados. Só de uma análise completa é lícito esperar o
cumprimento dessas exigências.


Não posso agora deixar de tocar em algumas relaçõesadicionais entre o catarro genital e
os sintomas histéricos de Dora. No tempo em que ainda se estava muito longe de chegar a um
esclarecimento psíquico da histeria, eu costumava ouvir de colegas mais velhos e experientes a
afirmação de que, nas pacientes histéricas que apresentavam leucorréia, o agravamento do
catarro era regularmente seguido pela agudização dos achaques histéricos, em particular a perda
de apetite e os vômitos. Ninguém tinha um conhecimento claro da relação aí indicada, mas creio
que se tendia a adotar a visão dos ginecologistas,  que, como é sabido, supõem em ampla escala
uma influência perturbadora direta e orgânica das afecções genitais sobre as funções nervosas,
embora a comprovação terapêutica dessa teoria seja  a conta certa para deixar a maioria de nós
desamparados. Dado o estado atual de nossos conhecimentos, tampouco se pode dar por
excluída tal influência direta e orgânica, porém, em todo caso, seu revestimento psíquico é mais
facilmente demonstrável. Entre nossas mulheres, o orgulho pela configuração dos órgãos genitais
é uma parte muito especial de sua vaidade; as afecções deles, consideradas capazes de inspirar
repugnância ou mesmo asco, atuam incrivelmente no sentido de melindrá-las, rebaixar sua auto-estima e torná-las irritadiças, suscetíveis e desconfiadas. A secreção anormal da mucosa da
vagina é vista como fonte de repugnância.


Lembremo-nos de que em Dora, depois do beijo do Sr.K., houve uma viva sensação de
asco, e de que encontramos razões para complementaro relato que ela nos fez dessa cena
conjecturando que, durante o abraço, ela sentira a  pressão do membro ereto do homem em seu
ventre (ver a partir de [1]). Sabemos agora, além disso, que a mesma governanta que ela fez ser
despedida por sua infidelidade lhe dissera, por suaprópria experiência de vida, que todos os
homens eram frívolos e indignos de confiança. Para  Dora, isso devia significar que todos os
homens eram como seu pai. Mas ela considerava que opai sofria de uma doença venérea, e que
teria transmitido essa doença a ela e a sua mãe. Foi-lhe então possível imaginar que todos os
homens sofriam de doenças venéreas, e sua concepçãodestas se formara, naturalmente, a partir
de sua experiência única e pessoal com elas. Sofrerde uma doença venérea, por conseguinte,
significava para ela estar acometida de uma secreção enojante. Não seria essa uma outra
motivação do asco por ela sentido no momento do abraço? Esse asco, transferido para o contato
com o homem, seria então um sentimento projetado segundo o mecanismo primitivo mencionado
anteriormente (ver em [1]) e estaria referido, em última instância, a sua própria leucorréia.


Suspeito estarmos tratando aqui de cursos inconscientes de pensamento urdidos sobre
uma trama orgânica pré-estruturada, tal como uma grinalda sobre a armação de arame, de sorte
que, numa outra ocasião, pode-se encontrar outras vias de pensamento intercaladas entre os
mesmos pontos de partida e de chegada. Mas o conhecimento dos vínculos de pensamento que
se mostraram eficazes em cada indivíduo é de valor insubstituível para a resolução dos sintomas.
Unicamente por força da interrupção prematura da análise é que tivemos de recorrer, no caso de
Dora, a conjecturas e complementações. O que aqui apresento para preencher as lacunas apóia-se inteiramente em outros casos analisados a fundo.


O sonho mediante cuja análise obtivemos as informações precedentes corresponde, como
vimos, a um propósito que Dora levou consigo para osono. Por isso se repetiu todas as noites, até
que o propósito fosse realizado, e reapareceu anos  depois, ao surgir uma ocasião para que ela
formasse um propósito análogo. O propósito poderia  expressar-se conscientemente da seguinte
maneira: “Preciso afastar-me dessa casa, na qual, como vi, minha virgindade corre perigo; partirei
com papai e, pela manhã, ao fazer minha toalete, tomarei minhas precauções para não ser
surpreendida.” Esses pensamentos encontram nítida expressão no sonho; pertencem a uma
corrente [psíquica] que, na vida de vigília, chegouà consciência e se tornou dominante. Por trás
deles se pode discernir uma cadeia mais obscura de  pensamentos substitutos que correspondia à
corrente contrária e, por isso mesmo, foi suprimida. Essa segunda cadeia de pensamentos
culminava na tentação de entregar-se ao homem, em agradecimento pelo amor e pela ternura que
ele lhe demonstrara nos últimos anos, e talvez tenha invocado a lembrança do único beijo que até
então Dora recebera dele. Contudo, segundo a teoriadesenvolvida em meu livro  A Interpretação
dos Sonhos, tais elementos não bastam para a formação de um sonho. O sonho não é um
propósito que se representa como executado, mas um desejo que se representa como realizado e
precisamente, além disso, um desejo proveniente da  vida infantil. Temos a obrigação de verificar
se essa tese não é contradita por nosso sonho.


O sonho contém, de fato, um material infantil que não guarda relação alguma, à primeira
vista, com o propósito de Dora de escapar da casa do Sr. K. e da tentação de sua presença. Para
que emergiria a lembrança de quando ela urinava na cama, em criança, e do trabalho que seu pai
então tivera para habituá-la à limpeza? Pode-se dara isso a resposta de que somente com a ajuda
dessa cadeia de pensamentos era possível suprimir os intensos pensamentos de tentação e fazer
prevalecer o propósito formado contra eles. A menina decidira fugir como pai; na realidade, estava
fugindo  parao pai, em função da angústia frente ao homem que aassediava; convocou uma
inclinação infantil pelo pai para que esta a protegesse de sua inclinação recente por um estranho.
O próprio pai era culpado pelo perigo atual, pois ahavia entregue a esse estranho, movido por
seus próprios interesses amorosos. Quão mais belo tinha sido quando esse mesmo pai não amava
a ninguém mais do que a ela, e se empenhara em salvá-la dos perigos que então a ameaçavam! O
desejo infantil e hoje inconsciente de colocar o pai no lugar do estranho é uma potência formadora
de sonhos. Havendo uma situação passada semelhante  a uma situação presente, embora tendo
por diferença essa substituição de pessoas, ela passa a ser a situação principal do sonho. E tal
situação de fato existiu; justamente como fizera o  Sr. K. na véspera, seu pai estivera um dia em
frente à cama dela e a acordara; quem sabe com um beijo, como talvez o Sr. K. tivesse pretendido
fazer. Portanto, o propósito de fugir da casa, por  si só, não seria formador de um sonho, mas
transformou-se nisso ao se associar com outro propósito fundamentado num desejo infantil. O
desejo de substituir o Sr. K. pelo pai forneceu a força impulsora [pulsional] para o sonho. Relembro
aqui a interpretação a que me compeliu, em Dora, a  cadeia reforçada de pensamentos sobre as
relações de seu pai com a Sra. K.: a de que uma inclinação infantil pelo pai fora invocada para que
fosse possível manter sob recalcamento o amor recalcado pelo Sr. K. (ver a partir de [1]). Essa
reviravolta na vida anímica de Dora é o que o sonhoespelha.


No tocante à relação entre os pensamentos de vigília que têm prosseguimento durante o
sono - os restos diurnos - e o desejo inconsciente  formador do sonho, fiz em  A Interpreração dos
Sonhosalgumas observações que aqui cito inalteradas, porque nada tenho a acrescentar-lhes e
porque a análise desse sonho de Dora torna a provarque não é outra a relação existente:


“Estou pronto a admitir que há toda uma classe de sonhos cuja  instigaçãoprovém
principalmente, ou até de maneira exclusiva, dos restos da vida diurna; e penso que até meu
desejo de enfim tornar-me Professor Extraordinário  poderia ter-me deixado dormir em paz aquela
noite, se a preocupação com a saúde de meu amigo não houvesse persistido desde o dia anterior.
Mas a preocupação, por si só, não teria formado um  sonho.  A força impulsorarequerida pelo
sonho tinha de ser suprida por um desejo; cabia à preocupação apoderar-se de um desejo que
atuasse como força propulsora do sonho.


“A situação pode ser explicada por uma analogia. O  pensamento diurno pode
perfeitamente desempenhar o papel de  empresáriodo sonho; mas o empresário, que, como se
costuma dizer, tem a idéia e a iniciativa para executá-la, não pode fazer nada sem o capital;
precisa de um capitalista que possa arcar com o gasto, e capitalista que fornece o desembolso
psíquico para o sonho é, invariável e indiscutivelmente, sejam quais forem os pensamentos do dia
anterior, um desejo oriundo do inconsciente.”


