Freud - Obras Completas X


Duas histórias clínicas
(O “Pequeno Hans” e o “Homem dos ratos”)


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VOLUME X
(1909)




















ANÁLISE DE UMA FOBIA EM UM MENINO DE CINCO ANOS (1909)


NOTA DO EDITOR INGLÊS

ANALYSE DER PHOBIE EINES FÜNFJÄHRIGEN KNABEN

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1909 Jb. psychoanal. psychopath. Forsch., 1 (1), 1-109.
1913 S.K.S.N., III, 1-122 (1921), 2ª ed.).
1924 G.S., 8, 129-263.
1932 Vier Krankengeschichten, 142-281.
1941 G. W., 7, 243-377.
1922 ‘Nachschrift zur Analyse des kleinen Hans’, Int. Z. Psychoanal., 8 (3), 321.
1924 G. S., 8, 264-5.
1932 Vier Krankengeschichten, 282-3.
1940 G. W., 13, 431-2.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Analysis of a Phobia in a Fiver-Year-Old Boy’
1925 C. P., 3, 149-287. - ‘Postscrip (1922)’, ibid., 288-9.
(Trad. de Alix e James Strachey.)

A presente tradução inglesa é reimpressão, com algumas modificações e notas adicionais, da versão inglesa publicada pela primeira vez em 1925.

Alguns registros da primeira parte da vida do pequeno Hans já tinham sido publicados por Freud dois anos antes, em seu artigo sobre ‘O Esclarecimento Sexual das Crianças’ (1907c). Nas primeiras edições desse artigo, contudo, referia-se ao menino como ‘pequeno Herbert’; mas o nome foi mudado para ‘pequeno Hans’ depois da publicação da presente obra. Este caso clínico também foi mencionado, em breve referência, em outro dos artigos anteriores de Freud, ‘Sobre as Teorias Sexuais das Crianças’ (1908c), publicado pouco tempo antes do presente artigo. É digno de nota que em sua primeira publicação no Jahrbuch este artigo não foi descrito como sendo ‘da autoria’ de Freud, mas como ‘comunicado por’ ele. Em nota de rodapé acrescentada ao oitavo volume dos Gesammelte Schriften (1924), o qual continha este caso clínico e os outros quatro longos casos, Freud observa que esse foi publicado com o consentimento expresso do pai do pequeno Hans. Essa nota de rodapé encontra-se no final das ‘Notas Preliminares’ ao caso de ‘Dora’ (1905e, ver em [1], 1972). Muitas das mais importantes teorias debatidas no presente caso clínico já foram publicadas no artigo ‘Sobre as Teorias Sexuais das Crianças’. Ver Nota do Editor Inglês a esse trabalho, ver em [2], 1976.
A pequena tabela cronológica que se segue, baseada em dados extraídos do caso clínico, pode ajudar o leitor a acompanhar a história:

(1903)   (Abril) Nascimento de Hans.
(1906)   (Aet. 3 - 3 3/4) Primeiros relatos.
(Aet. 3 1/4 - 3 1/2) (Verão) Primeira visita a Gmunden.
(Aet. 3 1/2) Ameaça de castração.
(Aet. 3 1/2) (Outubro) Nascimento de Hanna.
(1907)   (Aet. 3 3/4) Primeiro sonho.
(Aet. 4) Mudança para um novo apartamento.
(Aet. 4 1/4 - 4 1/2) (Verão) Segunda visita a Gmunden.
Episódio do cavalo que mordia.
(1908)    (Aet. 4 3/4) (Janeiro) Episódio da queda do cavalo. Irrupção da fobia.
(Aet. 5) (Maio) Fim da análise.


INTRODUÇÃO

Nas páginas seguintes proponho descrever o curso da doença e o restabelecimento de um paciente bastante jovem. O caso clínico, estritamente falando, não provém de minha própria observação. É verdade que assentei as linhas gerais do tratamento e que numa única ocasião, na qual tive uma conversa com o menino, participei diretamente dele; no entanto, o próprio tratamento foi efetuado pelo pai da criança, sendo a ele que devo meus agradecimentos mais sinceros por me permitir publicar suas observações acerca do caso. Todavia, sua ajuda ultrapassa esta contribuição. Ninguém mais poderia, em minha opinião, ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dela; o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de cinco anos era indispensável; sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis. Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse científico, é que se pôde, neste único exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele próprio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes.
O valor peculiar desta observação, contudo, reside nas considerações que se seguem. Quando um médico trata de um neurótico adulto pela psicanálise, o processo que ele realiza de pôr a descoberto as formações psíquicas, camada por camada, capacita-o, afinal, a construir determinadas hipóteses quanto à sexualidade infantil do paciente; e é nos componentes dessa última que ele acredita haver descoberto as forças motivadoras de todos os sintomas neuróticos da vida posterior. Estabeleci essas hipóteses em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d) e estou ciente de que, a um leitor leigo, elas parecem tão estranhas quanto parecem, para um psicanalista, não ser controvertidas. Mas até mesmo um psicanalista pode confessar seu desejo de ter uma prova mais direta, e menos vaga, desses teoremas fundamentais. Seguramente deve existir a possibilidade de se observar em crianças, em primeira mão e em todo o frescor da vida, os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus próprios escombros - especialmente se também é crença nossa que eles constituem a propriedade comum de todos os homens, uma parte da constituição humana, e apenas exagerada ou distorcida no caso dos neuróticos.
Tendo em vista essa finalidade, venho por muitos anos encorajando meus alunos e meus amigos a reunir observações da vida sexual das crianças - cuja existência, via de regra, tem sido argutamente desprezada ou deliberadamente negada. Entre os materiais que me chegaram às mãos como resultado desses pedidos, os relatos que recebi em intervalos regulares sobre o pequeno Hans logo começaram a assumir uma posição proeminente. Seus pais estavam ambos entre meus mais chegados adeptos e haviam concordado em que, ao educar seu primeiro filho, não usariam de mais coerção do que a que fosse absolutamente necessária para manter um bom comportamento. E, à medida que a criança se tornava um menininho alegre, bom e vivaz, a experiência de deixá-lo crescer e expressar-se sem intimidações prosseguiu satisfatoriamente. Agora passarei a reproduzir os apontamentos sobre o pequeno Hans feitos por seu pai, tais quais o recebi; também me absterei evidentemente de fazer qualquer tentativa de desvirtuar a naïveté e a franqueza da criança, como tal, com a realização de emendas convencionais.
Os primeiros relatórios a respeito de Hans datam de um período em que ele estava para completar três anos de idade. Naquela época, por intermédio de várias observações e perguntas, ele demonstrava um interesse particularmente vivo por aquela parte do seu corpo que ele costumava chamar de seu ‘pipi’. Tanto que certa vez perguntou a sua mãe:
Hans: ‘Mamãe, você também tem um pipi?’
Mãe: ‘Claro. Por quê?’
Hans: ‘Nada, eu só estava pensando.’
Como a mesma idade, certa vez entrou num estábulo e viu ordenharem uma vaca. ‘Oh, olha!, e está saindo leite do pipi dela!’
Essas primeiras observações já começam a despertar a expectativa de que muita coisa, se não a maior parte, de tudo que o pequeno Hans nos revela, terminará por tornar-se típica do desenvolvimento sexual das crianças em geral. Certa vez expus o ponto de vista de que não havia necessidade de se ficar tão horrorizado por encontrar numa mulher a idéia de chupar o órgão masculino. Argumentei que esse impulso repelente tem uma origem das mais inocentes, de vez que derivava do ato de sugar o seio materno; e, prosseguindo, nessa conexão o úbere da vaca desempenha papel de importância como imagem intermediária, sendo em sua natureza uma mamma e, em sua forma e posição, um pênis. A descoberta do pequeno Hans confirma a última parte da minha asserção.
Entretanto, seu interesse pelos pipis de modo algum era um interesse puramente teórico; como era de esperar, também o impelia a tocar em seu membro. Aos três anos e meio, sua mãe o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçou-o com as palavras: ‘Se fizer isso de novo, vou chamar o Dr. A. para cortar fora seu pipi. Aí, com o que você vai fazer pipi?’
Hans: ‘Com meu traseiro.’
Ele deu essa resposta sem ainda possuir qualquer sentimento de culpa. Contudo, foi essa a ocasião da aquisição do ‘complexo de castração’, cuja presença vemo-nos com tanta freqüência obrigados a inferir na análise de neuróticos, ainda que todos eles relutem violentamente em admiti-la. Há muita coisa importante a dizer sobre a significação desse elemento na vida de uma criança. O ‘complexo de castração’ tem deixado atrás de si vestígios acentuados em mitos (e não somente nos mitos gregos); em uma passagem da minha Interpretação de Sonhos [1900a], e em outros trabalhos, abordei o assunto do papel que ele desempenha.

Aproximadamente com a mesma idade (três anos e meio), o pequeno Hans, de pé em frente à jaula dos leões, em Schönbrunn, gritou com voz alegre e animada: ‘Eu vi o pipi do leão.’
Boa parcela da importância dos animais nos mitos e contos de fadas se deve ao fato de mostrarem abertamente suas partes genitais e funções sexuais às crianças pequenas e indagadoras. Não pode haver dúvida quanto à curiosidade sexual de Hans; esta, contudo, também despertou nele o espírito de indagação e favoreceu que ele chegasse a um autêntico conhecimento abstrato.
Certa vez, estando na estação ferroviária (tinha três anos e nove meses), viu água saindo de uma locomotiva. ‘Olha’, disse ele, ‘A locomotiva está fazendo pipi. Mas onde está o pipi dela?’
Depois de pequena pausa, acrescentou com alguma reflexão: ‘Um cachorro e um cavalo têm pipi; a mesa e a cadeira, não.’ Assim tomou consciência de uma característica essencial de diferenciação entre objetos animados e inanimados.
A ânsia por conhecimento parece ser inseparável da curiosidade sexual. A curiosidade de Hans orientava-se em particular para seus pais.
Hans (três anos e nove meses): ‘Papai, você também tem um pipi?’
Pai: ‘Sim, claro.’
Hans: ‘Mas nunca vi, quando você tirava a roupa.’

Noutra ocasião, ele estava olhando insistentemente sua mãe despida, antes de ir para a cama. ‘Para que você está olhando para mim desse modo?’, ela perguntou.
Hans: ‘Eu só estava olhando para ver se você também tem um pipi.’
Mãe: ‘Claro. Você não sabia?’
Hans: ‘Não. Pensei que você era tão grande que tinha um pipi igual ao de um cavalo.’
Essa expectativa do pequeno Hans merece ser lembrada; ela terá importância mais tarde.
Mas o grande evento na vida de Hans foi o nascimento de sua irmãzinha Hanna, quando ele tinha exatamente três anos e meio. Seu comportamento naquela ocasião foi anotado pelo pai, no ato: ‘Às cinco da manhã’, escreve, ‘começou o trabalho de parto e a cama de Hans foi transferida para o quarto ao lado. Ele acordou às sete horas e, ao ouvir sua mãe gemer, perguntou: “Por que é que a mamãe está tossindo?” E após um intervalo: “A cegonha vai vir hoje, com certeza.”
‘Naturalmente lhe disseram, muitas vezes, nos últimos dias, que a cegonha ia trazer uma menina ou um menino; e ele, corretamente, fez a conexão dos sons inabituais dos gemidos com a chegada da cegonha.
‘Mais tarde ele foi levado para a cozinha. Vendo a maleta do médico no saguão, perguntou: “O que é isto?” “Uma maleta”, foi a resposta. Ao que ele declarou com convicção: “A cegonha chega hoje.” Depois do nascimento do bebê, a parteira entrou na cozinha e Hans a ouviu pedindo que fizessem chá. Hans, ouvindo, disse: “Eu sei! Mamãe tem que tomar chá porque ela está tossindo.” Foi então levado para o quarto da mãe. Contudo, não olhou para ela, mas sim para as bacias e outros recipientes, cheios de sangue e água, que ainda estavam espalhados pelo quarto. Apontando para a comadre suja de sangue, observou, num tom de surpresa: “Mas não sai sangue do meu pipi.”
‘Tudo que ele disse mostra que ele relaciona aquilo que é estranho na situação com a chegada da cegonha. Olha para tudo que vê, com olhar de desconfiança e atento, e não se pode questionar o fato de que suas primeiras dúvidas sobre a cegonha criaram raízes.
‘Hans tem muitos ciúmes da recém-chegada e, sempre que alguém a elogia, dizendo que é um bebê lindo e assim por diante, ele logo diz, com desprezo: “Mas ela ainda não tem dentes.” De fato, ao vê-la pela primeira vez, estava muito surpreso por ser ela incapaz de falar e resolveu para si que isso era devido a sua falta de dentes. Nos primeiros dias ele foi, naturalmente, colocado visivelmente no segundo plano. Adoeceu subitamente com uma forte dor de garganta, e durante a sua febre ouviram-no dizer: “Mas eu não quero uma irmãzinha!”
‘Uns seis meses mais tarde ele havia superado seu ciúme, e sua afeição fraternal pelo bebê era igualada apenas pelo seu sentimento de superioridade quanto a ela.
‘Um pouco mais tarde, Hans observava sua irmã de sete dias, em quem davam banho. “Mas o pipi dela ainda é bem pequenininho”, observou; e acrescentou, à guisa de consolo: “Quando ela crescer, ele vai ficar bem maior.”

