Neuroses Atuais e Freud

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FREUD E AS NEUROSES ATUAIS: AS PRIMEIRAS
OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS DOS QUADROS
BORDERLINE?

Camila Junqueira*
Nelson Ernesto Coelho Junior**


RESUMO
Ao admitirmos que os quadros borderline e as denominadas patologias da contemporaneidade
freqüentemente associadas a esses quadros não são propriamente novos, resta
saber como apareciam no passado. Um retorno a Freud sugere que as “neuroses atuais”
correspondem às primeiras observações psicanalíticas dessas manifestações; ainda que a
hipótese etiológica formulada por Freud sobre as “neuroses atuais”, baseada no acúmulo de
tensão sexual, precise ser revista. Atualmente seria difícil sustentar a idéia de que uma
patologia psíquica encontra suas origens exclusivamente na falta de satisfações sexuais, em
sua acepção genital. Contudo, se tomarmos “sexual” como sendo o propriamente pulsional,
tal qual Freud parecia privilegiar, é bastante coerente afirmar que essas patologias
resultam da transformação direta – não mediada pelo psiquismo – da pulsão não satisfeita.
Neste retorno a Freud é também possível encontrar algumas pistas para a construção de
uma nova hipótese etiológica, baseada nas neuroses narcísicas.
Palavras-chave: neuroses atuais, borderline, patologias contemporâneas, psicanálise


ABSTRACT
FREUD AND THE ACTUAL NEUROSIS: THE FIRST PSYCHOANALYTICAL OBSERVATION OF
BORDERLINE CASES?
If we admit that the borderline cases and the so called contemporary pathologies, frequently
associated with these cases, are not properly new, we still must ask how they appeared in past
times. Looking back into Freud’s theory we may find that the “actual neurosis” was the first
* Psicanalista; Mestre; Doutoranda do Instituto de Psicologia da USP.
**Psicanalista; Doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP); Professor; Pesquisador e Orientador
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP.
psychoanalytical observation of this type of manifestation; even though, the etiologic hypothesis
proposed by Freud must be reviewed. Nowadays it would be difficult to support the idea that a
psychic pathology finds its origins exclusively in the lack of sexual satisfaction, in the genital
sense. However, if we take “sexual” in the instinct (trieb) sense, as Freud appeared to privilege,
it is very coherent to affirm that these pathologies result of the direct transformation – nonmediated
by the psychic – of the instinct (trieb) non-satisfied. In these return to Freud it is also
possible to find some clues to the construction of a new etiologic hypothesis based on the narcissistic
neurosis.
Keywords: actual neurosis, borderline, contemporary pathologies, psychoanalysis


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Certas manifestações, tais como, doenças psicossomáticas graves, adições, e
parte dos transtornos alimentares, atualmente agrupados por diversos autores como
parte do heterogêneo grupo dos quadros borderline, têm representado um grande
desafio para a técnica analítica, na medida em que colocam em xeque suas principais
premissas: a associação livre, a transferência, a interpretação e a manutenção
do setting; diante disso, as pesquisas psicanalíticas têm buscado avançar sobre esse
ponto, trazendo novas propostas de intervenção (Chabert, 1999; Figueiredo, 2003;
Mayer, 2004). Entretanto, ao lado dessa discussão acerca dos modos de interven-
ção, os psicanalistas têm se perguntado se esses quadros configuram novas patologias,
ou se há, na realidade, um aumento na freqüência (e em nossa forma de
conceber) de patologias que, de fato, sempre existiram. Sobre o aumento da freqüência
desses quadros na atualidade, a literatura psicanalítica tem sugerido como
principal causa a perda das tradições e da história em conseqüência da globaliza-
ção e do tipo de relação subjetiva presente na sociedade de consumo ditada pelo
capitalismo (Safra, 2000; Hegenberg, 2000; Uchitel, 2002; Viluttis, 2002, entre
outros). Contudo, se admitimos que essas manifestações não são propriamente
novas, nos resta a questão: como elas se apresentavam no passado? Acreditamos
que um retorno a Freud nos sugere que as “neuroses atuais” foram as primeiras
observações psicanalíticas dessas manifestações (ou dos, denominados atualmente,
quadros borderline, ou patologias contemporâneas); ainda que a hipótese
etiológica formulada por Freud sobre as “neuroses atuais” baseada numa lesão
tóxica ou no acúmulo de tensão sexual precise ser revista para que uma teoria
etiológica mais complexa possa ser construída. Nesse retorno a Freud é possível
também encontrar algumas pistas para a construção dessa nova hipótese etiológica,
como será visto a seguir.