Quem tiver aprendido a conhecer a delicadeza da estrutura dessas formações que são os
sonhos não ficará surpreso com o fato de que esse desejo de Dora, de que seu pai tomasse o
lugar do homem tentador, não tenha trazido à memória um material infantil qualquer, mas
justamente um material que mantinha as mais íntimasrelações com a supressão dessa tentação. É
que, se Dora se sentia incapaz de ceder ao amor poresse homem, se recalcava esse amor em vez
de entregar-se a ele, a nenhum outro fator essa decisão se prendia mais intimamente do que a seu
gozo sexual prematuro e as conseqüências dele - a enurese, o catarro e o asco. Tal história
primitiva, conforme o somatório dos determinantes constitucionais, pode constituir o fundamento
para dois tipos de conduta frente às exigências do  amor na maturidade: ou uma entrega plena à
sexualidade, sem nenhuma resistência e beirando a perversão, ou, por reação, o repúdio da
sexualidade no adoecimento neurótico. Em nossa paciente, a constituição e o nível de sua
educação intelectual e moral decidiram em favor da segunda alternativa.


Quero ainda chamar especial atenção para o fato de que, a partir da análise desse sonho,
tivemos acesso a detalhes de vivências patogenicamente ativas que, de outro modo, teriam sido
inacessíveis à memória ou, pelo menos, à reprodução. A lembrança do urinar na cama durante a
infância, como vimos, já fora recalcada. Quanto aosdetalhes do assédio por parte do Sr. K., Dora
nunca os mencionara, pois não lhe ocorriam.


Acrescento ainda algumas observações sobre a síntesedesse sonho. O trabalho do sonho
começa na tarde do segundo dia após a cena no bosque, depois que Dora notou que já não
poderia trancar a porta de seu quarto (ver em [1]).Foi então que disse a si mesma: “Corro sério
perigo aqui”, e formou o propósito de não ficar sozinba na casa, mas sim partir com o pai. Esse
propósito tornou-se passível de formar um sonho porter encontrado prosseguimento no
inconsciente. Seu equivalente ali foi a invocação do amor infantil pelo pai como proteção contra a
tentação atual. A virada assim ocorrida nela fixou-se e a levou para a postura representada por sua
cadeia  hipervalentede pensamentos (ciúme da Sra. K. por causa do pai,como se estivesse
apaixonada por ele). Lutavam nela a tentação de ceder ao homem que a cortejava e uma oposição
composta a fazê-lo. Esta se compunha de motivos de  decoro e prudência, de impulsos hostis
causados pela revelação da governanta (ciúme e orgulho ferido, como veremos adiante em [1]), e
de um elemento neurótico - a aversão à sexualidade a que estava predisposta e que se enraizava
em sua história infantil. O amor pelo pai, invocadopara protegê-la da tentação, provinha dessa
mesma história infantil.


O sonho transforma o propósito de fugir para o pai,entranhado no inconsciente, numa
situação que mostra realizado o desejo de que o paia salvasse do perigo. Para isso foi preciso pôr
de lado um pensamento que constituía um obstáculo -o de que justamente o pai a expusera a
esse perigo. Quanto à moção hostil contra o pai (propensão à vingança), aqui suprimida, dela
tomaremos conhecimento como um dos motores do segundo sonho (ver a partir de [1]).
De acordo com as condições da formação dos sonhos,  a situação fantasiada é escolhida
de modo a reproduzir uma situação infantil. É um triunfo especial conseguir-se transformar uma
situação recente, justamente a que ocasionou o sonho, numa situação infantil. Em nosso caso,
isso foi conseguido por uma mera casualidade do material. Tal como o Sr. K. postou-se diante do
sofá e a acordou, o pai muitas vezes a acordara na  infância. Toda a mudança pôde simbolizar-se
de maneira muito oportuna substituindo-se o Sr. K. pelo pai nessa situação.
Mas o pai costumava acordá-la, naquela época, para que ela não molhasse a cama. Esse
“molhar” tornou-se decisivo para o restante do conteúdo do sonho, apesar de ser nele
representado apenas por uma alusão distante e por seu oposto.


O oposto de “molhado” e “água” pode facilmente ser “ardente” e “fogo”. A casualidade de o
pai, ao chegarem àquele lugar [L ], ter expressado  angústia ante o perigo de fogo (ver em [1])
contribuiu para decidir que o perigo do qual o pai deveria salvá-la seria um incêndio. Nesse acaso
e na oposição a “molhar” baseou-se a situação escolhida para a imagem onírica: havia um
incêndio e o pai estava em frente a sua cama para despertá-la. O enunciado fortuito do pai não
teria alcançado essa importância no sonho se não seharmonizasse tão esplendidamente com a
corrente de sentimentos dominante, que queria ver nele a qualquer preço o protetor e salvador.
“Ele pressentiu o perigo logo depois de nossa chegada, e tinha razão!” (Na realidade, ele é que
havia exposto a moça a esse perigo.)


Nos pensamentos oníricos, cabe ao “molhar”, por ligações muito fáceis de estabelecer, o
papel de ponto nodal entre vários círculos de representações. “Molhar” pertencia não só ao molhar
a cama, mas também ao círculo de pensamentos de tentação sexual suprimidos por trás desse
conteúdo onírico. Dora sabia haver também um molhar-se na relação sexual, sabia que, no coito, o
homem oferece à mulher algo líquido  em forma de gotas. Sabia ainda que o perigo reside
justamente nisso, e que era tarefa sua proteger suagenitália para que não fosse molhada.


Com “molhar” e “gotas” abre-se ao mesmo tempo outrocírculo de associações: o do
catarro enojante que, em seus anos mais maduros, sem dúvida tinha para ela o mesmo significado
do molhar a cama na infância. “Molhado” tem aqui o mesmo sentido de “sujo”. Os órgãos genitais,
que deveriam manter-se limpos, já se haviam sujado  com o catarro, e além disso o mesmo
ocorrera com a mãe dela (ver em [1]). Dora parecia  entender a mania de limpeza da mãe como
uma reação contra essa imundície.


Os dois círculos se reúnem num só: “Mamãe recebeu as duas coisas de papai, o
umedecimento sexual e a secreção que suja.” O ciúmesentido pela mãe era inseparável do círculo
de pensamentos ligados ao amor infantil pelo pai, aqui invocado para dar proteção. Mas esse
material ainda não era passível de representação. No entanto, encontrando-se uma lembrança que
mantivesse com os dois círculos do “molhar” uma relação similarmente boa, mas que evitasse o
chocante, esta poderia assumir a representação do material no conteúdo do sonho.


Tal lembrança foi encontrada no episódio das “gotas” [Tropfen] como jóia desejada pela
mãe (ver em [1]). Aparentemente, a ligação dessa reminiscência com os dois círculos, o do
umedecimento sexual e o de ficar suja, era externa  e superficial, mediada pelas palavras, pois
“gotas” foi usada como uma “reviravolta” (ver em [1]), uma palavra de duplo sentido, enquanto
“jóia” [“Schmuck”], no lugar de “limpo”, é um oposto um tanto forçado para “sujo”. Na realidade,
porém, é possível demonstrar as mais firmes ligações em termos do conteúdo. A lembrança
proveio do material do ciúme de Dora pela mãe, que  se enraizava na infância mas persistiu por
muito mais tempo. Através dessas duas pontes verbais foi possível transferir para uma única
reminiscência, a das “gotas-jóia” [Schmucktropfen], todo o sentido preso às representações da
relação sexual entre os pais, do adoecimento pela secreção e da incômoda mania de limpeza da
mãe.


Contudo, faltava ainda mais uma transposição para que isso pudesse entrar no conteúdo
do sonho. Neste, não foram as “gotas”, mais próximas do “molhar” originário, e sim “jóia”, mais
distante, que chegou a obter ingresso. “Assim, ao se inserir esse elemento na situação onírica já
fixada anteriormente, foi possível dizer: “Mamãe ainda queria salvar suas jóias.” Na nova alteração
para “caixinha de jóias” [Schmuckkästchen] fez-se então sentir,  a posteriori, a influência de
elementos do círculo subjacente, relativo à tentação vinda do Sr. K. Este não a presenteara com
jóias, mas sim com uma “caixinha” para elas (ver em[1]) - o substituto de todas as distinções e
mostras de ternura pelas quais ela deveria agora mostrar-se agradecida. E o composto assim
formado, “caixa de jóias”, tinha ainda um valor especial como substituto. Acaso “caixinha de jóias”
[Schmuckkästchen] não é uma imagem corriqueira para designar a genitália feminina imaculada e
intacta? E não é, por outro lado, uma palavra inocente e, portanto, primorosamente apropriada
tanto para ocultar quanto para aludir aos pensamentos sexuais por trás do sonho?


Assim, diz-se em dois lugares do conteúdo do sonho  “caixa de jóias da mamãe”, e esse
elemento substitui a menção ao ciúme infantil de Dora, às gotas (ou seja, ao umedecimento
sexual), ao sujar-se com a secreção e, por outro lado, aos pensamentos de tentação atuais que
pressionam pela retribuição do amor e retratam a situação sexual iminente - ansiada e
ameaçadora. O elemento “caixa de jóias”, mais do que qualquer outro, foi um produto da
condensação e do deslocamento, e um compromisso entre correntes opostas. Sua origem múltipla
- em fontes infantis e atuais - é certamente apontada por seu duplo aparecimento no conteúdo do
sonho.