’Com a mesma idade (três anos e nove meses) Hans fez seu primeiro relato de um sonho: “Hoje, quando eu estava dormindo, pensei que estava em Gmunden com Mariedl.”
‘Mariedl era a filha de treze anos de nosso senhorio e costumava brincar freqüentemente com ele.’
Quando o pai de Hans contava o sonho a sua mãe, na presença dele, ele o corrigiu dizendo: ‘Não foi com Mariedl, mas sim bem a sós com Mariedl.’
Nessa conexão sabemos o seguinte: ‘no verão de 1906, Hans estava em Gmunden e costumava andar pelas cercanias, o dia inteiro, com os filhos do senhorio. Ao deixarmos Gmunden, pensamos que ele estaria bastante aborrecido por ter de se afastar e transferir-se de volta à cidade. Para surpresa nossa, não foi o que aconteceu. Ele parecia estar contente com a mudança, e durante várias semanas dizia bem poucas coisas sobre Gmunden. Somente depois de algumas semanas é que começaram a surgir reminiscências - muitas vezes coloridas com vívidos traços - do tempo que passara em Gmunden. Nas quatro últimas semanas, mais ou menos, estivera elaborando em fantasias essas reminiscências. Ele imagina que está brincando com as outras crianças, com Berta, Olga e Fritzl; fala com eles como se realmente estivessem com ele, e é capaz de se entreter dessa maneira, horas a fio, de uma só vez. Agora que ganhou uma irmã e está obviamente ocupado com o problema da origem das crianças, ele sempre chama Berta e Olga de “suas filhas”; certa vez acrescentou: “minhas filhas Berta e Olga também foram trazidas pela cegonha.” O sonho, ocorrendo então, depois de uma ausência de seis meses de Gmunden, evidentemente deve ser entendido como expressão do anseio de retornar para lá.’
Até aqui tenho citado seu pai. Anteciparei o assunto que vem a seguir, acrescentando que Hans, quando fez sua última observação sobre serem as crianças trazidas pela cegonha, estava contradizendo alto uma dúvida que se insinuava, oculta, dentro de si.

Figura 1
Seu pai fez, por acaso, uma anotação de muitas coisas que mais tarde redundaram em algo de valor inesperado. [Ver a partir de [1]] ‘Desenhei uma girafa para Hans, que mais tarde esteve em Shönbrunn diversas vezes. Ele me disse: “Desenhe também o pipi dela.” “Desenhe você mesmo”, respondi; ao que ele acrescentou essa linha à minha figura (ver Fig. 1).
 Ele começou desenhando um traço pequeno, e então acrescentou mais um pedacinho, observando: “O pipi dela é mais comprido.”
‘Hans e eu passamos detrás de um cavalo que estava urinando, e ele disse: “O cavalo tem o pipi embaixo, como eu.”
‘Olhando a irmãzinha de três meses, no banho, disse com voz de compaixão: “Ela ganhou um pipi bem pequenininho.”
‘Deram-lhe uma boneca para brincar e ele a despiu. Examinou-a com cuidado e disse: “O pipi dela é tão pequenininho.”’
Como já sabemos, essa fórmula possibilitou-lhe continuar acreditando em sua descoberta [da distinção entre objetos animados e inanimados] (ver em [1] e [2]).

Todo investigador corre o risco de incorrer em um erro ocasional. Para ele é alguma consolação se, como o pequeno Hans no exemplo a seguir, não se enganar sozinho, mas puder citar um uso lingüístico comum em seu favor. Isso porque Hans viu, certa vez, um macaco em seu livro de ilustrações, e apontando para o seu rabo enrolado, disse: ‘Papai, olha o pipi dele!’ [Cf. em [1].]
Seu interesse por pipis levou-o a inventar um jogo especial todo próprio. ‘Dando para o saguão de entrada existe um lavatório e também um depósito escuro para guardar madeira. Já faz algum tempo que Hans, entrando nesse armário de madeira, vem dizendo: “Vou para o meu banheiro.” Certa vez olhei ali dentro para ver o que ele estava fazendo no depósito escuro. Ele me mostrou seu membro e disse: “Estou fazendo pipi.” Isso quer dizer que ele tem “brincado” no banheiro. O fato de isso ter a natureza de uma brincadeira revela-se não apenas por ele só estar pretendendo fazer pipi, mas também porque ele não vai ao banheiro, o que, em última análise, seria muitíssimo mais simples, preferindo, contudo, o armário, que ele chama de “seu banheiro”.’
Estaríamos fazendo uma injustiça a Hans se tivéssemos de delinear apenas os aspectos auto-eróticos de sua vida sexual. Seu pai possui informações detalhadas a nos fornecer acerca do tema de suas relações amorosas com outras crianças. Destas podemos discernir a existência de uma ‘escolha de objeto’, como no caso de um adulto; e também, temos de confessar, um notável grau de inconstância e uma disposição à poligamia.
‘No inverno (com três anos e nove meses de idade) levei Hans ao rinque de patinação e o apresentei às duas filhinhas de meu amigo N., as quais tinham cerca de dez anos de idade. Hans sentou-se ao lado delas, ao passo que elas, na consciência de sua idade mais madura, olhavam de cima para aquele garotinho, com desprezo; ele as contemplava com admiração, embora esse procedimento não lhes causasse maior impressão. Apesar disso, Hans, mais tarde, sempre falava delas como “as minhas meninas”. “Onde estão as minhas meninas? Quando vão vir as minhas meninas?” E por algumas semanas ficou atormentando-me com a pergunta: “Quando é que vou voltar ao rinque para ver as minhas meninas?”’
‘Um primo, de cinco anos, veio visitar Hans, que nessa época chegara à idade de quatro anos. Hans constantemente punha os braços ao redor dele, e um dia, quando lhe dava um daqueles ternos abraços, disse: “Eu gosto tanto de você.”’
Esse é o primeiro traço de homossexualidade com que nele deparamos, mas não será o último. O pequeno Hans parecer ser um modelo positivo de todos os vícios.

’Tendo Hans quatro anos, mudamos para um novo apartamento. Uma porta dava da cozinha para um balcão, de onde se podia olhar para um apartamento no outro lado do pátio. Nesse apartamento Hans descobriu uma menina de sete ou oito anos de idade. Ele ia sentar-se no degrau que dava para o pátio, de modo a admirá-la e lá ficava horas a fio. Às quatro horas da tarde, particularmente, quando a menina chegava da escola, não se podia retê-lo na sala, e nada era capaz de induzi-lo a abandonar seu posto de observação. Certa vez, quando a menina deixou de aparecer à janela na hora habitual, Hans ficou bastante inquieto, e molestava os empregados com perguntas - “Quando a menina vai vir? Onde está a menina?”, e assim por diante. Enfim, quando ela de fato aparecia, ele ficava felicíssimo e jamais retirava os olhos do apartamento do lado oposto ao nosso. A violência com que esse “amor à longa distância” o afetou deve-se explicar pelo fato de ele não ter companheiros de folguedos de qualquer dos dois sexos. Passar boa parte do tempo com outras crianças constitui, claramente, parte do desenvolvimento normal de uma criança.
‘Hans conseguiu alguma companhia desse tipo quando, pouco mais tarde (tinha perto de quatro anos e meio), mudamo-nos para Gmunden, para passarmos as férias de verão. Em nossa casa lá, seus companheiros eram os filhos do nosso senhorio: Franzl (cerca de doze anos), Fritzl (oito), Olga (sete) e Berta (cinco). Além deles, havia as filhas do vizinho, Anna (dez) e mais duas outras meninas, de nove e sete anos, cujos nomes esqueci. O favorito de Hans era Fritzl, que ele sempre estava abraçando, e a quem fazia declarações do seu amor. Certa vez, quando lhe perguntaram: “Das meninas, de quem você gosta mais?”, ele respondeu: “Fritzl!” Ao mesmo tempo tratava as meninas de forma muitíssimo agressiva, masculina e arrogante, abraçando-as e beijando-as com sinceridade - um procedimento ao qual Berta em particular não fazia objeção. Certa noite, quando Berta saía da sala, ele lhe pôs os braços ao redor do pescoço e lhe disse com voz muito apaixonada: “Berta, você é um amor!” A propósito, isso não o impedia de beijar também os outros e de confessar a eles seu amor. Gostava também de Mariedl, de quatorze anos, outra filha do senhorio que costumava brincar com ele. Uma noite disse, quando lhe punham na cama: “Quero que Mariedl venha dormir comigo.” Quando lhe foi dito que isso não podia ser, ele falou: “Então ela vai dormir com a mamãe ou com o papai.” Disseram-lhe que também isso seria impossível, mas que Mariedl tinha que dormir com o pai e a mãe dela. Seguiu-se então o seguinte diálogo:
Hans: “Ah, então vou descer e dormir com Mariedl.”
Mãe: “Você quer mesmo sair de junto da mamãe e dormir lá embaixo?”
Hans: “Mas subo de novo amanhã de manhã para tomar café e fazer cocô.”
Mãe: “Está bem, se você quer mesmo deixar o papai e a mamãe, vá então pegar seu casaco e suas calças e… adeus!”
‘Hans, com efeito, pegou suas roupas e se dirigiu para a escada, para ir dormir com Mariedl; mas, é supérfluo dizer, foi buscado de volta.
‘(Por trás desse seu desejo, “Quero que Mariedl durma conosco”, evidentemente residia um outro desejo: “Eu quero que Mariedl” (com quem ele gostava tanto de estar) “faça parte de nossa família.” O pai e a mãe de Hans, todavia, tinham o hábito de levá-lo para a cama deles, embora apenas ocasionalmente; e não há dúvida de que estar ao lado deles haja despertado nele sentimentos eróticos; assim é que também seu desejo de dormir com Mariedl tinha um sentido erótico. Deitar na cama com seu pai e sua mãe era, para Hans, uma fonte de sentimentos eróticos, do mesmo modo que para qualquer outra criança.)’
Apesar de seus arroubos de homossexualidade, o pequeno Hans, face ao desafio de sua mãe, portou-se como um homem de verdade.
‘Também no próximo exemplo Hans disse a sua mãe: “Sabe, eu gostaria tanto de dormir com a menina.” Esse episódio nos divertiu bastante, pois Hans de fato se comportava como um adulto apaixonado. Assim, nesses últimos dias, uma linda menina, com cerca de oito anos, tem vindo ao restaurante onde fazemos refeições. Naturalmente Hans se apaixonou por ela na mesma hora. Ele fica constantemente se virando na sua cadeira, para lançar a ela olhares furtivos; acabando de comer, vai postar-se nas vizinhanças dela, de modo a flertar com ela; contudo, se acha que está sendo observado, ruboriza-se. Se seus olhares são correspondidos pela menina, ele logo olha para outra direção, com expressão de vergonha. Seu comportamento é, naturalmente, um prazer enorme para qualquer pessoa que esteja comendo no restaurante. Todo dia, quando é levado lá, diz: “Vocês acham que a menina vai lá hoje?” E quando finalmente ela aparece, ele fica bem vermelho, exatamente como uma pessoa adulta ficaria num caso assim. Certo dia, aproximou-se de mim com a face resplandescente e murmurou no meu ouvido: “Papai, eu sei onde a menina mora. Eu a vi subindo as escadas em tal e tal lugar.” Enquanto trata as meninas em casa com agressividade, nesse outro seu caso ele surge no papel de um admirador platônico e lânguido. Isso talvez seja devido ao fato de as outras meninas de casa serem crianças de aldeia, ao passo que a outra é uma jovem dama com refinamento. Conforme já mencionei, certa vez me disse que gostaria de dormir com ela.
‘Não desejando deixar Hans naquele estado extenuado ao qual fora levado por sua paixão pela menina, providenciei que se conhecessem e convidei a menina para vir vê-lo no jardim depois que ele tivesse terminado sua sesta, à tarde. Hans estava tão excitado com a expectativa da vinda da menina, que pela primeira vez não conseguiu dormir de tarde e ficou se revirando na cama, inquieto. Quando sua mãe perguntou “Por que você não está dormindo? Você está pensando na menina?”, ele disse “Sim”, como uma expressão de felicidade. E quando chegou em casa, vindo do restaurante, disse para todo o mundo de casa: “Sabe, a minha menina vem ver-me hoje.” Mariedl, de quatorze anos, relatou que ele ficava repetidamente perguntando a ela: “Olha, você acha que ela vai ser boa para mim? Você acha que ela vai beijar-me, se eu beijá-la?”, e assim por diante.
‘Mas choveu à tarde, de modo que não se deu a visita, e Hans consolou-se com Berta e Olga.’
Outras observações, feitas também na época das férias de verão, sugerem que todas as espécies de novos processos evolutivos estavam ocorrendo no menino.
‘Hans, quatro anos e três meses. Nessa manhã a mãe de Hans lhe deu seu banho diário, como de hábito, secando-o e aplicando-lhe talco. Quando a mãe lhe passava talco em volta do seu pênis, tomando cuidado para não tocá-lo, Hans lhe disse: “Por que é que você não põe seu dedo aí?”
Mãe: “Porque seria porcaria.”
Hans: “Que é isso? Porcaria? Por quê?”
Mãe: “Porque não é correto.”
Hans: (rindo) “Mas é muito divertido.”