Para Freud (1905, 1923, 1925), a principal diferença entre as neuroses atuais
e as psiconeuroses podia ser estabelecida por meio da etiologia: enquanto as
primeiras eram tidas como conseqüência, por interferência química, de impedi-
mentos da satisfação sexual na vida atual, as psiconeuroses eram vistas como conseqüência,
por intermediação psíquica, de fixações e desvios da libido na infância.

Segundo, Strachey, editor da Standard Edition,
A verdade é que, em 1895, Freud encontrava-se a meio caminho no processo
de passar das explicações fisiológicas dos estados psicopatológicos para as explicações
psicológicas. Por um lado, propunha o que era, em linhas gerais, uma
explicação química das neuroses “atuais” – neurastenia e neurose de angústia –
(em seus dois artigos sobre neurose de angústia, [Quais são os fundamentos
para destacar uma síndrome específica denominada neurose de angústia e Respostas
às críticas a meu artigo sobre a neurose de angustia] 1895), e, por outro,
propunha uma explicação essencialmente psicológica – em termos de “defesa” e
“recalcamento” – para a histeria e as obsessões (em seus dois artigos sobre As
neuropsicoses de defesa, 1894 e 1896). Sua formação anterior e sua carreira
como neurologista levavam-no a resistir à aceitação das explicações psicológicas
como definitivas; e ele estava empenhado em elaborar uma estrutura complexa
de hipóteses destinadas a possibilitar a descrição dos eventos mentais em termos
puramente neurológicos. Essa tentativa culminou no “Projeto” e foi abandonada
não muito depois. Até o fim da vida, porém, Freud continuou adepto da
etiologia química das neuroses “atuais” e a acreditar que se acabaria encontrando
uma base física para todos os fenômenos mentais. Entrementes, ele chegou pouco
a pouco ao ponto de vista expresso por Breuer de que os processos psíquicos só
podem ser tratados na linguagem da psicologia (Strachey, 1969: 27).

Todavia, Freud deixou o tratamento das neuroses atuais de lado. Segundo
ele, tanto os sintomas das psiconeuroses como das neuroses atuais são o resultado
de um uso anormal da libido:
[...] os sintomas das neuroses “atuais” – pressão intracraniana, sensações de
dor, estado de irritação em um órgão, enfraquecimento ou inibição de uma
função – não têm nenhum “sentido”, nenhum significado psíquico. Não só
se manifestam predominantemente no corpo (como, por exemplo, os sintomas
histéricos entre outros), como também constituem eles próprios processos
inteiramente somáticos, em cuja origem estão ausentes todos os complicados
mecanismos mentais que já conhecemos [...] se, nos sintomas das
psiconeuroses, nos familiarizamos com as manifestações de distúrbios na atua-
ção psíquica da função sexual, não nos surpreenderemos ao encontrar nas
neuroses “atuais” as conseqüências somáticas diretas desses distúrbios sexuais
(Freud, 1917/1969: 452).

Essa idéia já estava presente quando Freud afirma, nas “Contribuições a um
debate sobre a masturbação”, que
a prisão-de-ventre, as dores de cabeça e a fadiga do chamado neurastênico não
admitem serem remontadas, histórica ou simbolicamente, a experiências
operantes e não podem ser compreendidas como substitutos da satisfação sexual
ou como conciliações entre impulsos pulsionais opostos, como é o caso dos
sintomas psiconeuróticos (ainda que os últimos talvez possam ter a mesma aparência)
(Freud, 1912/1969: 314).