O sonho foi a reação a uma nova vivência de efeito excitante, que deve necessariamente
ter despertado a lembrança da única vivência de anos anteriores análoga a ela. Trata-se da cena
do beijo na loja do. Sr. K., durante a qual surgiu a repugnância (ver em [1]). Mas essa mesma cena
era associativamente acessível, partindo-se de outras direções: do círculo de pensamentos ligados
ao catarro (ver em [1]) e da tentação atual. Portanto, ela trouxe uma contribuição própria para o
conteúdo do sonho, a qual teve de adaptar-se à situação onírica pré-formada. “Havia um
incêndio…” - o beijo sem dúvida tinha gosto de fumaça [fumo], e por isso no sonho sente-se o
cheiro de fumaça, que persiste até depois de Dora acordar (ver em [1]).


Por inadvertência, deixei lamentavelmente uma lacuna na análise desse sonho. Atribui-se
ao pai o dito “Não quero que meus dois filhos… (“emconseqüência da masturbação”, cabe sem
dúvida acrescentar aqui, partindo dos pensamentos oníricos) pereçam”. Tais ditos oníricossão
usualmente compostos de fragmentos de ditos reais,  proferidos ou ouvidos. Eu deveria ter-me
informado sobre a origem real desse dito. O resultado dessa investigação teria por certo tornado
mais complicada a estrutura do sonho, mas teria também permitido conhecê-lo com maior
transparência.


Acaso se deve supor que esse sonho, ao ocorrer em L, teve exatamente o mesmo
conteúdo que em sua repetição durante o tratamento?Não parece necessário. A experiência
mostra que as pessoas amiúde afirmam ter tido o mesmo sonho, quando, na verdade, as
aparições isoladas do sonho recorrente se diferenciam por numerosos detalhes e outras alterações
de considerável importância. Assim, uma de minhas pacientes me informou ter tido novamente na
noite anterior, e da mesma maneira, seu sonho favorito e recorrente: estava nadando no mar azul,
sentindo prazer em furar as ondas etc. A investigação mais atenta mostrou que sobre a base
comum surgia ora este detalhe, ora aquele; numa ocasião, inclusive, ela estava nadando num mar
gelado e cercada por  icebergs. Outros sonhos que a paciente não procurava apresentar como
idênticos revelaram-se intimamente ligados ao sonhorecorrente. Uma vez, por exemplo, ela viu
numa fotografia em tamanho natural, ao mesmo tempo,as partes superior e inferior da ilha de
Helgoland; no mar havia um barco onde se achavam duas pessoas a quem ela conhecera na
juventude etc.


É certo que o sonho de Dora ocorrido durante o tratamento havia adquirido um novo
sentido atual, talvez sem modificar seu conteúdo manifesto. Entre seus pensamentos oníricos ele
incluiu uma referência a meu tratamento e correspondeu a uma renovação do antigo propósito de
escapar de um perigo. Se não estava em jogo nenhumailusão de memória por parte de Dora
quando ela declarou que já em L percebera a fumaçadepois de acordar, cabe reconhecer que
meu provérbio “onde há fumaça há fogo” (ver em [1])foi introduzido com muita habilidade na forma
acabada do sonho, onde parece ter servido para sobredeterminar o último elemento.
Inegavelmente, foi mera casualidade que o pretexto  mais recente do sonho - o trancamento da
sala de jantar pela mãe, com o que o irmão ficava encerrado em seu quarto (ver em [1]) - trouxesse
um vínculo com a perseguição do Sr. K. em L , onde  Dora amadureceu sua decisão ao descobrir
que não poderia trancar-se no quarto. Talvez o irmão não tivesse aparecido no sonho nas ocasiões
anteriores, de modo que o dito “meus dois filhos” só entrou em seu conteúdo depois da última
ocasião que o ensejou.


 
O SEGUNDO SONHO

Algumas semanas depois do primeiro sonho ocorreu o  segundo, com cuja resolução
interrompeu-se a análise. Não se pode torná-lo tão  transparente quanto o primeiro, mas ele
possibilitou uma confirmação desejada de uma posição que se tornara necessária sobre o estado
anímico da paciente (ver em [1]), preencheu uma lacuna de sua memória (ver em [1]) e permitiu
obter um profundo conhecimento da gênese de outro de seus sintomas (ver em [1]).


Narrou Dora: “Eu estava passeando por uma cidade que não conhecia, vendo ruas e
praçasque me eram estranhas. Cheguei então a uma casa onde eu morava, fui até meu quarto e
ali encontrei uma carta de mamãe. Dizia que, como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus
pais, ela não quisera escrever-me que papai estava  doente. `Agora ele morreu e, se quiser, você
pode vir.’ Fui então para a estação[Bahnhof] e perguntei umas cem vezes: `Onde fica a estação?’
Recebia sempre a resposta: `Cinco minutos.’ Vi depois à minha frente um bosque espesso no qual
penetrei, e ali fiz a pergunta a um homem que encontrei. Disse-me: `Mais duas horas e meia.’
Pediu-me que o deixasse acompanhar-me. Recusei e fui sozinha. Vi a estação à minha frente e
não conseguia alcancá-la. Aí me veio o sentimento habitual de angústia de quando, nos sonhos,
não se consegue ir adiante. Depois, eu estava em casa; nesse meio tempo, tinha de ter viajado,
mas nada sei sobre isso. Dirigi-me à portaria e perguntei ao porteiro por nossa casa. A criada abriu
para mim e respondeu: `A mamãe e os outros já estão no cemitério [Friedhof]’.”


A interpretação desse sonho não prosseguiu sem alguma dificuldade. Devido às
circunstâncias peculiares - ligadas a seu conteúdo - em que interrompemos a análise, nem todo o
sonho ficou esclarecido, e também a isso se prende  que minha memória não tenha conservado,
com igual segurança em todos os pontos, a ordem em  que as deduções foram feitas. Começarei
por mencionar o tema sobre o qual versava a análiseem curso quando se deu a interferência do
sonho. Desde algum tempo, a própria Dora vinha formulando perguntas sobre a ligação entre suas
ações e os motivos presumíveis delas. Uma dessas perguntas era: “Por que foi que, nos primeiros
dias depois da cena do lago, eu nada disse sobre ela?” Segunda pergunta: “Por que, então, de
repente contei isso a meus pais?” Eu considerava que, de modo geral, ainda era preciso explicar o
que a levara a sentir-se tão gravemente melindrada  pela proposta do Sr. K., tanto mais que eu
começava a me aperceber de que, para o Sr. K., a proposta a Dora não significara nenhuma
tentativa leviana de sedução. Quanto a ela ter dadoconhecimento do episódio a seus pais, eu o
encarava como um ato já praticado sob a influência de uma sede doentia de vingança. Uma jovem
normal, penso eu, lidaria sozinha com essas questões.


Portanto, apresentarei o material surgido na análise desse sonho na ordem bastante
confusa em que se oferece à minha reprodução.


Ela vagava sozinha por uma cidade estranha e via ruas e praças. Assegurou-me que
certamente não era B , em que eu pensara primeiro,  mas uma cidade em que nunca estivera.
Como era natural, prossegui: ela poderia ter visto  quadros ou fotografias das quais retirara as
imagens do sonho. Depois dessa observação veio o adendo sobre o monumento numa das praças
e, logo a seguir, o reconhecimento de sua fonte. Nas festas de Nataltinham-lhe enviado um álbum
com paisagens de uma estação de águas alemã, e justamente na véspera ela o procurara para
mostrá-lo a alguns parentes que estavam hospedados  em sua casa. Ele estava numa caixa de
fotografias que não se conseguia encontrar, e Dora  perguntou à mãe: “Onde estáa caixa?”. Uma
das paisagens mostrava uma praça com um monumento.  Mas o autor do presente era um jovem
engenheiro com quem Dora travara rápido conhecimento na cidade fabril. O rapaz aceitara um
posto na Alemanha para chegar mais depressa a sua autonomia, aproveitava todas as
oportunidades para fazer-se lembrar a Dora, e era fácil adivinhar que tencionava, a seu tempo,
quando sua posição melhorasse, apresentar-se a Doracomo pretendente. Mas ainda não era
chegado o momento, havia de esperar.


A perambulação pela cidade estranha estava sobredeterminada. Levou a um dos ensejos
oferecidos durante o dia. Nas festas chegara a visita de um priminho a quem Dora teve de mostrar
a cidade de Viena. Essa causa diurna decerto lhe fora sumamente indiferente. Mas o primo lhe
trouxe à lembrança sua breve estada em Dresden pelaprimeira vez. Naquela ocasião, ela
perambulara como uma estranha, embora não deixasse,naturalmente, de visitar a famosa galeria.
Um outro primo, que estivera com eles e conhecia Dresden, quisera servir de guia no percurso pela
galeria. Mas ela o recusara e seguira sozinha, detendo-se diante dos quadros que lhe agradavam.
Diante da Madona Sistina deixou-se ficar  duas horas, sonhadoramente perdida em silenciosa
admiração. Ante a pergunta sobre o que tanto lhe agradara no quadro, não soube dar nenhuma
resposta clara. Finalmente, disse: “A Madona.”