Na mesma época, mais ou menos, Hans teve um sonho, que contrastava admiravelmente com a audácia que mostrara perante sua mãe. Foi seu primeiro sonho que se tornou irreconhecível devido à distorção. A intervenção de seu pai, contudo, conseguiu elucidá-lo.
‘Hans, quatro anos e três meses, Sonho. Nessa manhã, Hans acordou e disse: “Sabe, ontem à noite pensei assim: Alguém disse: ‘Quem quer vir até mim?’ Então alguém disse: ‘Eu quero.’ Então ele teve que obrigar ele a fazer pipi.”
‘Novas perguntas vieram esclarecer que não existia qualquer conteúdo visual nesse sonho, que era do tipo puramente auditivo. Nesses últimos dias Hans tem brincado com jogos de salão e de “cobrar prendas” com os filhos do nosso senhorio, e entre eles estão suas amigas Olga (sete anos) e Berta (cinco anos). (O jogo de cobrar prenda é feito da seguinte maneira: A: “De quem é a prenda que tenho na minha mão?” B: “É minha.” Então se decide o que é que B tem de fazer.) O sonho tomou esse jogo como modelo; mas o que Hans queria era que a pessoa a quem pertencia a prenda fosse obrigada, não a dar um beijo, ou receber um tapa no rosto, como de costume, mas sim a fazer pipi, ou melhor, a ser compelida por outro a fazer pipi.
‘Consegui que ele me contasse de novo seu sonho. Repetiu-o com as mesmas palavras, só que em vez de “então alguém disse”, dessa vez falou “então ela disse”. Esse “ela” era evidentemente Berta, ou Olga, uma das meninas com quem ele havia brincado. Traduzindo-o, o sonho era o seguinte: “Eu estava brincando de cobrar prendas com as meninas. Perguntei: ‘Quem é que quer vir comigo.’ Ela (Berta, ou Olga) respondeu: ‘Eu quero.’ Então ela tem que me obrigar a fazer pipi.” (Isto é, ela tinha que ajudá-lo a urinar, o que é evidentemente agradável para Hans.)
Claro que ter de fazer pipi, tendo alguém que lhe desabotoe a calça e exponha seu pênis, é para Hans um processo prazeroso. Quando estão passeando, na maior parte das vezes quem ajuda Hans é seu pai; isso dá à criança uma oportunidade para a fixação de inclinações homossexuais na figura paterna.

‘Há dois dias, como já relatei, enquanto sua mãe o lavava e polvilhava de talco suas partes genitais, ele lhe perguntou: “Por que é que você não põe seu dedo aí?” Ontem, quando ajudava Hans a urinar, ele pela primeira vez me pediu que o levasse para trás da casa, de modo que ninguém pudesse vê-lo. E acrescentou: “No ano passado, quando eu fazia pipi, Berta e Olga estavam me olhando.” Creio que isso queria dizer que no ano passado ele sentia prazer em ser observado pelas meninas, mas que agora já não é mais a mesma coisa. Seu exibicionismo sucumbiu à repressão. O fato de o desejo de que Berta e Olga pudessem vê-lo fazer pipi (ou o obrigassem a fazer) agora se encontrar reprimido na vida real explica seu aparecimento no sonho, disfarçado nitidamente no jogo de cobrar prendas. Desde então tenho observado repetidamente que Hans não gosta de ser visto fazendo pipi.’
Acrescentarei apenas que esse sonho obedece à regra que formulei em A Interpretação de Sonhos [1900a, Capítulo VI, Seção F (ver em [1], 1972)], segundo a qual as falas ocorrentes em sonhos são derivadas de falas ouvidas ou expressas pelo sonhador nos dias que precederam ao sonho.
O pai de Hans anotou uma outra observação, datada do período imediato ao seu regresso para Viena: “Hans (quatro anos e meio) estava novamente vendo darem banho em sua irmãzinha, e então começou a rir. Ao lhe perguntarem por que ria, respondeu: “Estou rindo do pipi de Hanna.” “Por quê?” “Porque seu pipi é tão bonito.”
‘Naturalmente sua resposta não era sincera. Na realidade, o pipi dela lhe parecia engraçado. Ademais, foi essa a primeira vez em que Hans reconheceu a diferença entre os genitais masculinos e femininos, em vez de negar sua existência.’

CASO CLÍNICO E ANÁLISE

’Meu caro Professor: estou-lhe enviando mais alguma notícia a respeito de Hans, só que desta vez, lamento dizê-lo, se trata de material para um caso clínico. Como o senhor verá, nesses últimos dias ele vem apresentando um distúrbio nervoso que nos tem preocupado muito, a mim e minha esposa, pois não temos sido capazes de encontrar meio algum de corrigi-lo. Tomarei a liberdade de ir vê-lo amanhã… mas por enquanto… junto os apontamentos que fiz sobre o material de que dispunha.
‘Sem dúvida, o terreno foi preparado por uma superexcitação sexual devida à ternura da mãe de Hans; mas não sou capaz de especificar a causa real da excitação. Ele receia que um cavalo vá mordê-lo na rua, e esse medo parece estar de alguma forma relacionado com o fato de ele vir-se assustando com um grande pênis. Conforme o senhor soube, por um relato anterior, já em uma idade deveras precoce ele havia notado como são grandes os pênis dos cavalos, e nessa época deduziu que sua mãe, por ser tão grande, deveria ter um pipi como o do cavalo. [Cf. em [1].]
‘Não posso saber o que fazer desse aspecto. Será que ele viu um exibicionista em alguma parte? Ou tudo isso está simplesmente relacionado com sua mãe? Não acharíamos muito agradável que ele, tão cedo, começasse a nos apresentar dificuldades. Com exceção do fato de estar receoso de sair à rua e de ficar com desânimo à noite, ele de resto é o mesmo Hans, tão alegre e animado como sempre foi.’
Não iremos acompanhar o pai de Hans, nem em suas ansiedades, facilmente compreensíveis, nem em suas primeiras tentativas de encontrar uma explicação; começaremos por examinar os elementos de que dispomos. Em última análise, não é nosso dever ‘compreender’ um caso logo à primeira vista: isso só é possível num estádio posterior, quando tivermos recebido bastantes impressões sobre ele. Por enquanto, deixaremos em suspenso nosso julgamento e daremos nossa atenção imparcial a tudo quanto houver para observar.
Os primeiros relatos, que datam dos primeiros dias de janeiro deste ano (1908), são os seguintes:
‘Hans (quatro anos e nove meses) despertou em lágrimas certa manhã. Quando lhe perguntaram por que estava chorando, ele disse a sua mãe: “Quando eu estava dormindo, pensei que você tinha ido embora e eu ficava sem a Mamãe para mimarmos juntos.”’Portanto, tratava-se de um sonho de ansiedade.
‘Eu já havia observado algo semelhante em Gmunden, no verão. À noite, deitado na cama, ele ficava habitualmente muito sentimental. Certa vez, fez uma observação, algo como “imagine se eu não tivesse uma mamãe” ou “imagine se você fosse embora”; não posso lembrar-me com precisão das palavras. Infelizmente, sempre que ele mergulhava em um sentimentalismo desses, sua mãe costumava levá-lo para a cama com ela.
‘Pelo dia 5 de janeiro, ele veio para a cama de sua mãe pela manhã e disse: “Você sabe o que tia M. falou? Ela disse assim: “Que amor de coisinha que ele tem.’” (Tia M. passou alguns dias conosco, há quatro semanas atrás. Certa vez, observando minha esposa dar banho no menino, ela realmente lhe dissera aquelas palavras, em voz baixa. Hans as ouvira por casualidade e agora estava tentando utilizá-las para seus próprios fins.)
‘Em 7 de janeiro, ele foi passear no Stadtpark com a babá, como de hábito. Na rua começou a chorar e pediu que o levasse para casa, dizendo que queria “mimar” junto com sua mãe. Em casa, perguntaram-lhe por que não tinha querido continuar o passeio e havia chorado, mas ele não respondeu. Até de noite esteve alegre, como sempre. Contudo, à noite ficou visivelmente assustado: chorava e não podia separar-se da mãe, desejando continuar “mimando” com ela. Ficou, então novamente alegre, e dormiu bem.
‘Em 8 de janeiro minha esposa decidiu levá-lo para passear, ela própria, a fim de observar o que é que o atormentava. Iam até o Schönbrunn, aonde ele sempre gostava de ir. De novo ele começou a chorar, não queria sair e estava assustado. Afinal, resolveu ir; na rua, contudo, estava visivelmente assustado. De volta de Schönbrunn, disse a sua mãe, depois de intensa luta interior: “Eu estava com medo de que um cavalo me mordesse.” (Com efeito, em Schönbrunn ficara inquieto quando viu um cavalo.) À noite, pareceu que tinha tido uma nova crise semelhante àquela da noite passada, e que tinha desejado ser “mimado”. Sendo acalmado, disse chorando: “Eu sei que vou ter de passear amanhã de novo.” E depois: “O cavalo vai entrar no quarto.”