Porém, nesse texto, Freud se mostra mais otimista quanto ao alcance da
psicanálise diante desses quadros, ao afirmar que não pode esperar a cura analítica,
mas pelo menos uma melhora dos danos através do aumento da tolerância do
paciente aos sintomas ou de uma mudança no regime sexual (Freud, 1912/1969).
Ao que parece, esta idéia perde força nos textos subseqüentes.

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Para Freud, as neuroses atuais tinham características semelhantes aos quadros
de intoxicação orgânica, o que acabou deixando muito pouco espaço para a
atuação da terapia psicanalítica e também para desenvolvimento de hipóteses
metapsicológicas. Justificando porque não deu inicio à sua conferência sobre “O
estado neurótico comum” (Freud, 1917/1969: 453-4) pela descrição destes quadros,
ele escreve:
os problemas das neuroses atuais, cujos sintomas provavelmente são gerados
por lesão tóxica direta, não oferecem à psicanálise qualquer outro ponto de
ataque. Ela pouco pode fazer para esclarecê-los e deve deixar essa tarefa para a
pesquisa bioquímica [...] por essa razão, as neuroses “atuais”, improdutivas no
que concerne à psicanálise, não podiam mais ocupar um lugar em primeiro
plano (Freud, 1917/1969: 453).

Mas, ainda sim, Freud mantém algum interesse nas neuroses atuais e distingue
três formas puras: neurastenia, neurose de angústia e hipocondria.

O termo “neuroses atuais” foi aos poucos ficando escasso na obra de Freud e
sua última aparição foi em 1925, nos “estudos autobiográficos”, quando ele reafirma
a convicção em seus achados:
Desde aquela época não tive oportunidade de voltar à pesquisa das “neuroses
atuais” nem essa parte do meu trabalho foi continuada por outro. Se hoje lanço
um olhar retrospectivo aos meus primeiros achados, eles me surpreendem como
sendo os primeiros delineamentos toscos daquilo que é provavelmente um assunto
muito mais complicado. Mas no todo ainda me parecem válidos. Teria ficado
muito satisfeito se tivesse sido capaz, posteriormente, de proceder a um exame
psicanalítico de mais alguns casos de neurastenia juvenil, mas infelizmente não
surgiu a ocasião. A fim de evitar concepções errôneas, gostaria de esclarecer que
estou longe de negar a existência de conflitos mentais e de complexos neuróticos na
neurastenia. Tudo que estou afirmando é que os sintomas desses pacientes não são
mentalmente determinados ou removíveis pela análise, mas devem ser considerados
como conseqüências tóxicas diretas de processos químicos sexuais perturbados
(Freud, 1925/1969: 38-9; grifo nosso).

Também é possível observar nas “Novas conferencias introdutórias” (1932/
1969) que Freud realmente nunca abandonou por completo suas idéias sobre as
neuroses atuais quando fala sobre a neurose de angústia, uma das três formas de
neurose atual, ao escrever sobre as três formas da ansiedade neurótica:
Em primeiro lugar, encontramo-la [a ansiedade] na forma livremente flutuante,
um estado de apreensão difusa, pronta a vincular-se temporariamente, sob a forma
do que se conhece como “ansiedade expectante”, a qualquer possibilidade que
de imediato possa surgir – como acontece, por exemplo, numa neurose de angústia
típica. Em segundo lugar, encontramo-la firmemente vinculada a determinadas
idéias, nas chamadas “fobias”, em que ainda é possível reconhecer uma relação
com um perigo externo, nas quais, porém, devemos considerar que o medo é
exagerado, desproporcionado. Em terceiro e último lugar, encontramos a ansiedade
na histeria e em outras formas de neurose grave, onde ou ela acompanha os
sintomas, ou surge independentemente como ataque, ou como estado mais persistente,
mas sempre sem qualquer base visível em um perigo externo [...] A causa
mais comum da neurose de angústia é a excitação não consumada. A excitação libidinal
é despertada mas não satisfeita, não utilizada; o estado de apreensão surge, então,
no lugar dessa libido que foi desviada de sua utilização [...] As fobias infantis e a
expectativa ansiosa da neurose de angústia nos oferecem dois exemplos da maneira
como se origina a ansiedade neurótica: transformação direta da libido [...] Não
faz, pois, nenhuma diferença essencial [para o que está sendo discutido] por que
razão uma quota de libido se tornou não-utilizável: se é por causa da debilidade
infantil do ego, como nas fobias de crianças, ou se é por causa de processos somáticos
da vida sexual, como na neurose de angústia, ou se devido à repressão, como na
histeria (Freud, 1932/1969: 85-6; grifos nosso).