É indubitável que essas associações realmente pertençam ao material formador do sonho.
Incluem componentes que reencontramos inalterados no conteúdo do sonho (“ela recusou e foi
sozinha” e “duas horas”). Ressalto desde já que as  “imagens” são um ponto nodal na trama dos
pensamentos do sonho (as paisagens do álbum, os quadros em Dresden). Destacaria também,
para investigação posterior, o tema da  Madona, da mãe virgem. Mas o que veio acima de tudo é
que, nessa primeira parte do sonho, ela se identifica com um rapaz. Ele vagueia por terras
estrangeiras, esforça-se por atingir uma meta, mas é retido, precisa de paciência, tem de esperar.
Se Dora tinha em mente o engenheiro, seria muito condizente que essa meta fosse a posse de
uma mulher, da própria pessoa dela. Em vez disso, era… uma estação, que aliás, pela relação
entre a pergunta do sonho e a perguntarealmente formulada, nos é lícito substituir por caixa. Uma
caixa e uma mulher: isso já começa a combinar melhor.


Ela perguntou umas cem vezes… Isso levou a outra causa do sonho, essa menos
indiferente. Na noite da véspera, em meio a uma reunião doméstica, o pai lhe pedira que fosse
buscar o conhaque; não dormia sem antes beber conhaque. Dora pediu à mãe a chave do bufê,
mas ela estava absorta na conversa e não lhe deu resposta alguma, até que, com o exagero da
impaciência, Dora exclamou: “Já lhe perguntei umas  cemvezes onde está a chave.” Na realidade,
ela naturalmente só repetira a pergunta umas cinco vezes.


“Onde está a  chave?” parece-me ser o equivalente masculino da pergunta “Onde está a
caixa?”. Portanto, são perguntas… pelos órgãos genitais.


Nessa mesma reunião familiar, alguém fizera um brinde ao pai de Dora, expressando a
esperança de que por muito tempo ainda ele gozasse da melhor saúde etc. Nisso, uma expressão
singular toldou o rosto cansado do pai, e ela compreendeu os pensamentos que ele teve de
sufocar. Pobre enfermo! Quem poderia saber quanto tempo de vida ainda lhe restava?


Com isso chegamos ao  conteúdo da cartano sonho. O pai estava morto e ela saíra de
casa por seu próprio arbítrio. A partir dessa carta, relembrei prontamente a Dora a carta de
despedida que ela escrevera aos pais, ou que pelo menos fora composta para eles (ver em [1]).
Essa carta se destinava a dar um susto no pai para que ele desistisse da Sra. K., ou pelo menos a
se vingar dele, caso não fosse possível induzi-lo aisso. Estamos diante do tema da morte dela ou
da morte do pai (cf.  cemitério, mais adiante no sonho). Acaso estaremos no caminho errado ao
supor que a situação constitutiva da fachada do sonho correspondia a uma fantasia de vingança
contra o pai? Os pensamentos compassivos do dia anterior se harmonizariam muito bem com isso.
Ora, a fantasia rezava que ela saía de casa, indo para o estrangeiro, e que com isso o pai ficava
com o coração partido pelo desgosto e pela saudade  dela. Então estaria vingada. Dora
compreendia muito bem de que é que o pai sentia falta, não podendo agora dormirsem o
conhaque. Assinalemos  a sede de vingançacomo um novo elemento para uma síntese posterior
dos pensamentos do sonho.


Mas o conteúdo da carta deve ser passível de uma determinação adicional. De onde
proviria a frase “se você quiser”? A propósito disso ocorreu a Dora o adendo de que, depois da
palavra “quiser”, havia um ponto de interrogação, ecom isso ela também reconheceu essas
palavras como uma citação extraída da carta da Sra.K. que contivera o convite para L (o lugar
junto ao lago). De maneira estranhíssima, após a intercalação “se você quiser vir”, havia nessa
carta um ponto de interrogação colocado bem no meioda frase.


Assim, estamos outra vez de volta à cena do lago (ver em [1]) e aos enigmas ligados a ela.
Pedi a Dora que me descrevesse essa cena minuciosamente. A princípio, ela não revelou grandes
novidades. O Sr. K. fizera uma introdução razoavelmente séria, mas ela não o deixara terminar.
Mal compreendeu do que se tratava, deu-lhe uma bofetada no rosto e se afastou às pressas. Eu
queria saber que palavras ele empregara, mas Dora só se lembrou de uma de suas alegações:
“Sabe, não tenho nada com minha mulher.” Naquele momento, para não tornar a encontrá-lo, ela
quisera voltar para L contornando o lago a pé, e perguntou a um homem com quem cruzou a que
distância ficava. Ante a resposta “duas horas e meia”, desistiu dessa intenção e voltou em busca
do barco, que partiu logo depois. O Sr. K. também estava lá novamente, aproximou-se dela e lhe
pediu que o desculpasse e não contasse nada sobre oincidente. Mas ela não lhe deu resposta
alguma… É mesmo, o bosque do sonho era muito parecido com o bosque na orla do lago, no qual
se desenrolara a cena que ela acabava de me descrever mais uma vez. Justamente esse mesmo
bosque denso é que ela vira na véspera, num quadro  de exposiçãosecessionista. Ao fundo do
quadroviam-se ninfas.


Nesse ponto, uma suspeita transformou-se em certezapara mim.  Bahnhof[“estação”;
literalmente, “pátio de ferrovia”] e  Friedhof[“cemitério”; literalmente, “pátio de paz”], em lugar da
genitália feminina, já eram bastante inusitados, mas guiaram minha atenção já aguçada para uma
palavra de formação similar, “Vorhof” [“vestíbulo”; literalmente, “pátio anterior”], termo anatômico
para designar uma região específica da genitália feminina. Mas isso poderia ser um equívoco por
excesso de engenho. Agora, porém, com o acréscimo das “ninfas” que se viam ao fundo do
“bosque denso”, já não podia haver dúvidas. Era umageografia simbólica do sexo! “Ninfas”, como
é sabido pelos médicos, embora não pelos leigos (embora mesmo entre os primeiros não seja
muito usual), é como se chamam os pequenos lábios que ficam no fundo do “bosque denso” dos
pêlos pubianos. Mas quem usa termos técnicos como “vestíbulo” e “ninfas” há de ter extraído seu
conhecimento dos livros, e justamente não de livrospopulares, mas de manuais de anatomia ou de
alguma enciclopédia, refúgio habitual dos jovens devorados pela curiosidade sexual. Portanto, se
essa interpretação estava certa, ocultava-se por trás da primeira situação do sonho uma fantasia
de defloração, como quando um homem se esforça por penetrar na genitália feminina.


Partilhei minhas conclusões com Dora. A impressão causada deve ter sido imperiosa, pois
emergiu imediatamente um pequenino fragmento esquecido do sonho: que  ela foi calmamente
para seu quarto e pôs-se a ler um livro grande que estava sobre sua escrivaninha. A ênfase recai
aqui sobre dois detalhes: “calmamente” e “grande”, relacionado com o livro. Perguntei: “Ele tinha o
formato de uma enciclopédia?” Dora disse que sim. Ora, as crianças nunca lêem calmamente
sobre matérias proibidas numa enciclopédia. Fazem-no tremendo de medo e espiam inquietas
para ver se alguém vem vindo. Os pais estorvam muito essas leituras. Mas a força realizadora de
desejos que é própria do sonho melhorara radicalmente essa situação incômoda. O pai estava
morto e os demais já tinham ido para o cemitério. Ela podia ler calmamente o que bem lhe
aprouvesse. Não significaria isso que uma de suas razões para a vingança era também a revolta
contra a coerção exercida pelos pais? Se seu pai estivesse morto, ela poderia ler ou amar como
quisesse.


A princípio, ela se recusou a lembrar-se de algum dia ter lido uma enciclopédia, e depois
admitiu que uma lembrança dessa ordem emergira nela, embora de conteúdo inocente. Na época
em que a tia a quem tanto amava estivera gravementeenferma e já se havia decidido a viagem de
Dora a Viena, chegou de outro tio uma cartaanunciando que eles não poderiam ir a Viena, já que
um filho dele, primo de Dora, portanto, adoecera perigosamente de uma apendicite. Na ocasião,
ela consultou uma enciclopédia para saber quais eram os sintomas da apendicite. Do que leu
então ela ainda recorda a dor característica localizada no abdômen.


Lembrei-me então de que, pouco depois da morte da tia, Dora sofrera em Viena de uma
suposta apendicite (ver em [1]). Até esse momento, eu não me atrevera a incluir essa doença entre
suas produções histéricas. Contou-me ela que, nos primeiros dias, teve febre alta e sentiu no baixo
ventre a mesma dor sobre a qual lera na enciclopédia. Puseram-lhe compressas frias, mas ela não
conseguiu suportá-las; no segundo dia, em meio a violentas dores, chegou sua menstruação, que
desde seu adoecimento tornara-se muito irregular. Nessa época, ela sofria constantemente de
constipação intestinal.