’Naquele mesmo dia, sua mãe perguntou: “Você põe a mão no seu pipi?”, e ele respondeu: “Ponho, de noite, quando estou na cama.” No dia seguinte, 9 de janeiro, antes de fazer a sesta à tarde, foi advertido para que não pusesse a mão no pipi. Quando acordou, indagaram-lhe a esse respeito, ele disse que sim, que apesar da advertência pusera a mão lá por um momentinho.’
Assim, temos aqui o começo da ansiedade de Hans, bem como o início de sua fobia. Vemos, pois, que existe uma boa razão para manter as duas separadas uma da outra. Ademais, o material parece ser amplamente suficiente para fornecer-nos os suportes de que necessitamos; e nenhum momento é tão favorável para a compreensão de um caso quanto seu estádio inicial, tal qual deparamos aqui, embora infelizmente esse estádio via de regra seja ignorado, ou desprezado em silêncio. O distúrbio teve início com pensamentos ao mesmo tempo apreensivos e ternos, seguindo-se então um sonho de ansiedade cujo conteúdo era a perda de sua mãe e, com isso, não poder mais ‘mimar’ junto com ela. Por conseguinte, sua afeição pela mãe deve ter-se tornado fortemente intensa. Na sua condição era este o fenômeno fundamental. Em apoio a essa teoria, podemos recordar suas duas tentativas de seduzir sua mãe, datando a primeira delas do verão [ver em [1]], ao passo que a segunda (um simples elogio feito ao seu próprio pênis) ocorreu no momento imediato que precedeu a irrupção de sua ansiedade na rua. Foi esse aumento de afeição por sua mãe que subitamente se transformou em ansiedade, a qual, diga-se de passagem, sucumbiu à repressão. Ainda não sabemos de onde pode haver-se originado o ímpeto para a repressão. Talvez fosse apenas conseqüência da intensidade das emoções da criança, que ficara acima da sua capacidade de controle; ou talvez também estivessem em ação outras forças que ainda não tenhamos identificado. Isso iremos saber à medida que avançarmos. A ansiedade de Hans, que assim correspondia a uma ânsia erótica reprimida, como toda ansiedade infantil, não tinha um objeto com que dar saída: ainda era ansiedade, e não medo. A criança não pode dizer [no princípio] de que ela tem medo; e quando Hans, no primeiro passeio com a babá, não ia dizer de que tinha medo, isso foi simplesmente porque ele mesmo ainda não sabia. Ele disse tudo que sabia, que na rua sentia falta de sua mãe com quem queria ‘mimar’, e que não queria estar longe dela. Dizendo essas coisas, confessou abertamente o significado primário de sua aversão às ruas.
Além disso, havia aqueles estados em que ele se sentiu por duas noites seguidas, antes de ir dormir, os quais se caracterizavam por uma ansiedade mesclada com nítidos traços de ternura. Esses estados mostram que no início de sua doença não havia, até então, fobia alguma, quer com relação às ruas ou a passear, quer com relação a cavalos. Caso existisse, os estados que Hans assumia à noite seriam inexplicáveis; quem está para dormir se incomoda com ruas e passeios? Por outro lado, torna-se claro o motivo por que ele ficava tão assustado à noite, supondo-se que à hora de dormir certa intensificação de sua libido apossava-se dele: pois o objeto desta era sua mãe, e seu objetivo talvez tenha sido dormir com ela. Ademais, ele aprendeu, por sua experiência, que em Gmunden sua mãe poderia ser persuadida a levá-lo para a cama dela toda vez que ele apresentava tais disposições, e aqui em Viena ele queria obter os mesmos fins. Também não devemos esquecer que por algum tempo, em Gmunden, ele estivera sozinho com sua mãe, de vez que seu pai não pudera passar lá as férias inteiras; além disso, que no campo as suas afeições estiveram divididas entre alguns companheiros de folguedos e amigos de ambos os sexos, ao passo que em Viena ele não tinha nenhum, de modo que sua libido estava em condições de voltar-se para sua mãe, sem dividir-se.
Assim, sua ansiedade correspondia a um forte anseio reprimido: também a repressão deve ser levada em conta. O anseio pode transformar-se completamente em satisfação, se o objeto ansiado lhe for concedido. Uma terapia dessa natureza já não é mais eficaz quando se lida com a ansiedade. Esta permanece até mesmo quando o anseio pode ser satisfeito. Já não é mais capaz de se retransformar inteiramente na libido; existe alguma coisa a reter a libido sob repressão. Esse fato, no caso de Hans, evidenciou-se por ocasião do passeio que fez a seguir, quando sua mãe o acompanhou. Estava com ela e, não obstante, ainda sofria de ansiedade, digamos, de um anseio insatisfeito com relação a ela. Realmente, a ansiedade era pouca, pois foi ele mesmo que se permitiu ser induzido a ir passear, ao passo que obrigara a babá a levá-lo de volta a casa. Além disso, a rua não é bem o lugar correto para ‘mimar’, ou o que quer que esse jovem apaixonado pudesse ter desejado fazer. A sua ansiedade, todavia, resistiu ao teste, e para ela a primeira coisa a fazer era encontrar um objeto. Foi nesse passeio que ele, pela primeira vez, expressou medo de que um cavalo o mordesse. De onde terão provindo os elementos para essa fobia? É provável que dos complexos - até aqui desconhecidos por nós - que contribuíram para a repressão e mantinham sob repressão os sentimentos libidinais de Hans para com sua mãe. Trata-se de um problema ainda não resolvido; e agora teremos de acompanhar o desenvolvimento do caso, a fim de chegar à sua solução. O pai de Hans já nos deu algumas pistas, provavelmente merecedoras de confiança, como aqueles indícios de que Hans sempre observara com interesse os cavalos face ao grande tamanho dos seus pipis, de que presumira que sua mãe deveria ter um pipi como o do cavalo, e outros. Por conseguinte, seríamos levados a pensar que o cavalo fosse puramente um substituto de sua mãe. Mas, se assim fosse, qual seria o significado do fato de ele ficar com medo, à noite, de que um cavalo entrasse no quarto? São tolos receios de um menininho, diriam. Uma neurose, contudo, jamais expressa tolices, nem mesmo um sonho o faria menos. Quando não somos capazes de entender alguma coisa, procuramos desvalorizá-las com críticas. Um meio ideal de facilitar nossa tarefa.
Existe um outro ponto em relação ao qual é preciso que evitemos recuar diante dessa tentação. Hans admitia que ele, toda noite antes de ir dormir, se divertia brincando com seu pênis. ‘Ah! então está explicado’: o médico da família estará propenso a dizer. ‘A criança se masturbava, daí sua ansiedade patológica.’ Mas, vamos devagar. O fato de o menino extrair de si mesmo prazer, masturbando-se, não explica em absoluto sua ansiedade; pelo contrário, o ato torna a situação mais problemática do que antes. Os estados de ansiedade não são formados pela masturbação ou pela obtenção de satisfação, qualquer que seja. Além disso, podemos supor que Hans, então com quatro anos e nove meses, se havia dado a esse prazer, toda noite, pelo menos por um período de um ano (ver em [1]). E vamos saber [ver em [2] e [3]] que, nessas ocasiões, ele de fato estava lutando para livrar-se do hábito - um estado de coisas que melhor se ajusta à repressão e à geração de ansiedade.
Devemos dizer também uma palavra em favor da admirável e devotada mãe de Hans. Seu pai a acusa, com certa aparência de justiça, de ser responsável pela manifestação da neurose da criança, em face de suas excessivas demonstrações de afeto para com Hans, e também da freqüência e facilidade com que o levava para sua cama. Poderíamos igualmente incriminá-la por haver precipitado o processo de repressão pela enérgica rejeição das tentativas dele (‘seria porcaria’ ,ver em [1]). Entretanto, ela tinha um papel predestinado a desempenhar, e a posição em que se encontrava era bem difícil.
Combinei com o pai de Hans que ele diria ao menino que tudo aquilo relacionado com cavalos não passava de uma bobagem. Seu pai iria dizer que a verdade é que ele gostava muito de sua mãe e que queria que ela o levasse para sua cama. A razão por que ele tinha então medo de cavalos se explicava por ele se haver interessado muito pelos seus pipis. Ele próprio observara não ser correto ficar tão preocupado assim com os pipis, mesmo com o dele; e tinha razão ao pensar dessa forma. A seguir sugeri a seu pai que começasse a dar a Hans alguns esclarecimentos dentro do tema do conhecimento sexual. O comportamento anterior da criança constituía para nós justificativa para admitirmos estar sua libido relacionada com um desejo de ver o pipi de sua mãe. Propus então a seu pai que afastasse de Hans esse objetivo, informando-o de que sua mãe e todos os outros seres femininos (como podia constatar com Hanna) não tinham pipi nenhum. Esse último esclarecimento lhe seria dado numa ocasião favorável, quando o assunto fosse motivado por alguma pergunta ou alguma observação casual de Hans.
As notícias que se seguem com respeito a Hans abrangem o período entre 1º e 17 de março. O intervalo de mais de um mês será relatado diretamente.
‘Após Hans ter sido esclarecido, seguiu-se um período de relativa tranqüilidade, durante o qual podiam, sem maiores dificuldades, levá-lo para seu passeio diário no Stadtpark. [Ver em [1].] Seu medo de cavalos foi-se transmudando gradativamente em uma compulsão para olhá-los. Ele dizia: “Tenho que olhar para os cavalos, e aí fico com medo.”
‘Depois de uma gripe muito forte, que o prendeu na cama por duas semanas, sua fobia aumentou novamente, a tal ponto que não se conseguia levá-lo para sair, ou de qualquer forma não mais do que até a varanda. Todo domingo ele ia comigo até Lainz, pois é um dia em que não há muito tráfego nas ruas, e o caminho até a estação é bem curto. Certa vez, em Lainz, ele se recusou a passear fora do jardim, porque havia uma carruagem estacionada em frente. Uma semana depois, a qual ele passou em casa em conseqüência de uma operação das amígdalas, sua fobia aumentou de novo, agravando-se muito mais. Ele vai até a varanda, é verdade, mas não sai para passear. Quando chega até a porta da rua, vira-se rapidamente e volta.
‘No domingo, 1º de março, houve a seguinte conversa no caminho até a estação. Eu estava tentando explicar-lhe de novo que os cavalos não mordem. Ele: “Mas os cavalos brancos mordem. Em Gmunden há um cavalo branco que morde. Se você apontar o dedo para ele, ele morde.” (Chamou-me a atenção ele dizer “dedo”, em vez de “mão”.) Então me contou a seguinte história, que repito aqui de forma mais objetiva: “Quando Lizzi tinha de ir embora, havia uma carroça com um cavalo branco em frente da casa dela, para levar a bagagem para a estação.” (Ele me contou que Lizzi era uma menina que morava numa casa vizinha.) “O pai dela estava parado perto do cavalo, e o cavalo virou a cabeça (para tocá-lo), e ele disse para Lizzi: ‘Não estenda seu dedo para o cavalo branco senão ele te morde.’” Nisso falei: “Sabe, parece-me que você não quer dizer um cavalo, mas um pipi, onde ninguém deve pôr a mão.”
Ele: “Mas um pipi não morde.”
Eu: “Mas pode ser que morda.” Então ele procurou animadamente provar-me que era de fato um cavalo branco.
‘Em 2 de março, quando ele mostrou de novo sinais de estar com medo, eu lhe disse: “Sabe de uma coisa? Essa bobagem sua” (é como ele fala da sua fobia) “… seria melhor se você passeasse mais vezes. Agora é muito ruim, porque você não tem podido sair pois estava doente.”
Ele: “Não é isso, é ruim porque eu ainda continuo pondo a mão no meu pipi de noite.”’
Médico e paciente, pai e filho, eram unânimes, por conseguinte, ao atribuírem a principal participação na patogênese da atual condição de Hans ao seu hábito de masturbar-se. Não faltavam, contudo, indicações da existência de outros fatores significativos.
‘Em 3 de março admitimos uma nova empregada, que agradou muito a ele. Ela o deixa brincar de cavalo nas suas costas enquanto limpa o assoalho, e ele, por isso, a chama de “meu cavalo”, segurando a saia dela e gritando “Vamos”. Pelo dia 10 de março, ele disse à nova babá: “Se você fizer tal e tal coisa, você terá que se despir toda, e tirar até a camisa.” (Para ele isso era um castigo, mas é fácil identificar, por trás disso, o desejo.)
Ela: “E que mal teria? Eu me diria que não tenho dinheiro para gastar com roupas.”
Ele: “Mas seria uma vergonha. As pessoas veriam o seu pipi.”’
Temos aqui novamente a mesma curiosidade, orientada, todavia, para um novo objeto e (coerentemente com um período de repressão) ocultada sob um propósito moralizador.