Nesse trecho, Freud mantém a classificação de neurose de angústia, uma das
neuroses atuais, relacionada aos processos somáticos e à expressão da libido sem
mediação psíquica.

Ferraz (1996: 37) pondera que no desenvolvimento ulterior da psicanálise as
neuroses atuais perderam força como classificação nosológica, embora tenham
mantido grande importância teórica. Laplanche e Pontalis (1967: 299-301) apontam
que elas nos levam diretamente às concepções modernas de psicossomática e
dizem que talvez a insistência de Freud na não-satisfação sexual como fator
etiológico tenha atrapalhado o desenvolvimento do conceito. Mas é fundamental
a antevisão de Freud de que o sintoma psicossomático não se constituía como
retorno do recalcado e sim como uma transformação direta (não-mediada pelo
simbólico) da libido não satisfeita.

Nossa idéia é que esses quadros descritos por Freud não dizem respeito apenas
às doenças psicossomáticas, mas também às demais doenças que hoje constituem
o bastante heterogêneo grupo das patologias borderline ou quadros-limite e
que são caracterizados pela ausência de significado simbólico nos sintomas. Para
Horn e Almeida (2003: 72-3), as neuroses atuais nos fazem pensar que o psíquico
não esgota as possibilidades da experiência humana, elas nos fazem entrar em
contato com um campo de vazios psíquicos, onde as condições para a formação
de objetos, representantes psíquicos das pulsões, não se cumprem.

Para Zusman (1994), a diferença que Freud traça entre as neuroses atuais e
as psiconeuroses vai muito além de uma delimitação nosológica, “ela marcava a
existência de um fosso que separa os processo simbólicos de uma outra forma de
‘pensar’ para a qual não há um nome definido no campo da psicanálise” e para o
qual esse autor vai propor o nome “sígnico” (Zusman, 1994: 154). Os processos
simbólicos e a histeria foram a matriz da psicanálise, mas isso não dá conta de
todos os fenômenos da clínica, há problemas que aparecem no corpo que não
podem ser reduzidos a conversões histéricas. Existe um grupo de pacientes que
apresenta somatizações, que tem uma vida de fantasia muito empobrecida e baixa
tolerância a interpretações, que Zusman identifica com a descrição freudiana das
neuroses atuais, quadro clínico que ficou relegado à orfandade quando o foco se
dirigiu para os processos simbólicos e para as psiconeuroses.

Zusman (1994) nos lembra que a transferência, chave do tratamento analí-
tico, também se assenta sobre processos simbólicos, que não estão plenamente ao
alcance de todos. O símbolo se define pela propriedade de representar o objeto na
ausência do mesmo, é um instrumento do pensamento e é marca distintiva da
condição humana, porém o aparecimento dos recursos de simbolização não implica
o desaparecimento dos recursos sígnicos pré-existentes.
A linha divisória que Freud traçou separando as psiconeuroses das neuroses
atuais corresponde, assim, ao divisor de águas que agrupa em um de seus lados
as vicissitudes do processo simbólico e, no outro, o do processo sígnico [...] na
prática clínica, nos consultórios psicanalíticos as neuroses atuais ganham um tratamento
idêntico ao das psiconeuroses, ainda que a resposta terapêutica a estas
interpretações seja freqüentemente precária [...] O pensamento sígnico é um pensamento
do corpo, no corpo, que não ganhou transformação simbólica, e que se
anuncia como ação motora, secretória ou visceral [...] o usual é que a interpreta-
ção simbólica não alcance a camada sígnica (Zusman, 1994: 158-60).