Não parecia correto conceber esse estado como puramente histérico. Se indubitavelmente
ocorre a febre histérica, parecia arbitrário, por outro lado, atribuir a febre dessa doença
questionável à histeria, e não a uma causa orgânicaatuante na ocasião. Eu estava a ponto de
abandonar essa pista quando a própria Dora veio em  meu auxílio, trazendo seu último adendo ao
sonho: “ela se via com singular nitidez subindo as escadas.”


Naturalmente, eu exigia para isso um determinante especial. Dora objetou que, afinal, tinha
de subir a escada se pretendia chegar a seu apartamento, que ficava num andar alto. Foi-me fácil
repelir essa objeção, levantada talvez não muito a  sério, assinalando que, se no sonho ela pudera
viajar da cidade estranha até Viena omitindo o percurso de trem, também poderia ter deixado de
fora a subida da escada. Ela prosseguiu então no relato: depois da apendicite, tivera dificuldade
em caminhar, pois arrastava o pé direito. Isso persistira por muito tempo, e portanto de bom grado
ela evitava as escadas. Até hoje, o pé ainda se arrastava muitas vezes. Os médicos por ela
consultados a pedido do pai muito se haviam admirado com essa seqüela extremamente incomum
de uma apendicite, sobretudo porque a dor abdominalnão voltou a aparecer e de modo algum
acompanhava o arrastar do pé.


Tratava-se, portanto, de um autêntico sintoma histérico. Por mais que a febre da época
fosse considerada orgânica - talvez por um dos ataques tão freqüentes de influenza sem
localização particular -, estava agora comprovado que a neurose se apoderara desse evento
fortuito e se valera dele para uma de suas manifestações. Assim, Dora havia arranjado para si uma
doença sobre a qual lera na enciclopédia, punindo-se por essa leitura; e teve de reconhecer que o
castigo não podia, em absoluto, referir-se à leitura do artigo inocente, mas que se deu mediante
um deslocamento, depois que a essa leitura seguiu-se uma outra, mais carregada de culpa, que
hoje se ocultava na lembrança por trásda leitura inocente contemporânea. Talvez ainda fosse
possível investigar sobre que temas ela lera naquela ocasião.


Que significava, então, aquele estado que pretendiaimitar uma peritiflite? A seqüela da
afecção - o arrastar de uma perna - era inteiramente incompatível com uma peritiflite, e por certo
deveria adequar-se melhor ao sentido secreto, e talvez sexual, do quadro patológico; se fosse
possível esclarecê-lo, ele poderia lançar luz sobreo sentido buscado. Tentei encontrar uma via de
acesso para esse enigma. Tinha havido indicações temporais no sonho, e o tempo nunca é
indiferente no acontecer biológico. Assim, perguntei quando ocorrera a apendicite, se antes ou
depois da cena do lago. A resposta imediata, que solucionou de um só golpe todas as dificuldades,
foi: nove meses depois. Esse intervalo é bem característico. A suposta apendicite realizara,
portanto, com os modestos recursos à disposição da  paciente (as dores e o fluxo menstrual), a
fantasia de um  parto. Naturalmente, Dora conhecia o significado desse prazo, e não pôde
desmentir a probabilidade de ter lido na enciclopédia, naquela ocasião, a respeito da gravidez e do
parto. Mas o que tinha isso a ver com o arrastar daperna? Eu podia agora arriscar uma conjectura.
É assim que se anda quando se torce o pé. Portanto,ela dera um “passo em falso” e era
perfeitamente correto que desse à luz nove meses depois da cena junto ao lago. Mas ainda me
cabia colocar uma outra exigência. Tais sintomas sóse formam, segundo minha convicção,
quando se tem um modelo  infantilpara eles. Por minhas experiências feitas até agora, devo
sustentar firmemente que as lembranças que se tem de épocas posteriores não dispõem da força
necessária para se impor como sintomas. Eu não ousava esperar que Dora me fornecesse o
material infantil desejado, posto que ainda não posso afirmar a validade universal da tese acima,
por mais que me agradasse fazê-lo. Aqui, porém, a confirmação veio de imediato. Sim, quando
pequena, ela torcera certa vez esse mesmo pé; estava em B e, ao descer as  escadas,
escorregara num degrau; o pé, justamente o mesmo que ela arrastava depois, inchara e tivera de
ser enfaixado, deixando-a em repouso por algumas semanas. Isso foi pouco tempo antes da asma
nervosa que lhe sobreveio no oitavo ano de vida (ver em [1]).


Agora era preciso tirar proveito da comprovação dessa fantasia: “Se você passou por um
parto nove meses depois da cena do lago, e se até hoje arca com as conseqüências do passo em
falso, isso prova que, no inconsciente, você lamentou o desfecho da cena. Assim, em seu
pensamento inconsciente, tratou de corrigi-lo. A premissa de sua fantasiade parto é que, de fato,
algo aconteceu naquela ocasião, que você vivenciou e experimentou então tudo o que, mais tarde,
teve de extrair da enciclopédia. Como vê, seu amor  pelo Sr. K. não terminou com aquela cena,
mas, como afirmei, persistiu até o dia de hoje, embora em seu inconsciente.” Dora não mais o
contradisse.


Esses trabalhos para esclarecer o segundo sonho haviam requerido duas sessões.
Quando, ao término da segunda, expressei minha satisfação ante o conseguido, ela respondeu em
tom desdenhoso: “ - Ora, será que apareceu tanta coisa assim?” E com isso preparei-me para a
chegada de outras revelações.


Dora iniciou a terceira sessão com estas palavras:

“ - O senhor sabe, doutor, que hoje estou aqui pela última vez?”
- Não posso saber, pois você não me disse nada a esse respeito.

“ - É, eu me propusera agüentar até o Ano Novo, mas não quero esperar mais pela cura.”
- Você sabe que tem sempre a liberdade de se retirar. Mas hoje ainda vamos continuar
trabalhando. Quando foi que tomou essa decisão?

“ - Faz uns quatorze dias, creio.”
- Isso soa como uma empregada ou uma governanta: umaviso prévio de quatorze dias.

“ - Havia também uma governanta que deu aviso prévio na casa dos K. quando os visitei
em L , no lago.”
- É mesmo? Você nunca me contou nada sobre ela. Conte-me, por favor.

“- Bem, havia uma mocinha na casa, como governanta  das crianças, que exibia um
comportamento estranhíssimo em relação ao Sr. K. Não o cumprimentava, não lhe dava nenhuma
resposta, nunca lhe entregava nada à mesa quando ele lhe pedia, em suma, tratava-o como se
fosse vento. Aliás, ele também não era muito mais cortês com ela. Um ou dois dias antes da cena
do lago, a moça me chamou à parte; tinha algo a me  comunicar. Contou-me então que o Sr. K.,
numa época em que sua mulher estivera ausente por várias semanas, tinha-se aproximado dela,
fizera-lhe um assédio insistente e lhe pedira que fosse solícita com ele, dizendo que não tinha
nada com sua mulher etc.”
- Ora, são as mesmas palavras que ele usou ao fazer-lhe sua proposta, e em função das
quais você lhe deu a bofetada no rosto.

“- É. Ela cedeu, mas em pouco tempo ele já não lhe  dava importância, e desde então ela
passou a odiá-lo.”
- E essa governanta deu um aviso prévio?

“- Não, estava pretendendo fazê-lo. Disse-me que, tão logo se sentiu abandonada, contou
o acontecido a seus pais, que são gente decente quemora em algum lugar da Alemanha. Os pais
lhe exigiram que abandonasse a casa imediatamente e, como isso não foi feito, escreveram
dizendo que não queriam mais saber dela, que ela nunca mais poderia voltar para casa.”
- E por que ela não foi embora?

“- Disse que ainda queria esperar um pouco para verse o Sr. K. não se modificaria. Não
suportava viver daquela maneira. Se não visse nenhuma mudança, daria o aviso prévio e sairia.”
- E o que aconteceu com a moça?

“- Só sei que foi embora.”
- Não teve nenhum filho dessa aventura?

“- Não.”


Em meio à análise, portanto - aliás, em perfeito acordo com as regras -, ali vinha à luz um
fragmento de material efetivo que ajudava a solucionar problemas previamente levantados. Pude
dizer a Dora:
- Agora conheço o motivo daquela bofetada com que você respondeu à proposta do Sr. K.
Não foi a afronta pela impertinência dele, mas uma  vingança por ciúme. Quando a mocinha lhe
contou sua história, você ainda pôde valer-se de sua arte de pôr de lado tudo o que não convinha a
seus sentimentos. Mas no momento em que o Sr. K. usou as palavras “Não tenho nada com minha
mulher”, que ele também dissera à senhorita, novas  emoções foram despertadas em você e
fizeram pender a balança. Você disse a si mesma: “Como se atreve ele a me tratar cono uma
governanta, uma serviçal?” A esse orgulho ferido somaram-se o ciúme e os motivos de prudência
conscientes: definitivamente, era demais. Para provar o quanto você ficou impressionada coma
história da governanta, relembro suas repetidas identificações com ela no sonho e em sua própria
conduta. Você contou a seus pais, o que até aqui não havíamos compreendido, tal como a moça
escreveu aos pais dela. Está-se despedíndo de mim como uma governanta, com um aviso prévio
de quatorze dias. A carta do sonho, que lhe permitevoltar para casa, é a contrapartida da carta
dos pais da moça, em que ela é proibida de fazê-lo.