’Em 13 de março, pela manhã, eu disse a Hans: “Você sabe que, se não puser mais a mão no seu pipi, você logo vai ficar bom dessa sua bobagem.”
Hans: “Mas eu não ponho mais a mão no meu pipi.”
Eu: “Mas você ainda quer pôr.”
Hans: “Quero sim. Mas querer não é fazer, e fazer não é querer.”(!!)
Eu: “Está bem, mas, para não deixar você querer, nesta noite você vai dormir num saco de dormir.”
‘A seguir, saímos para a frente da casa. Hans ainda estava com medo, mas animou-se visivelmente com a expectativa de seus esforços o aliviarem; e disse: “Que bom, se eu tiver um saco para dormir a minha bobagem amanhã vai desaparecer.” De fato, ele estava com muito menos medo de cavalos, e ficava relativamente calmo quando os veículos passavam.
‘Hans prometeu ir comigo a Lainz no domingo seguinte, dia 15 de março. A princípio mostrou resistência, mas enfim foi comigo, apesar de tudo. Naturalmente sentiu-se à vontade na rua, pois não havia muito tráfego, e disse: “Que coisa! Deus então retirou os cavalos.” Caminhando, expliquei-lhe que sua irmã não ganhara um pipi como ele. Eu disse que as meninas e as mulheres não têm pipi: a mamãe não tem. Anna não tem, e assim por diante.
Hans: “Você tem um pipi?”
Eu: “Claro. Por que, o que você acha?”
Hans (após uma pausa): “Mas então como é que as meninas fazem pipi, se elas não têm pipi?”
Eu: “Elas não têm pipi como o seu. Você já viu, quando Hanna tomava banho?”
‘Durante todo o dia ele esteve muito animado, andou de tobogã etc. Só ao chegar a noite é que se tornou abatido novamente, e parecia estar com medo de cavalos.
‘Naquela noite sua crise de nervos e a necessidade de ser mimado eram menos intensas do que nos dias anteriores. No dia seguinte, sua mãe o levou à cidade, e ele ficou muito assustado nas ruas. No outro dia, ficou em casa e estava muito bem disposto. Na manhã seguinte, despertou assustado, por volta das seis horas. Quando lhe perguntaram o que havia, ele disse: “Pus o dedo no meu pipi, só um pouquinho, vi a mamãe despida, de camisa, e ela me deixou ver o seu pipi. Mostrei a Grete, a minha Grete, o que a mamãe estava fazendo, e mostrei meu pipi para ela. Então tirei depressa a mão do meu pipi.” Quando objetei que ele só podia querer dizer “de camisa” ou “despida”, Hans disse: “Ela estava de camisa, mas a camisa era tão pequena que eu vi o seu pipi.”
Isso não foi um sonho, absolutamente, mas uma fantasia masturbatória, que era, contudo, equivalente a um sonho. O que ele fez a mãe fazer foi com a intenção evidente de autojustificar-se: ‘Se mamãe mostra o seu pipi, eu também posso.’
A partir de sua fantasia, podemos reunir duas coisas: em primeiro lugar, a reprimenda de sua mãe produziu nele um resultado intenso, no momento em que foi feita; e, em segundo, o esclarecimento feito quanto ao fato de as mulheres não possuírem pipi não foi, a princípio, aceito por ele. Desagradou-lhe que assim fosse, e em sua fantasia ateve-se à sua convicção anterior. Talvez também tivesse razões para recusar-se a acreditar em seu pai naquele momento.
Relato Semanal do Pai de Hans: ‘Estimado Professor, junto a este a continuação da história de Hans - e um capítulo bem interessante. Talvez tome a liberdade de ir vê-lo durante as suas horas de consulta, na segunda-feira e, se possível, de levar Hans comigo, na suposição de que ele vá. Hoje eu lhe disse: “Você irá comigo, segunda-feira, para ver o Professor, que é quem pode acabar com a sua bobagem, para seu bem?”
Ele: “Não.”
Eu: “Mas ele tem uma filhinha muito bonita.” - Ao que ele, de boa vontade e contente, consentiu.
‘Domingo, 22 de março. Tendo em vista prolongar o programa de domingo, propus a Hans que fôssemos antes a Schönbrunn, e que somente ao meio-dia continuássemos o passeio de lá para Lainz. Portanto, ele tinha de caminhar não só de casa até a estação de Hauptzollamt na Stadtbahn, mas também da estação de Hietzing até Schönbrunn, e daí até a estação de bondes a vapor de Hietzing. E conseguiu fazer tudo isso, afastando rapidamente o olhar quando algum cavalo passava, de vez que era evidente que estava nervoso. Afastando o olhar, estava seguindo um conselho que lhe dera sua mãe.
‘Em Schönbrunn mostrou sinais de medo de animais que em outras ocasiões ele olhava sem se alarmar. Assim recusou-se peremptoriamente a entrar no recinto onde fica a girafa, nem visitaria o elefante, que anteriormente costumava diverti-lo bastante. Estava com medo de todos os animais de grande porte, ao passo que ficava muito entretido com os pequenos. Entre os pássaros, dessa vez ficou assustado com o pelicano (o que antes jamais ocorrera), evidentemente devido também ao seu tamanho.
‘Então lhe perguntei: “Você sabe por que está com medo dos animais grandes? Os animais grandes têm pipis grandes, e na verdade você tem medo de pipis grandes.”
Hans: “Mas eu ainda não vi até agora os pipis dos animais grandes.”
Eu: “Mas você viu o do cavalo, e o cavalo é um animal grande.”
Hans: “Do cavalo, sim, muitas vezes. Uma vez em Gmunden, quando a carroça estava parada à porta, e uma vez em frente à Agência Central da Alfândega.”
Eu: “Quando você era pequeno, é muito provável que tenha entrado num estábulo, em Gmunden…”
‘Hans (interrompendo): “Sim, eu entrava todo dia no estábulo em Gmunden, quando os cavalos vinham recolher-se.”
Eu: “… e é bem provável que você tenha ficado assustado ao ver, certa vez, o grande pipi do cavalo. Os animais grandes têm pipis grandes e os animais pequenos têm pipis pequenos.”
Hans: “E todo mudo tem um pipi. E o meu pipi vai ficar maior quando eu crescer; ele está preso no mesmo lugar, é claro.”
‘Aqui, a conversa terminou. Nos dias que se seguiram parecia que seus medos aumentaram um pouco. Dificilmente se arriscava a ir até a porta de entrada, aonde o levavam depois do almoço.’
As últimas palavras de Hans, de certa forma confortadoras, esclarecem a situação e nos permitem efetuar algumas correções nas asserções de seu pai. É fato que ele tinha medo de animais grandes, porque se via obrigado a pensar nos seus grandes pipis; contudo, não se pode, na verdade, dizer que ele estava com medo dos próprios pipis deles. Antes a idéia que tinha deles lhe fora decididamente agradável, e ele costumava esforçar-se de todo jeito para dar uma olhada neles. Desde então esse prazer ficou prejudicado para ele, devido à inversão global do prazer em desprazer que havia tomado conta de todas as suas pesquisas sexuais, de um modo ainda inexplicável, e também devido a alguma coisa que se torna mais clara para nós, ou seja, a determinadas experiências e reflexões que levaram a conclusões aflitivas. De suas palavras autoconsoladoras (‘meu pipi vai ficar maior quando eu crescer’) podemos deduzir que, durante suas observações, ele constantemente vinha fazendo comparações, e ficara extremamente insatisfeito com o tamanho do seu pipi. Os animais grandes lembravam-no desse seu defeito, e por isso lhe eram desagradáveis. Entretanto, de vez que toda a corrente de pensamentos era provavelmente incapaz de se tornar nitidamente consciente, também esse sentimento aflitivo foi transformado em ansiedade, de modo que sua ansiedade atual se estabeleceu tanto em seu prazer anterior quanto em seu atual desprazer. Uma vez que um estado de ansiedade se estabelece, a ansiedade absorve todos os outros sentimentos; com o progresso da repressão, e com a passagem ao inconsciente de boa parte das outras idéias que são carregadas de afeto e que foram conscientes, todos os afetos podem ser transformados em ansiedade.
A curiosa observação de Hans ‘ele está preso no mesmo lugar, é claro’ possibilita adivinhar muitos elementos em conexão com a sua fala consoladora, que ele não podia expressar com palavras e que não expressou no transcorrer da análise. Preencherei essas lacunas, até certo ponto, usando de minhas experiências nas análises de pessoas adultas; contudo, espero que a intervenção não seja considerada arbitrária ou caprichosa. ‘Ele está preso no mesmo lugar, é claro’: se o pensamento foi motivado pelo consolo e desafio, lembremo-nos da velha ameaça de sua mãe, de que ele lhe cortaria fora o pipi se ele continuasse brincando com ele. [Ver pág. 17.] Na época em que foi feita, quando ele tinha três anos e meio, a ameaça não teve conseqüência alguma. Ele tranqüilamente respondeu que então faria pipi com seu traseiro. Constituiria um dos processos mais típicos se a ameaça de castração produzisse um efeito adiado, e se agora, um ano e três meses depois, ele fosse oprimido pelo medo de ter de perder essa preciosa parte do seu ego. Em outros casos de doença podemos observar uma semelhante operação adiada de ordens e ameaças feitas na infância, casos nos quais o intervalo chega a cobrir várias décadas, ou até mais. Conheço até casos nos quais uma ‘obediência adiada’ sob influência da repressão desempenhou um papel preponderante na determinação dos sintomas da doença.

A parcela de esclarecimento dado a Hans, pouco tempo antes, quanto ao fato de que as mulheres na verdade não possuem pipi, estava fadada a ter apenas um efeito destruidor sobre sua autoconfiança e a ter originado seu complexo de castração. Por essa razão é que ele ofereceu resistência à informação, e pela mesma razão ela não produziu efeitos terapêuticos. Seria possível haver seres vivos que não tivessem pipis? Se assim fosse, não mais se poderia duvidar de que eles pudessem fazer desaparecer seu próprio pipi e, se assim fosse, transformá-lo em mulher!
‘Na noite do dia 27 para 28, Hans nos surpreendeu saindo da cama, quando ainda estava bem escuro, e vindo para a nossa cama. O seu quarto está separado do nosso dormitório por um outro pequeno quarto. Nós lhe perguntamos por que tinha vindo - talvez estivesse com medo. “Não”, disse ele; “amanhã eu conto a vocês.” Fomos para a cama dormir e ele foi levado, então, de volta para sua cama.
‘No dia seguinte interroguei-o com mais detalhes, a fim de descobrir por que entrara em nosso quarto, para estar conosco, durante a noite; após alguma relutância, houve o seguinte diálogo, que eu imediatamente registrei em taquigrafia:
Ele: “De noite havia uma girafa grande no quarto, e uma outra, toda amarrotada; e a grande gritou porque eu levei a amarrotada para longe dela. Aí, ela parou de gritar; então eu me sentei em cima da amarrotada.”
Eu: (perplexo): “O quê? Uma girafa amarrotada? Como foi isso?”
Ele: “É sim.” (Rapidamente foi buscar um pedaço de papel, amarrotou-o e disse:) “Estava amarrotada assim.”
Eu: “E você se sentou em cima da girafa amarrotada? Como foi?”