Deste modo, acreditamos, por um lado, que a hipótese etiológica freudiana
sobre a formação das neuroses atuais, que se baseava na não-satisfação sexual direta,
precisa ser abandonada para que uma teoria mais complexa possa ser pensada.
Por outro lado, ao que parece, as observações de Freud sobre os quadros denominados
de neuroses atuais, que se caracterizam pela formação de sintomas não
mediados pelo simbólico, foram as primeiras observações psicanalíticas do que
hoje segue a denominação de patologias atuais, casos-limite ou borderline e que
inclui os distúrbios psicossomáticos, assim como algumas formas de distúrbios
alimentares e adições.

Atualmente, seria difícil sustentar a idéia de Freud de que uma patologia
psíquica encontra suas origens exclusivamente na falta de satisfações sexuais, em
sua acepção genital. Contudo, se tomarmos “sexual” como sendo o propriamente
pulsional, tal qual Freud mesmo parecia privilegiar, é bastante coerente afirmar
que essas patologias resultam da transformação direta – não mediada pelo psiquismo
– da pulsão não-satisfeita. Com isso, a questão passa a ser por que essa mediação
não ocorreu. Hipóteses sobre as falhas na relação mãe-bebê ajudam a compreender
que a mediação psíquica pode falhar não apenas em situações traumáticas,
onde há um excesso pulsional, mas também em razão de prejuízos na constituição
do aparelho psíquico, entendido aqui como um aparelho mediador. Também
podemos pensar que algumas doenças somáticas são mais mediatizadas que outras,
ou seja, fazem parte de quadros neuróticos, enquanto outras, descritivamente
semelhantes, são menos ou quase nada mediatizadas, fazendo parte dos quadros
limites (onde há falhas na constituição dos limites do psiquismo). Vale também
lembrar que parte da literatura atual na área tem apontado que a anorexia pode ser
encontrada dentro de quadros de histeria ou se apresentar como pura descarga,
podendo ser colocada no rol dos quadros limite (Scazufca e Berlink, 2004).

Nas “Conferências introdutórias” (1917/1969), Freud expôs algumas idéias
sobre as neuroses narcísicas que nos servem para pensar uma outra etiologia para
as neuroses atuais (e com isso, também, uma outra etiologia para as patologias
borderline). A partir da consideração de que o narcisismo é um estádio universal e
original no qual as pulsões estão completamente voltadas para o ego, Freud estabelece
que durante o desenvolvimento normal da libido esta deve progressivamente
ser dirigida aos objetos, sem que o narcisismo, no entanto, desapareça totalmente.
Porém, se a libido não encontra mais satisfação nesses objetos, por sua

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ausência na realidade ou por efeito da repressão, a tendência da libido é regredir
para objetos e meios de satisfação mais primitivos – pontos de fixação que se
constituíram na história do desenvolvimento da libido daquele indivíduo. Segundo
Freud (1917/1969: 491), o processo que desliga a libido dos objetos e bloqueia
seu retorno a eles é estreitamente relacionado ao processo de repressão. Contudo,
se nas neuroses narcísicas o resultado é diferente do que ocorre na histeria (ou
psiconeuroses em geral), isto se deve a fatores constitucionais, ou seja, o ponto de
fixação da libido deve ter ocorrido em fases muito mais precoces do desenvolvimento,
provavelmente na fase do narcisismo primário.

Ao lado destas concepções, Freud também afirma que a técnica analítica se
mostra insuficiente para o tratamento das neuroses narcísicas, pois os indivíduos
são incapazes de transferência, a base para todo tratamento analítico:
as neuroses narcísicas dificilmente podem ser abordadas mediante a técnica que
nos foi de utilidade nas neuroses de transferência. Em breve os senhores saberão
por quê. Com elas, o que acontece é que, após avançarmos uma curta distância,
deparamos com um muro que nos força a parar. Nas neuroses de transferência,
como sabem, também nos defrontamos com barreiras da resistência,
mas conseguimos demoli-las, parte por parte. Nas neuroses narcísicas, a resistência
é intransponível; quando muito, somos capazes de lançar um olhar
perscrutador por cima do topo do muro e divisar o que se está passando no
outro lado. Nossos métodos técnicos, por conseguinte, devem ser substituídos
por outros; e nem sequer sabemos se seremos bem sucedidos na busca de um
substituto (Freud, 1917/1969: 493).