“ - E por que, então, não contei a meus pais imediatamente?”
- Quanto tempo deixou passar?

“ - A cena ocorreu no último dia de junho; em 14 dejulho contei-a a mamãe.”
- Outra vez, portanto, quatorze dias, o prazo característico para uma criada! Agora posso
responder à sua pergunta. Você compreendeu muito bem a pobre moça. Ela não queria ir-se de
imediato porque ainda tinha esperanças, porque esperava que o Sr. K. voltasse a lhe dar sua
ternura. Esse deve ter sido também o seu motivo. Você aguardou esse prazo para ver se ele
renovaria suas propostas; daí teria concluído que ele estava agindo a sério, e que não queria
brincar com você como fizera com a governanta.

“ - Nos primeiros dias depois da partida ele ainda me mandou um cartão-postal.”
- Sim, mas como não veio nada mais, você deu livre  curso a sua vingança. Posso até
imaginar que, nessa época, ainda havia lugar para aintenção colateral, mediante a acusação, de
induzi-lo a viajar até o local onde você morava.

“ - … Que foi, aliás, o que ele primeiro se ofereceu a fazer”, interrompeu ela.
- Então sua saudade dele ter-se-ia apaziguado - aqui, ela assentiu com a cabeça, coisa
que eu não havia esperado - e ele poderia ter-lhe dado a satisfação que você reclamava.

“ - Que satisfação?”
- É que estou começando a suspeitar de que você levou a questão com o Sr. K. muito mais
a sério do que quis revelar até agora. Não havia entre os K. conversas freqüentes sobre divórcio?

“ - Certamente; primeiro ela não queria, por causa dos filhos, e agora ela quer, mas ele não
quer mais.”
- Será que não pensou que ele queria divorciar-se da mulher para se casar com você? E
que agora já não quer fazê-lo, por não ter nenhuma  substituta? Há dois anos, sem dúvida, você
era muito jovem, mas você mesma me contou que sua mãe ficou noiva aos dezessete anos, e
depois esperou dois anos pelo marido. A história amorosa da mãe costuma ser um modelo para a
filha. Por isso, você também queria esperar, e achou que ele estava apenas aguardando que você
amadurecesse o bastante para se tornar mulher dele.Imagino que esse tenha sido um projeto de
vida muito sério para você. E não tem sequer o direito de afirmar que essa intenção estivesse
excluída para o Sr. K., pois você me contou sobre ele o bastante para apontar diretamente para
esse propósito. Tampouco a conduta dele em L contradiz isso. Você não o deixou terminar sua
fala e não sabe o que ele queria dizer-lhe. Aliás,  o projeto não seria tão impossível de realizar. As
relações entre seu pai e a Sra. K., que provavelmente você só apoiou por tanto tempo por causa
disso, davam-lhe a certeza de que se conseguiria o  consentimento da mulher para o divórcio, e
com seu pai você consegue o que quer. Na verdade, se a tentação em L houvesse tido outro
desfecho, essa teria sido a única solução possível  para todas as partes. Penso também que por
isso você lamentou tanto o outro desenlace e o corrigiu na fantasia que se apresentou como uma
apendicite. Assim, deve ter sido uma grande decepção para você que, em vez de uma proposta
renovada, suas acusações tenham tido como resultadoas negativas e as calúnias do Sr. K. Você
admite que nada a enfurece mais do que acreditarem  que você imaginou a cena do lago (ver em
[1]). Agora sei do que é que não quer ser lembrada:é de ter imaginado que a proposta estava
sendo feita a sério e que o Sr. K. não desistiria até que você se casasse com ele.


Dora me escutara sem me contradizer como de costume. Parecia emocionada; despediu-se da maneira mais amável, com votos calorosos parao Ano-Novo, e… nunca mais voltou. O pai,
que ainda me visitou algumas vezes, garantiu que ela voltaria; notava-se, dizia, que ela estava
ansiosa pela continuação do tratamento. Mas ele nãoera totalmente sincero. Havia apoiado o
tratamento enquanto lhe fora possível esperar que eu “dissuadisse” Dora da idéia de que entre ele
e a Sra. K. havia algo além de uma amizade. Seu interesse desvaneceu-se ao notar que não era
minha intenção promover esse resultado. Eu sabia que ela não retornaria. Foi um indubitável ato
de vingança que, no momento em que minhas esperanças de um término feliz do tratamento
estavam no auge, ela partisse de maneira tão inesperada e aniquilasse essas esperanças.
Também sua tendência a prejudicar a si mesma beneficiou-se desse procedimento. Quem, como
eu, invoca os mais maléficos e maldomados demônios  que habitam o peito humano, com eles
travando combate, deve estar preparado para não sair ileso dessa luta. Será que eu poderia ter
conservado a moça em tratamento, se tivesse eu mesmo representado um papel, se exagerasse o
valor de sua permanência para mim e lhe mostrasse um interesse caloroso que, mesmo atenuado
por minha posição de médico, teria equivalido a um substituto da ternura por que ela ansiava? Não
sei. Já que em todos os casos parte dos fatores encontrados sob a forma de resistência
permanecem desconhecidos, sempre evitei desempenharpapéis e me contentei com uma arte
psicológica mais modesta. A despeito de todo o interesse teórico e de todo o empenho médico de
curar, tenho muito presente que a influência psíquica necessariamente tem limites, e respeito como
tais também a vontade e a compreensão do paciente.


Tampouco sei se o Sr. K. teria logrado mais se lhe fosse revelado que aquela botetada no
rosto de modo algum significara um “não” definitivode Dora, mas que expressara o ciúme recém-despertado nela, enquanto as moções mais intensas de sua vida anímica ainda tomavam o partido
dele. Se ele não tivesse dado ouvidos a esse primeiro “não” e houvesse persistido em sua
proposta com uma paixão mais convincente, o resultado bem poderia ter sido um triunfo da afeição
da moça sobre todas as suas dificuldades internas. Mas creio que, talvez com a mesma facilidade,
isso poderia tê-la apenas provocado a satisfazer nele, com intensidade ainda maior, sua sede de
vingança. Nunca se pode calcular para que lado penderá a decisão no conflito entre os motivos, se
para a eliminação ou o reforço do recalcamento. A incapacidade para o atendimento de uma
demanda amorosa  realé um dos traços mais essenciais da neurose; os doentes são dominados
pela oposição entre a realidade e a fantasia. Aquilo por que mais intensamente anseiam em suas
fantasias é justamente aquilo de que fogem quando lhes é apresentado pela realidade, e com
maior gosto se entregam a suas fantasias quando já  não precisam temer a realização delas. A
barreira levantada pelo recalcamento, no entanto, pode cair sob o assalto de excitações violentas
de causa real; a neurose ainda pode ser derrotada pela realidade. Mas não podemos avaliar
genericamente em quem e de que maneira essa cura seria possível.


 
POSFÁCIO

É verdade que anunciei esta comunicação como um fragmento de análise; mas hão de tê-la achado incompleta em proporções muito maiores doque seu título levaria a esperar. Convém,
portanto, que eu tente indicar os motivos dessas omissões nada acidentais.


Falta uma série de resultados da análise, em parte  porque, quando da interrupção do
trabalho, eles não estavam suficientemente reconhecidos, e em parte porque teriam requerido um
prosseguimento para se chegar a alguma conclusão geral. Noutros pontos, onde me pareceu
admissível, apontei o rumo provável em que cada solução seria encontrada. Além disso, omiti por
completo a técnica, que nada tem de óbvia e unicamente através da qual se pode extrair da
matéria-prima das associações do enfermo o metal puro dos valiosos pensamentos inconscientes.
Isso traz a desvantagem de o leitor não poder confirmar, nesta exposição, o acerto de meu
procedimento. Contudo, pareceu-me totalmente impraticável lidar ao mesmo tempo com a técnica
da análise e com a estrutura interna de um caso de histeria; para mim, isso seria uma tarefa quase
impossível, e a leitura seria certamente intragávelpara o leitor. A técnica exige uma exposição
totalmente separada, que a esclareça mediante numerosos exemplos extraídos dos mais diversos
casos e possa prescindir do resultado obtido em cada um deles. Tampouco tentei fundamentar
aqui as premissas psicológicas vislumbradas em minhas descrições dos fenômenos psíquicos.
Nada se produziria com uma fundamentação descuidada, e uma que fosse minuciosa constituiria
uma obra por si só. Posso apenas assegurar que abordei o estudo dos fenômenos revelados pela
observação dos psiconeuróticos sem estar comprometido com nenhum sistema psicológico
definido, e que depois modifiquei vez após outra minhas opiniões, até me parecerem adequadas
para dar conta da trama das observações efetuadas.  Não me orgulho por ter evitado a
especulação, porém o material para estas hipóteses foi obtido mediante a mais ampla e laboriosa
observação. Em particular, é possível que a firmezade meu ponto de vista na questão do
inconsciente seja chocante, uma vez que opero com representações, cursos de pensamento e
moções inconscientes como se fossem objetos da psicologia tão bons e incontestáveis quanto todo
o consciente; mas de uma coisa estou certo: quem quer que empreenda a investigação desse
mesmo campo de fenômenos com o mesmo método não poderá deixar de situar-se no mesmo
ponto de vista, apesar de todas as dissuasões dos filósofos.