’Ele repetiu, sentando-se no chão.
Eu: “Por que você veio para o nosso quarto?”
Ele: “Eu mesmo não sei.”
Eu: “Você estava com medo?”
Ele: “Não. É claro que não!”
Eu: “Você sonhou com a girafa?”
Ele: “Não, eu não sonhei. Eu pensei. Pensei em tudo. Eu tinha acordado antes.”
Eu: “O que uma girafa amarrotada pode significar? Você sabe que é impossível amassar uma girafa como você amassa um pedaço de papel?”
Ele: “Claro que sei. Eu só pensei que estava amassando. É claro que não foi de verdade. A girafa amarrotada estava estendida no chão e eu a tirei dali… eu a peguei com as mãos.”
Eu: “Como? Você pode pegar com as mãos uma girafa grande assim?”
Ele: “Peguei a amarrotada na mão.”
Eu: “E enquanto isso, onde estava a grande?”
Ele: “A grande já estava bem longe.”
Eu: “O que foi que você fez com a amarrotada?”
Ele: “Eu peguei na minha mão, por um momentinho, até que a grande parasse de gritar. E quando ela parou de gritar, eu sentei em cima da amarrotada.”
Eu: “Por que foi que a grande gritou?”
Ele: “Porque eu levei para longe dela a pequena.” (Ele notou que eu estava escrevendo tudo que dizíamos, e perguntou:) “Por que você está escrevendo isso aí?”
Eu: “Porque vou mandar isso para um professor, aquele que pode acabar com a sua ‘bobagem’.”
Ele: “Ah, então você escreveu também que a mamãe tirou a camisa, e vai dar também para o Professor!”
Eu: “Sim, mas ele não vai entender como você pode pensar que é possível amarrotar uma girafa.”
Ele: “Pois conte a ele que eu mesmo não sei, e assim ele não vai perguntar. Mas se ele perguntar o que é a girafa amarrotada, então ele pode escrever para nós, e nós podemos responder, ou então vamos logo escrever que eu mesmo não sei.”
‘Eu: “Mas por que você entrou no nosso quarto, de noite?”

’Ele: “Eu não sei.”
‘Eu: “Pois me conte depressa o que é que você está pensando.”
‘Ele: (brincando): “Geléia de framboesa.”
‘Eu: “Que mais?”
Seus desejos.
‘Ele: “Um revólver para matar as pessoas com um tiro.”
‘Eu: “Você assegura que não sonhou com isso?”
‘Ele: “Asseguro… não, não estou bem certo.”
‘Ele continuou dizendo: “A mamãe ficou me perguntando por que foi que eu entrei no seu quarto de noite. Mas eu não queria dizer, pois no começo me senti envergonhado com a mamãe.”
‘Eu: “Por quê?”
‘Ele: “Não sei.”
‘De fato, minha esposa o havia questionado a manhã inteira, até que ele lhe contou a história da girafa.’
Nesse mesmo dia, seu pai descobriu a solução da fantasia da girafa.
‘A girafa grande sou eu mesmo, ou melhor, o meu pênis grande (o pescoço comprido), e a girafa amarrotada é minha esposa, ou melhor, seu órgão genital. Trata-se, por conseguinte, do resultado do esclarecimento que lhe fora dado [ver em [1]].
‘Girafa: ver a descrição do passeio a Schönbrunn. [Cf. em [1] e [2].] Ademais, ele tem a figura de uma girafa e um elefante pendurada acima de sua cama.
‘Tudo isso é a reprodução de uma cena que se desenrolara durante quase todos esses últimos dias, pela manhã. Hans sempre entra em nosso quarto, bem cedinho, e minha mulher não pode resistir, levando-o com ela para a cama por alguns minutos. Em resposta a esse procedimento, invariavelmente passo a admoestá-la para não levá-lo consigo para a cama (“a girafa grande gritava por que eu tirei a amarrotada de perto dela”); e ela responde, às vezes sem dúvida com certa irritação, que tudo é uma bobagem, que afinal um minuto não conta, e assim por diante. Desse modo, Hans fica com ela por um instante. (“Aí a girafa grande parou de gritar; e então eu sentei em cima da amarrotada.”)

’Esta, portanto, é a solução dessa cena matrimonial, transportada para a vida da girafa; à noite, ele fora arrebatado por uma ânsia de ter sua mãe, suas carícias, seu órgão genital, e por essa razão veio para nosso quarto. Tudo isso é continuação de seu medo de cavalos.’
É apenas isso o que tenho a acrescentar à penetrante interpretação do pai de Hans. O ‘sentar-se em cima de’ era provavelmente a imagem que Hans tinha de tomar posse. Todavia, isso tudo constitui uma fantasia de desafio relacionada com a sua satisfação pelo triunfo alcançado sobre a resistência de seu pai. ‘Grite quanto quiser! Não adianta, porque a mamãe me leva para a cama, e a mamãe é minha!’ Portanto, conforme seu pai suspeitava, justifica-se o fato de adivinhar por trás da fantasia um medo de que sua mãe não gostasse dele, de uma vez que seu pipi não se comparava com o de seu pai!
Na manhã seguinte, seu pai pôde obter a confirmação de sua interpretação.
‘Domingo, 29 de março, fui a Lainz com Hans. À porta, despedi-me de minha esposa com uma brincadeira, dizendo: “Até logo, girafa grande!” “Por que girafa?”, perguntou Hans. “A mamãe é a girafa grande”, respondi, ao que Hans replicou: “Ah, é isso mesmo!, e Hanna é a girafa amarrotada, não é?”
‘No trem expliquei-lhe a fantasia da girafa, ao que ele disse: “É isso, sim.” E quando eu lhe disse que eu era a girafa grande e que o pescoço comprido dela o fazia pensar num pipi, ele disse: “A mamãe tem um pescoço como uma girafa também. Eu vi quando ela estava lavando o seu pescoço branco.”
‘Na segunda-feira, 30 de março, pela manhã Hans veio dizer-me: “Sabe de uma coisa? Pensei, hoje de manhã, em duas coisas!” “Você pensou o que primeiro?” “Pensei que estava com você em Schönbrunn, onde as ovelhas estão; e aí começamos a rastejar por baixo das cordas, então fomos contar ao policial, no fundo do jardim, e ele nos agarrou.” Ele se havia esquecido da segunda coisa.
‘Posso acrescentar o seguinte comentário a esse respeito. Quando quisemos ver as ovelhas, no domingo, observamos que havia um espaço nos jardins cercado com uma corda; assim não nos era possível chegar até elas. Hans ficou muito admirado com o espaço cercado somente por uma corda, pois seria bem fácil resvalar por debaixo dela. Eu lhe falei que as pessoas educadas não rastejavam por baixo da corda. Ele disse que seria relativamente fácil, ao que respondi que o policial podia chegar e afastar a gente. Na entrada de Schönbrunn sempre fica um soldado de serviço; e certa vez contei a Hans que ele prendia as crianças desobedientes.
‘Ao voltarmos de nossa consulta com o senhor, naquele mesmo dia, Hans confessou seu desejo de praticar mais alguma coisa proibida: “Sabe, hoje de manhã pensei de novo numa coisa.” “O que foi?” “Pensei que ia de trem, com você, e que nós quebramos uma janela e o policial nos levou embora com ele.”’
Esta é a mais adequada continuação da fantasia da girafa. Ele suspeitava que tomar posse de sua mãe era um ato proibido e se defrontara com a barreira contra o incesto. Ele, contudo, encarava esse aspecto como proibido em si mesmo. Seu pai estava com ele sempre que ele realizava, em sua imaginação, essas façanhas proibidas, e com ele se trancava. Ele pensava que seu pai também fazia aquela coisa proibida e enigmática com a sua mãe, que ele substituía por um ato de violência tal como quebrar uma vidraça ou forçar a entrada num espaço fechado.
Naquela tarde, pai e filho me visitaram nas horas de consulta. Eu já conhecia o singular menino, o qual, apesar de toda sua auto-segurança, era tão agradável que eu sempre ficava contente de vê-lo. Não sei se ele lembra de mim, mas se comportava de modo exemplar, como qualquer elemento perfeitamente razoável da sociedade humana. A consulta foi breve. O pai de Hans começou por observar que, a despeito de todos os esclarecimentos que dera a Hans, seu medo de cavalos ainda não havia diminuído. Éramos também forçados a confessar que as conexões entre os cavalos de que tinha medo e os sentimentos de afeição por sua mãe, antes revelados, não eram em absoluto abundantes. Determinados detalhes que acabo de saber - no tocante ao fato de que ele se incomodava, em particular, com aquilo que os cavalos usam à frente dos olhos, e com o preto em torno de suas bocas - certamente não se explicariam a partir daquilo que sabíamos. No entanto, ao ver os dois sentados à minha frente, e ao mesmo tempo ouvir a descrição que Hans fazia da ansiedade que lhe causavam os cavalos, vislumbrei um novo elemento para a solução, e um elemento que eu podia compreender que provavelmente escapasse a seu pai. Perguntei a Hans, à guisa de brincadeira, se os cavalos que ele via usavam óculos, ao que ele, contra toda evidência em contrário, repetiu que não. Finalmente lhe perguntei se para ele o ‘preto em torno da boca’ significava um bigode; revelei-lhe então que ele tinha medo de seu pai, exatamente porque gostava muito de sua mãe. Disse-lhe da possibilidade de ele achar que seu pai estava aborrecido com ele por esse motivo; contudo, isso não era verdade, seu pai gostava dele apesar de tudo, e ele podia falar abertamente com ele, sobre qualquer coisa, sem sentir medo. Continuei, dizendo que bem antes de ele nascer eu já sabia que ia chegar um pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai; e também contei isso ao seu pai. ‘Mas por que você acha que estou aborrecido com você?’, nesse momento seu pai me interrompeu; ‘Alguma vez eu ralhei, ou bati em você?’ Hans o corrigiu: ‘Ah, sim! Você já me bateu.’ ‘Não é verdade. Então quando foi que aconteceu?’ ‘Hoje de manhã’, respondeu o menino; aí seu pai recordou que Hans, inesperadamente, dera uma cabeçada em seu estômago, e que ele, num reflexo instintivo, o afastara com um tapa da mão. Era surpreendente que ele não tivesse correlacionado esse detalhe com a neurose; mas agora acabava de reconhecer esse fato como sendo uma expressão da hostilidade do menino para com ele e, talvez, também como manifestação da necessidade de ser punido por causa disso.
No caminho de casa, Hans perguntou ao pai: ‘O Professor conversa com Deus? Parece que já sabe de tudo, de antemão!’ Eu ficaria extraordinariamente orgulhoso, vendo minhas deduções confirmadas pela boca de uma criança, se eu próprio não o tivesse provocado com minha ostentação, à guisa de brincadeira. A partir dessa consulta, passei a receber quase que diariamente relatos das alterações verificadas na condição desse pequeno paciente. Não era de se esperar que ele ficasse livre de sua ansiedade, de um só golpe, com a informação que lhe dei; mas tornou-se aparente que acabara de se lhe oferecer a possibilidade de trazer à tona os produtos de seu inconsciente, e de identificar a sua fobia. Dali por diante ele passou a executar um programa, o qual pude de antemão comunicar a seu pai.