O tratamento analítico opera por meio da atualização na análise de antigos
conflitos e de formas de superação destes conflitos. Este processo, que é relativamente
simples nas psiconeuroses, não funciona na paranóia e na melancolia de
demência precoce, ambas neuroses narcísicas (Freud, 1917/1969: 511). Para
Freud (1917/1969: 519), isto ocorre uma vez que para o paciente ser capaz de
transferir afetos e conflitos para a figura do analista deveria haver de sua parte
uma capacidade para fazer catexias libidinais de objetos, fato praticamente
inviabilizado em indivíduos muito narcísicos. Nestes pacientes, as catexias
objetais tiveram que ser abandonadas e a libido objetal se transformou em libi-
do do ego e, por isto, não manifestam transferência e acabam por ser inacessí-
veis aos esforços psicanalíticos (Freud, 1917/1969: 521). Freud ainda questiona
se somente as vicissitudes da libido, em oposição à pulsão de autopreservação,
induzem a patologias. Acreditava que ainda não tinha resposta para esta questão,
acrescentando que não deveríamos nos surpreender se nas neuroses graves
as pulsões de autopreservação “tiverem perdido sua orientação” (Freud, 1917/
1969: 501)1. Com isso, Freud reafirmava sua hipótese de que as neuroses atuais
têm relação com o represamento da libido, hipótese exposta em no texto “Narcisismo:
uma introdução” (1914/1969: 101).

As neuroses narcísicas, assim como as neuroses atuais, que Freud considerava
intratáveis por meio do método psicanalítico, pela ausência da transferência,
nos fazem pensar em uma hipótese etiológica: nas neuroses narcísicas, a partir da
concepção freudiana, a libido regride para fixações muito primárias, da época do
narcisismo primário, o que impediria a transferência (embora a transferência maciça
na psicose já não seja hoje novidade); nas neuroses atuais e quadros borderline, o
que ocorreria, possivelmente, é a fixação no narcisismo primário e a libido, ou
pelo menos boa parte dela, nunca se tornaria objetal. Assim, haveria um
represamento da libido, mas esse represamento não seria no ego, pois, como propõe
Freud, a libido do ego é derivada da libido objetal. A idéia é que nas patologias
borderline a libido ficaria represada fora do psiquismo, sendo assim traumática,
o que também justificaria a grande dificuldade de transferência observada nestes
quadros psicopatológicos.

Com isso, propomos apenas uma primeira formulação, porém acreditamos
que essa hipótese se relaciona consistentemente com a idéia de que os quadros
borderline se formam onde há uma falha no processo de representação dos objetos
da pulsão, pois na medida em que a libido não se liga a um objeto externo ela não
encontra um meio de representação; e, também, com a idéia de que, nesses quadros,
as fronteiras entre as instâncias são porosas, pois essas fronteiras se formam
justamente a partir do vai-e-vem da libido e dos objetos.

Desse modo, podemos concluir que os quadros borderline, freqüentemente
associados às denominadas patologias contemporâneas, não são propriamente
novos. Contudo, atualmente, contamos com muito mais recursos metapsicológicos
para pensá-los. Afinal, lógica e cronologicamente, é só a partir do monumental
trabalho freudiano sobre o psiquismo e seu funcionamento que foi possível pensar
aquilo que está, senão para além do psiquismo, ao menos em suas bordas; fato
que talvez acabe por justificar modos de intervenção que estejam também para
além da técnica analítica clássica.




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NOTAS
1 Como a fome e a comida no caso da obesidade mórbida. Para isso ver também as considera-
ções de Décio Gurfinkel (1995), Pulsão e seu objeto, a-droga, sobre o objeto-droga.



Recebido em 23 de janeiro de 2006
Aceito para publicação em 30 de maio de 2006



http://www.scielo.br/pdf/pc/v18n2/a03v18n2.pdf