Os colegas que consideram puramente psicológica minha teoria da histeria, e que por isso
a qualificam de antemão como incapaz de solucionar  um problema patológico, deduzirão deste
ensaio que sua objeção transfere injustificadamentepara a teoria o que constitui uma característica
da técnica. Apenas a técnica terapêutica é puramente psicológica; a teoria de modo algum deixa
de apontar para as bases orgânicas da neurose, muito embora não as procure em alguma
alteração anatomopatológica e substitua provisoriamente pela função orgânica a alteração química
esperada, mas ainda impossível de conceber atualmente. Ninguém há de querer negar o caráter
de fator orgânico da função sexual, na qual vejo a fundamentação da histeria e das psiconeuroses
em geral. Suspeito que nenhuma teoria da vida sexual possa evitar a hipótese da existência de
determinadas substâncias sexuais de ação excitante.De fato, dentre todos os quadros patológicos
de que tomamos conhecimento na clínica, as intoxicações e a abstinência quando do uso crônico
de certos venenos são os que mais se aproximam das autênticas psiconeuroses.


Tampouco me estendi neste ensaio, entretanto, acerca do que hoje se pode dizer sobre a
“complacência somática”, os germes infantis da perversão, as zonas erógenas e a predisposição
para a bissexualidade; apenas destaquei os pontos em que a análise tropeça nesses fundamentos
orgânicos dos sintomas. Mais não se poderia fazer com um caso isolado, e tive as mesmas razões
antes apontadas para evitar uma discussão passageira desses fatores. Há aqui uma oportunidade
abundante para trabalhos posteriores, baseados num grande número de análises.


Com esta publicação tão incompleta, eu quis alcançar duas coisas. Em primeiro lugar,
como um complemento a meu livro sobre a interpretação dos sonhos, mostrar como essa arte, que
de outro modo seria inútil, pode ser proveitosa para a descoberta do oculto e do recalcado na vida
anímica; aliás, na análise dos dois sonhos aqui comunicados, levou-se em consideração a técnica
da interpretação dos sonhos, semelhante à técnica psicanalítica. Em segundo lugar, quis despertar
interesse numa série de situações que a ciência ainda hoje desconhece por completo, já que
somente a aplicação desse procedimento específico permite desvendá-las. Ninguém podia ter uma
noção exata da complicação dos processos psíquicos  na histeria, da justaposição das mais
diversas moções, do vínculo recíproco entre os opostos, dos recalques e deslocamentos etc. A
ênfase de Janet na  idée fixe, que se converte no sintoma, não significa nada além de uma
esquematização realmente precária. Não se pode evitar a suposição de que certas excitações
cujas respectivas representações não são passíveis  de se conscientizar atuam diferentemente
umas sobre as outras, têm cursos diferentes e levama manifestações diversas das que chamamos
“normais”, cujo conteúdo de representação torna-se consciente para nós. Uma vez esclarecidas as
coisas até esse ponto, nada mais poderá estorvar a compreensão de uma terapia que suprime os
sintomas neuróticos transformando as representaçõesdo primeiro tipo em representações
normais.


Empenhava-me também em mostrar que a sexualidade não intervém simplesmente como
um  deus ex machinaque se apresentasse uma única vez em algum ponto da engrenagem dos
processos característicos da histeria, mas que fornece a força impulsora para cada sintoma
singular e para cada manifestação singular de um sintoma. Os fenômenos patológicos são, dito de
maneira franca,  a atividade sexual do doente. Um caso isolado nunca permitirá demonstrar uma
tese tão geral, mas só posso repetir vez após outra, pois jamais constato outra coisa, que a
sexualidade é a chave do problema das psiconeuroses, bem como das neuroses em geral. Quem
a desprezar nunca será capaz de abrir essa porta. Ainda aguardo as investigações capazes de
refutar ou restringir essa tese. O que tenho ouvidoaté agora não passam de manifestações de
desagrado pessoal ou de incredulidade, às quais basta contrapor o dito de Charcot: “Ça
n’empêche pas d’exister.”


O caso de cuja história clínica e terapêutica aqui  publiquei um fragmento tampouco é
apropriado para situar em sua justa luz o valor da terapia psicanalítica. Não apenas a brevidade do
tratamento, que mal chegou a três meses, como também outro fator, inerente ao próprio caso,
impediram que a cura se concluísse com a melhora obtenível em outros casos, uma melhora
admitida pelo enfermo e por seus parentes, que maisou menos se aproxima de uma recuperação
completa. Obtém-se tal resultado satisfatório quando as manifestações patológicas são
exclusivamente sustentadas pelo conflito interno entre as moções concernentes à sexualidade.
Nesses casos, vê-se melhorar o estado do doente à medida que, traduzindo o material patogênico
em material normal, contribui-se para o solucionamento de seus problemas psíquicos. O rumo
tomado é diverso quando os sintomas se colocam a serviço de motivos vitais externos, como
acontecera com Dora nos últimos dois anos. Fica-se  surpreso, e pode-se facilmente errar o
caminho, quando se toma conhecimento de que o estado do doente não dá sinal de se modificar
nem mesmo depois de o trabalho ter progredido muito. Na realidade, porém, as coisas não são tão
ruins; é certo que os sintomas não desaparecem enquanto o trabalho prossegue, e sim algum
tempo depois, uma vez dissolvidos os vínculos com omédico. O adiamento da cura ou da melhora
só é realmente causado pela pessoa do médico.


Devo estender-me um pouco mais para tornar essa questão inteligível. Durante o
tratamento psicanalítico, pode-se dizer com segurança que uma nova formação de sintomas fica
regularmente sustada. A produtividade da neurose, porém, de modo algum se extingue, mas se
exerce na criação de um gênero especial de formações de pensamento, em sua maioria
inconscientes, às quais se pode dar o nome de “transferências”.


O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias que,
durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica
(própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico. Dito de outra
maneira: toda uma série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas
como um vínculo atual com a pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se
diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo,  senão por essa substituição. São, portanto,
para prosseguir na metáfora, simples reimpressões,  reedições inalteradas. Outras se fazem com
mais arte: passam por uma moderação de seu conteúdo, uma  sublimação, como costumo dizer,
podendo até tornar-se conscientes ao se apoiarem emalguma particularidade real habilmente
aproveitada da pessoa ou das circunstâncias do médico. São, portanto, edições revistas, e não
mais reimpressões.


Quando se penetra na teoria da técnica analítica, chega-se à concepção de que a
transferência é uma exigência indispensável. Na prática, pelo menos, fica-se convencido de que
não há nenhum meio de evitá-la, e de que essa última criação da doença deve ser combatida
como todas as anteriores. Ocorre que essa parte do  trabalho é de longe a mais difícil. Interpretar
os sonhos, extrair das associações do enfermo os pensamentos e lembranças inconscientes, e
outras artes similares de tradução são fáceis de aprender: o próprio doente sempre fornece o texto
para elas. Somente a transferência é que se tem de apurar quase que independentemente, a partir
de indícios ínfimos e sem incorrer em arbitrariedades. Mas ela é incontornável, já que é utilizada
para produzir todos os empecilhos que tornam o material inacessível ao tratamento, e já que só
depois de resolvida a transferência é que surge no  enfermo o sentimento de convicção sobre o
acerto das ligações construídas [durante a análise].