’2 de abril. Pôde-se notar, pela primeira vez, uma melhora real. Antes era impossível induzi-lo a sair à rua por um tempo mais longo, e ele sempre corria de volta para casa, com todos os sinais de medo a cada vez que passava um cavalo; agora ficava à porta da rua durante uma hora, mesmo com as carroças passando por ele, o que acontece em nossa rua com relativa freqüência. De vez em quando corria para dentro de casa ao ver aproximar-se ao longe uma carroça, mas logo se voltava, como se estivesse mudando de idéia. Em todo caso, resta apenas um traço de ansiedade, e é indiscutível o seu progresso, desde que ele foi esclarecido.
‘De noite Hans disse: “Já chegamos até a porta da rua, então podemos ir ao Stadtpark também.”
‘Na manhã de 3 de abril, ele veio para a minha cama, o que não havia feito durante alguns dias, parecendo estar até mesmo orgulhoso disso. “Então por que hoje você veio?”, perguntei.
Hans: “Quando não tiver mais medo não virei mais.”
Eu: “Então você vem para junto de mim porque está assustado?”
Hans: “Quando não estou com você eu fico assustado; quando não estou na cama junto com você, então fico assustado. Quando eu não estiver mais assustado eu não venho mais.”
Eu: “Então você gosta de mim e se sente aflito quando está na sua cama, de manhã? e por isso é que você vem para junto de mim?”
Hans: “Sim. Por que é que você me disse que eu gosto da mamãe e por isso é que fico com medo, quando eu gosto é de você?”’
Aqui o menino demonstrava um grau de clareza incomum. Ele chamava atenção para o fato de que seu amor por seu pai entrava em conflito com sua hostilidade para com ele, considerando-o como um rival junto de sua mãe; e censurava seu pai por não haver ainda chamado sua atenção para esse jogo de forças, fadado a culminar em ansiedade. Seu pai até então não o entendia por completo, de vez que, durante esse diálogo, conseguiu convencer-se apenas da hostilidade que o menino lhe tinha, cuja presença eu afirmara durante a nossa consulta. O diálogo que se segue, que repito aqui sem alteração, tem de fato mais importância com relação ao progresso do esclarecimento do pai do que com relação ao pequeno paciente.
‘Infelizmente não pude apreender de imediato o significado dessa censura. Por gostar de sua mãe, é evidente que deseja afastar-me, e assim ficaria no lugar de seu pai. Esse seu desejo hostil suprimido transformou-se em ansiedade por seu pai, e ele vem ter comigo de manhã para ver se fui embora. Lastimo não ter compreendido isso no momento; disse-lhe: ’“Quando você está sozinho, você fica ansioso a meu respeito e vem ter comigo.”
Hans: “Quando você está longe, fico com medo de você não vir para casa.”
Eu: “E alguma vez eu o ameacei de não voltar para casa?”
Hans: “Você não, mas mamãe disse; mamãe me disse que ela não ia voltar.” (Provavelmente ele fizera alguma travessura, e ela ameaçara ir embora.)
Eu: “Ela disse isso porque você fez alguma travessura.”
Hans: “Sim.”
Eu: “Logo, você tem medo de que eu vá embora porque você foi travesso; por isso é que você vem para junto de mim.”
‘Quando levantei da mesa depois do café, Hans disse: “Papai, não se afaste de mim nesse trote!” Fiquei abalado por dizer “trote” em lugar de “corrida”, e respondi: “Ah! Então você fica com medo do cavalo que se afasta de você, num trote.” Diante disso ele riu.’
Sabemos que essa parte da ansiedade de Hans possui dois componentes: havia medo de seu pai e medo por seu pai. O primeiro derivava de sua hostilidade para com seu pai, e o outro derivava do conflito entre sua afeição, exagerada a esse ponto por um mecanismo de compensação, e sua hostilidade.
Seu pai continua: ‘Sem dúvida este é o começo de uma importante fase. O motivo pelo qual ele mal se arriscava a sair de casa, não querendo deixá-la e retornando ao advir o primeiro ataque de ansiedade, no meio do caminho, se deve a seu medo de não encontrar seus pais em casa porque eles foram embora. Ele se prende à casa por amor de sua mãe, e fica com medo de eu ir embora, em virtude dos desejos hostis que ele nutre contra mim - pois assim ele seria o pai.
‘No verão, eu costumava deixar Gmunden freqüentemente, para ir a Viena a negócios, e então ele era o pai. O senhor se lembra de que o seu medo de cavalos está relacionado com o episódio em Gmunden, quando um cavalo devia levar a bagagem de Lizzi até a estação [ver em [1]]. O desejo reprimido de que eu fosse à estação, pois assim ele estaria a sós com sua mãe (o desejo de que “o cavalo fosse embora”), se transforma em medo de que o cavalo parta; e, com efeito, nada lhe provoca maior alarme do que ver uma carroça sair do pátio da Agência Central da Alfândega (que fica bem em frente ao nosso apartamento) e os cavalos começarem a marchar.

’Essa nova fase (sentimentos hostis para com seu pai) só poderia manifestar-se depois que ele soubesse que eu não estava aborrecido porque ele gostava tanto assim de sua mãe.
‘À tarde saí novamente com ele para a porta da rua; e de novo ele saiu até a frente de casa, lá ficando ainda que passassem carroças por ele. Apenas com algumas carroças é que teve medo, e entrava correndo para o saguão de entrada. Também me disse, a título de explicação: “Nem todos os cavalos brancos mordem.” Isto quer dizer que, em virtude da análise, alguns cavalos brancos já foram reconhecidos como sendo o “papai”, e estes já não mordem; mas ainda existem outros que de fato mordem.
Figura 2
‘A posição da porta da rua de nossa casa é a seguinte: do lado oposto fica o armazém do Escritório de Impostos sobre Comestíveis, com uma rampa de carregamento pela qual, durante o dia inteiro, passam as carroças para apanhar caixas, caixotes etc. Esse pátio está separado da rua por meio de grades; e os portões de entrada para o pátio são frontais à nossa casa (Fig. 2).
 Durante alguns dias notei que Hans fica muito assustado quando as carroças entram ou saem do pátio, pois são obrigadas a fazer uma curva. Numa dessas ocasiões, perguntei-lhe por que estava com tanto medo, e ele me respondeu: “Tenho medo de que os cavalos caiam quando a carroça vira(a). Ele igualmente fica assustado quando as carroças estacionadas na rampa de carregamento começam a mover-se para partir (b). Ademais (c), fica mais assustado com os grandes cavalos de tração do que com os cavalos pequenos, e mais com os rudes cavalos de fazenda do que com os cavalos elegantes (como os que puxam carruagem). Também fica mais assustado quando um veículo passa rapidamente (d) do que quando os cavalos trotam a passo lento. Essas diferenciações naturalmente só se evidenciaram claramente nestes últimos dias.’
Eu me inclinaria a dizer que, em conseqüência da análise, não só o paciente como também a sua fobia haviam tomado coragem e agora se arriscavam a manifestar-se. [Cf. em [1].]
‘No dia 5 de abril Hans veio de novo para nosso quarto, mas foi mandado de volta para sua cama. Eu lhe disse: “Enquanto você entrar em nosso quarto, de manhã, seu medo de cavalos não vai melhorar.” Sua atitude, contudo, era de desafio, e ele replicou: “Não importa, eu vou entrar, mesmo se eu estiver com medo.” Quer dizer, ele não permitiria que o proibissem de visitar sua mãe.
‘Depois do café deveríamos descer. Hans ficou muito contente e resolveu, em vez de ficar parado à porta da rua, como de hábito, atravessar a rua e entrar no pátio, onde freqüentemente via crianças da rua brincando. Disse-lhe que eu ficaria contente se ele atravessasse, e aproveitei a oportunidade para lhe perguntar por que ficava com tanto medo quando as carroças carregadas na rampa começavam a movimentar-se (b).
Hans: “Tenho medo de ficar ao lado da carroça e ela partir rápido, e de ficar de pé nela e querer passar para o galpão (a rampa de carregamento), e então a carroça me levar quando sair.”
Eu: “E se a carroça fica parada? Então você não tem medo? Por que não?”
Figura 3
Hans: “Se a carroça fica parada eu posso subir rápido na carroça e dela passar para o galpão.” [Fig. 3.]
  ’Então Hans está planejando subir em cima de uma carroça e daí passar para a rampa de carregamento, e tem medo de a carroça partir quando ele estiver em cima dela.
Eu: “Talvez você tenha medo de não mais voltar para casa se você partir com a carroça, não?”
Hans: “Oh, não! Posso sempre voltar para mamãe, na carroça ou num carro. Posso dar a ele o número da nossa casa.”
Eu: “Então por que você fica com medo?”
Hans: “Não sei. Mas o Professor deve saber. Você não acha que ele vai saber?”
Eu: “E por que você quer subir até o galpão?”
Hans: “Porque nunca estive lá, e gostaria muito de estar lá; e você sabe por que eu gostaria de ir lá? Porque eu gostaria de carregar e descarregar as caixas, e gostaria de ficar trepando e brincando pelas caixas que ficam lá. Eu gostaria tanto de ficar por lá brincando assim. Você sabe com quem aprendi a ficar subindo pelas caixas? Eu vi alguns meninos subindo em cima das caixas e quero fazer isso também.”
‘Seu desejo não foi satisfeito. Porque quando Hans se arriscou a ir à frente da porta de entrada, os poucos passos para atravessar a rua e entrar no pátio despertaram nele enormes resistências, porque constantemente as carroças entravam no pátio.
O Professor sabe apenas que o brinquedo que Hans pretendia com as carroças carregadas deve ter permanecido na relação de um substituto simbólico para algum outro desejo, quanto ao qual ele até então não havia pronunciado uma só palavra. Contudo, se não parecer ousado demais, esse desejo, mesmo nesse estádio, já poderia estar estruturado.
‘À tarde saímos novamente para a frente da porta e, quando voltei, perguntei a Hans:
‘“De que cavalos você realmente tem mais medo?”
Hans: “De todos.”
Eu: “Isso não é verdade.”
Hans: “Tenho mais medo dos cavalos que têm uma coisa na boca.”
Eu: “O que você quer dizer? O pedaço de ferro que eles têm na boca?”
Hans: “Não. Eles têm uma coisa preta na boca.” (E cobriu a boca com a mão.)
Eu: “O quê? Talvez um bigode?”
Hans: (rindo): “Oh não!”
Eu: “Eles todos têm essa coisa?”
Hans: “Não, só alguns deles.”
Eu: “O que é que eles têm na boca?”
Figura 4
Hans: “Uma coisa preta.” (Na realidade, acho que deve ser aquela parte grossa do arreio que os cavalos de tração usam por sobre o nariz.) [Fig. 4.]
  ‘“Também fico com muito medo das carroças de mudanças.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Eu acho que, quando os cavalos estão puxando uma carroça de mudanças muito pesada, eles podem cair.”
Eu: “Então você não tem medo de carroça pequena?”
Hans: “Não. Não tenho medo nem de carroça pequena nem de um carro dos correios. Também fico mais com medo quando passa um ônibus.”
Eu: “Por quê? É porque é tão grande, não?”
Hans: “Não. É porque uma vez um cavalo do ônibus caiu.”
Eu: “Quando?”
Hans: “Uma vez que saí com mamãe, mesmo com a minha ‘bobagem’, foi quando comprei o colete.” (Isso foi, depois, confirmado por sua mãe.)
Eu: “O que você pensou, quando o cavalo caiu?”
Hans: “Agora vai ser sempre assim. Todos os cavalos dos ônibus vão cair.”
Eu: “De todos os ônibus?”
Hans: “É. E também das carroças de mudanças. Mas estes devem cair menos vezes.”
Eu: “Naquela ocasião você já tinha a sua bobagem?”
Hans: “Não, só aí é que tive. Quando o cavalo do ônibus caiu, levei um susto de verdade! Foi então que eu fiquei com a bobagem.”