Tender-se-á a considerar uma séria desvantagem desse procedimento, aliás nada
cômodo, que ele próprio multiplique o trabalho do médico, criando uma nova espécie de produtos
psíquicos patológicos, e talvez se queira até inferir da existência das transferências algum prejuízo
para o doente através do tratamento analítico. Ambas as suposições estariam erradas. O trabalho
do médico não é multiplicado pela transferência; defato, é-lhe indiferente ter de superar a
respectiva moção do enfermo ligada a sua pessoa ou a alguma outra. Mas o tratamento tampouco
obriga o doente, com a transferência, a qualquer nova tarefa que de outro modo ele não
executasse. Se também se produzem curas da neurose  em instituições das quais o tratamento
psicanalítico está excluído, se é possível dizer que a histeria não é curada pelo método, e sim pelo
médico, e se é freqüente obter-se como resultado uma espécie de dependência cega e de cativeiro
permanente do enfermo perante o médico que o livroude seus sintomas através da sugestão
hipnótica, a explicação científica de tudo isso há de ser vista nas “transferências” que o doente faz
regularmente para a pessoa do médico. O tratamento  psicanalítico não cria a transferência, mas
simplesmente a revela, como a tantas outras coisas  ocultas na vida anímica. A única diferença
manifesta-se em que, espontaneamente, o enfermo só  evoca transferências ternas e amistosas
que contribuam para sua cura; não podendo ser esse o caso, ele se afasta o mais rápido possível,
sem ser influenciado pelo médico que não lhe é “simpático”. Na psicanálise, por outro lado, de
acordo com sua colocação diferenciada dos motivos, despertam-se todas as moções [do paciente],
inclusive as hostis; mediante sua conscientização elas são aproveitadas para fins de análise, e
com isso a transferência é repetidamente aniquilada. A transferência, destinada a constituir o maior
obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais poderosa aliada quando se consegue detectá-la
a cada surgimento e traduzi-la para o paciente.


Fui obrigado a falar da transferência porque somente através desse fator pude esclarecer
as particularidades da análise de Dora. O que constitui seu grande mérito e que a fez parecer
adequada para uma primeira publicação introdutória,a saber, sua transparência incomum, está
intimamente ligado a seu grande defeito, que levou  a sua interrupção prematura. Não consegui
dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que Dora punha à minha disposição no
tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar atento aos primeiros
sinais da transferência que se preparava com outra  parte do mesmo material, ainda ignorada por
mim. Desde o início ficou claro que em sua fantasiaeu substituía seu pai, o que era fácil de
compreender em vista de nossa diferença de idade. Dora chegou até a me comparar com ele
conscientemente, buscando, angustiada, assegurar-sede minha completa sinceridade para com
ela, já que seu pai “preferia sempre o segredo e osrodeios tortuosos”. Depois, ao surgir o primeiro
sonho, no qual ela se alertava a abandonar o tratamento tal como antes deixara a casa do Sr. K.,
eu mesmo deveria ter-me precavido, dizendo-lhe: “Agora você fez uma transferência do Sr. K. para
mim. Acaso terá notado algo que a leve a suspeitar  de más intenções semelhantes às do Sr. K.
(diretamente ou por meio de alguma sublimação)? Ou será que algo em mim chamou sua atenção,
ou que você soube de alguma coisa a meu respeito que me fez cair em suas graças, como lhe
ocorreu antes com o Sr. K.?” Então a atenção dela ter-se-ia voltado para algum detalhe de nosso
relacionamento, em minha pessoa ou nas minhas condições, por trás do qual se esconderia algo
análogo, mas incomparavelmente mais importante, a respeito do Sr. K.; e mediante a resolução
dessa transferência a análise teria obtido acesso aum novo material mnêmico, provavelmente
ligado a fatos reais. Mas fiquei surdo a essa primeira advertência, pensando haver tempo, de
sobra, já que não se apresentavam outros estágios da transferência e ainda não se esgotara o
material para análise. Assim, fui surpreendido pelatransferênciae, por causa desse “x” que me
fazia lembrar-lhe o Sr. K., ela se vingou de mim como queria vingar-se dele, e me abandonou como
se acreditara enganada e abandonada por ele. Assim,  atuouuma parte essencial de suas
lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no  tratamento. Naturalmente, não sei dizer qual
era esse “x”: desconfio que se relacionasse com dinheiro, ou com ciúmes de uma outra paciente
que, uma vez curada, continuara a manter relações com minha família. Quando as transferências
se deixam abarcar precocemente na análise, o curso  desta é opacificado e retardado, mas sua
existência fica mais assegurada contra as resistências repentinas e insuperáveis.


No segundo sonho de Dora, a transferência é substituída por diversas alusões claras.
Quando ela o narrou, eu ainda não sabia (só fiquei sabendo dois dias depois) que só nos restavam
duas horasde trabalho, o mesmo tempo que ela passara em frente à Madona Sistina (ver em [1]) e
também, introduzindo uma correção (duas horas em vez de duas horas e meia), o que lhe fora
indicado como a extensão do trajeto ao redor do lago, que ela nãoseguira (ver em [1]). As
aspirações e a espera no sonho, relacionadas com o rapaz na Alemanha e provenientes da espera
de que o Sr. K. pudesse casar-se com ela, já se haviam expressado na transferência dias antes: o
tratamento se prolongava muito e ela não tinha paciência de esperar tanto, muito embora, nas
primeiras semanas, houvesse demonstrado discernimento suficiente para escutar, sem fazer tais
objeções, meu anúncio de que seu pleno restabelecimento talvez requeresse um ano. A recusa a
ser acompanhada e a preferência por ir sozinha, manifestas no sonho e igualmente originárias da
visita à galeria de Dresden, eram algo que eu próprio deveria experimentar no dia marcado.
Tinham sem dúvida esse sentido: “Já que todos os homens são tão detestáveis, prefiro não me
casar. Esta é minha vingança.”


Quando, no decorrer do tratamento, as moções de crueldade e os motivos de vingança já
usados na vida do paciente para sustentar seus sintomas transferem-se para o médico, antes que
ele tenha tido tempo de afastá-los de sua pessoa reconduzindo-os a suas origens, não surpreende
que o estado do enfermo não exiba a influência de seu empenho terapêutico. De que maneira
pode o doente vingar-se com mais eficácia do que demonstrando, em sua própria pessoa, quão
impotente e incapaz é o médico? Ainda assim, não meinclino a subestimar o valor terapêutico nem
mesmo de tratamentos tão fragmentários quanto foi ode Dora.


Só depois de decorridos quinze meses do término do tratamento e da redação deste texto
recebi notícias do estado de minha paciente e, por  conseguinte, dos resultados da terapia. Numa
data nada indiferente, o dia 1º de abril - sabemos  que as indicações temporais nunca foram
desprovidas de sentido para ela -, Dora apresentou-se diante de mim para concluir sua história e
pedir-me ajuda novamente, mas uma olhadela para suaexpressão revelou-me que ela não levava
a sério esse pedido. Nas quatro ou cinco semanas após deixar o tratamento ela andou numa
“atrapalhação”, segundo disse. Sobreveio então uma  grande melhora: os ataques rarearam e seu
estado de ânimo se elevou. Em maio daquele ano morreu um dos filhos do casal K., que sempre
fora doentio. Ela aproveitou a oportunidade dessa perda para fazer-lhes uma visita de
condolências, e os K. a receberam como se nada houvesse acontecido naqueles últimos três anos.
Nessa ocasião, ela se reconciliou com eles, vingou-se deles e levou seu assunto a uma conclusão
que lhe foi satisfatória. À mulher, disse: “Sei quevocê tem um relacionamento com papai”, e esta
não o negou. Quanto ao marido, provocou-o a confessar a cena do lago antes contestada por ele,
e levou ao pai essa notícia justificatória. Desde então não retomou seu relacionamento com essa
família.


Depois disso, ela foi muito bem até meados de outubro, época em que lhe sobreveio outro
ataque de afonia que perdurou três semanas. Surpreso diante dessa comunicação, perguntei-lhe
se tinha havido algo que ensejasse isso e soube queo ataque se seguira a um susto violento. Ela
vira alguém ser atropelado por uma carruagem. Por fim, saiu-se com a informação de que o
acidente não atingira outra pessoa senão o Sr. K. Deparara com ele na rua um dia, num lugar de
tráfego intenso; ele se quedara diante dela, como que desconcertado, e nesse estado de distração
fora derrubado por uma carruagem. A propósito, ela  se convencera de que ele havia escapado
sem nenhum dano considerável. Ainda lhe causava umaligeira emoção ouvir falar no
relacionamento de seu pai com a Sra. K., mas ela jánão se imiscuía nisso. Estava dedicada a
seus estudos e não pensava em se casar.
Viera buscar minha ajuda por causa de uma nevralgiafacial do lado direito, que agora
persistia dia e noite. - Desde quando? perguntei-lhe. “Exatamente há quatorze dias.” Não pude
deixar de sorrir, pois foi-me possível demonstrar-lhe que justamente quatorze dias antes ela lera
uma notíciareferente a mim nos jornais, o que ela confirmou (isso foi em 1902).


A suposta nevralgia facial correspondia, portanto,  a uma autopunição, ao remorso pela
bofetada que ela dera naquele dia no Sr. K. e pela transferência vingativa daí feita para mim. Não
sei que tipo de auxílio ela queria pedir-me, mas prometi perdoá-la por ter-me privado da satisfação
de livrá-la muito mais radicalmente de seus padecimentos.


Passaram-se novamente vários anos desde sua visita.A moça se casou, e por certo com
aquele rapaz que, se todos os indícios não me enganam, fora mencionado em suas associações
no início da análise do segundo sonho. Tal como o primeiro sonho significara o afastamento do
homem amado em direção ao pai, ou seja, a fuga da vida para a doença, esse segundo sonho
anunciou que ela se desprenderia do pai e ficaria recuperada para a vida.