Eu: “Mas a bobagem foi que você pensava que um cavalo ia mordê-lo. E agora você me diz que tinha medo de um cavalo cair.”
Hans: “Cair ou morder.”
Eu: “Por que você levou o susto?”
Hans: “Porque o cavalo fez assim com as patas.” (Ele se deitou no chão e me mostrou como o cavalo agitava as patas pelos lados.) “Levei um susto porque ele fez um barulhão com as patas.”
Eu: “Aonde você foi com a mamãe nesse dia?”
Hans: “Primeiro fomos ao rinque de patinação, depois a um café, e aí fomos comprar o colete, depois fomos à confeitaria e voltamos de noite para casa; voltamos pelo Stadtpark.” (Tudo isso foi confirmado por minha esposa, como também o fato de que imediatamente após irrompeu a ansiedade.)
Eu: “O cavalo estava morto quando caiu?”
Hans: “Sim.”
Eu: “E como você sabia disso?”
Hans: “Porque eu vi.” (Riu.) “Não, não estava nada morto.”
Eu: “Talvez você achasse que estivesse morto…”
Hans: “Não, de jeito nenhum. Eu só disse isso de brincadeira.” (Sua expressão no momento, porém, tinha sido de seriedade.)
‘Quando se cansou, deixei-o ir brincar. Além disso ele me contou apenas que, a princípio, tivera medo de cavalos dos ônibus, depois de todos e, somente no final, que tinha medo de cavalos das carroças de mudanças.
‘Na volta de Lainz, fiz-lhe mais algumas perguntas:
‘Eu: “Quando o cavalo do ônibus caiu, que cor ele tinha? Branco, ruão, castanho, cinza?”
‘Hans: “Preto. Os dois cavalos eram pretos.”
‘Eu: “Era grande ou pequeno?”
‘Hans: “Grande”.
‘Eu: “Gordo ou magro?”
‘Hans: “Gordo. Muito grande e gordo.”
‘Eu: “Quando o cavalo caiu você pensou no seu papai?”
‘Hans: “Pode ser. Sim, é possível.”
Pode ser que as investigações do pai de Hans não lograssem êxito em alguns aspectos; contudo, não é prejudicial travar conhecimento, na intimidade, com uma fobia dessa espécie - a qual podemos sentir-nos inclinados a denominar a partir de seus objetos. [Cf. em [1].] Isso porque, dessa forma, conseguimos ver a que ponto ela é realmente difusa. Ela se estende até cavalos e carroças, ao fato de cavalos caírem e morderem, até cavalos de características especiais, a carroças carregadas com muito peso. Revelarei, de imediato, que todas essas características derivavam da circunstância de que a ansiedade, originalmente, não encerrava referência alguma a todos os cavalos, mas para eles se transpunha de modo secundário, e acabara por ficar fixada naqueles elementos do complexo relativo a cavalos, que se revelaram bem adaptados a determinadas transferências. Devemos reconhecer especialmente um resultado muito importante do exame ao qual o menino foi submetido por seu pai. Aprendemos qual foi a causa imediata que precipitou a irrupção da fobia. Ocorreu quando o menino viu cair um cavalo grande e pesado; e pelo menos uma das interpretações dessa impressão parece ser aquela à qual seu pai deu ênfase, ou seja, que Hans naquele momento percebeu um desejo de que seu pai caísse daquele mesmo modo… e morresse. A expressão de seriedade que assumiu ao contar o episódio referia-se, sem dúvida, a esse significado inconsciente. Será que existiria ainda outro significado oculto atrás disso tudo? Além disso, qual pode ter sido a significação de o cavalo fazer um grande barulho com as pernas?
‘Durante algum tempo, Hans tem brincado de cavalo, no quarto; ele trota, deixa-se cair, esperneia com os pés e relincha. Certa vez prendeu no rosto um saquinho, parecido com a sacola de focinheira dos cavalos. Repetidamente, vem correndo até mim e me morde.’
Desse modo, ele aceitava as últimas interpretações com mais determinação do que lhe era possível fazer com palavras, mas naturalmente mediante uma troca de papéis, de vez que o jogo se desenrolava em obediência a uma fantasia plena de desejo. Por conseguinte, ele era o cavalo, e mordia seu pai; assim, ele se identificava com seu pai.
‘Nesses dois últimos dias notei que Hans me tem desafiado de uma maneira bem decidida, não com maus modos, mas com muita animação. Será porque já não tem mais medo de mim - o cavalo?

’6 de abril. Fui com Hans até a frente de casa, à tarde. Ao passar algum cavalo eu lhe perguntava se ele via o “preto na boca do animal”; ele sempre dizia que “não”. Perguntei-lhe com que se parecia de fato esse preto e ele respondeu que parecia com um ferro preto. Portanto, não se confirmou a minha primeira idéia, de que de fato era a correia de couro que faz parte dos arreios nos cavalos de tração. Indaguei-lhe se “a coisa preta” lhe lembrava um bigode, e ele disse: “Só pela cor.” De modo que ainda não sei o que realmente vem a ser.
‘Seu medo diminuiu; dessa vez arriscou-se a ir até a casa vizinha, mas voltou imediatamente quando ouviu trotes de cavalos ao longe. Quando uma carroça veio parar em frente à nossa porta, ele ficou assustado e correu para dentro de casa, pois o cavalo começou a mexer as patas. Perguntei-lhe por que estava com medo e também se, talvez, ficara nervoso porque o cavalo tinha feito assim (e bati com o pé no chão). Ele disse: “Não faça tanto barulho assim com o pé!” Compare com a observação que ele fez a respeito do cavalo do ônibus, que caiu.
‘Ele ficou especialmente apavorado ao passar por perto uma carroça de mudanças; e correu depressa para dentro de casa. Perguntei-lhe, despreocupado: “Uma carroça de mudanças como essa parece realmente com um ônibus?” Ele nada disse. Repeti a pergunta, e então ele respondeu: “Pois é claro! Senão, eu não teria tanto medo de uma carroça de mudanças.”
‘7 de abril. Hoje novamente lhe perguntei com que se parecia a “coisa preta na boca dos cavalos”. Hans disse: “Com um focinho.” Curioso é que nesses últimos três dias não passou um só cavalo no qual ele indicasse esse tal “focinho”. Eu mesmo não tenho visto, nos meus passeios, um cavalo desses, embora Hans afirme que tais cavalos existem de verdade. Desconfio que, nos cavalos, algum tipo de bridão - a peça pesada dos arreios em torno da boca, talvez - realmente lhe lembrasse um bigode, e que, depois que aludi a isso, esse medo também desapareceu.
‘Sua melhoria tem sido constante. O raio de seu círculo de atividades, tendo a porta da rua como seu centro, torna-se cada vez maior. Chegou até a levar a cabo a façanha, que até agora lhe tem sido impossível, de atravessar correndo até a calçada em frente, do outro lado. Todo o medo que ainda permanece relaciona-se com a cena do ônibus, cujo significado ainda não está claro para mim.
‘9 de abril. Nesta manhã, Hans veio ver-me, enquanto eu me lavava e estava nu até a cintura.
Hans: “Papai, você é lindo! Você é tão branco.”

Eu: “Sim. Como um cavalo branco.”
‘Hans: “A única coisa preta é o seu bigode.” (continuando:) “Ou talvez seja um focinho preto?”
‘Então, falei para ele que na véspera, à noite, eu tinha ido visitar o Professor; e disse a Hans: “Há uma coisa que ele quer saber.” “Estou muito curioso”, comentou Hans.
‘Eu lhe disse que sabia em que momentos ele fazia um barulhão com os pés. “Ah, sim”, interrompeu-me, “é quando estou zangado, ou quando tenho de fazer ‘lumf‘ quando o que quero é brincar.” (É verdade que ele tem o hábito de fazer barulho com os pés, isto é, bater com eles quando está zangado. - “Fazer ‘lumf‘” significa evacuar os intestinos. Hans, quando pequeno, ao levantar-se certo dia do urinol, disse: “Olha para o ‘lumf’ [em alemão: ‘Lumpf‘].” Ele queria dizer “meia” [em alemão: “Strumpf”], por causa da sua forma e da cor. Essa denominação persiste até hoje. - Ainda bem novinho, quando tinha de ser posto no urinol, e se recusava a deixar seu brinquedo, costumava bater com os pés no chão, de raiva, e dava pontapés a esmo, às vezes também atirando-se no chão.)
‘“E você também fica dando pontapés quando tem de fazer pipi e não quer ir porque prefere continuar brincando.”
Ele: “Ah, preciso ir fazer pipi.” E saiu da sala - sem dúvida para confirmar o que acabara de dizer.’
Durante a visita que me fez, o pai de Hans me perguntou que recordação poderia ter sido trazida à sua mente pelo cavalo caído agitando as patas. Sugeri-lhe que poderia ter sido a sua própria reação ao reter a urina. Hans então confirmou isso, com o ressurgimento, durante a conversa, de um desejo de urinar, acrescentando mais outros significados ao ato de fazer barulho com os pés.
‘Em seguida, saímos para a calçada em frente à porta da rua. Ao passar uma carroça carregada de carvão, ele me disse: “Papai, eu também tenho medo das carroças de carvão.”
Eu: “Talvez porque elas sejam grandes como os ônibus.”
Hans: “Sim, e porque a carga é muito pesada e os cavalos têm de arrastar tanta coisa, e seria fácil eles caírem. Se a carroça está vazia eu não tenho medo.” Conforme já observei, é um fato que apenas os veículos pesados o põem num estado de ansiedade.’

A situação, todavia, continuava francamente obscura. A análise fazia poucos progressos; e receio que o leitor comece a achar tediosa a descrição que faço dela. No entanto, toda análise tem períodos obscuros dessa natureza. Mas Hans tinha chegado, então, ao ponto de conduzir-nos para uma área inesperada.
‘Tinha voltado para casa e estava conversando com minha esposa, que me mostrava as compras que fizera. Entre elas, havia um par de calcinhas amarelas para senhoras. Hans exclamou “hum” duas ou três vezes, jogou-se no chão e cuspiu. Minha esposa disse que ele já fizera isso, umas duas ou três vezes, quando via as calcinhas.
‘“Por que é que você diz ‘hum’?”, perguntei.
Hans: “Por causa das calcinhas.”
Eu: “Por quê? Por causa da cor delas? Porque são amarelas e fazem você se lembrar de ‘lumf‘ ou pipi?”
Hans: “‘Lumf‘ não é amarelo. É branco ou preto” - E logo a seguir: “Sabe, é verdade que é fácil fazer ‘lumf‘ se a gente comer queijo?” (Uma vez eu lhe disse isso quando me perguntou por que eu comia queijo.)
Eu: “Sim.”
Hans: “É por isso que você toda manhã vai logo fazer ‘lumf‘? Eu gostaria tanto de comer queijo com meu pão com manteiga.”
‘Ontem mesmo, quando brincava de pular na rua, me perguntara: “É verdade, não é, que é fácil a gente fazer ‘lumf‘ quando a gente pula muito?” - Tem havido problemas com sua evacuações desde tenra idade; e o emprego de laxantes e enemas era freqüentemente necessário. Em certa época, sua constipação era tão grande que minha esposa chamou o Dr. L. Sua opinião foi que Hans era superalimentado, o que, com efeito era o caso, e recomendou uma dieta mais moderada - e a situação logo se resolveu. Recentemente a constipação voltou a aparecer com certa freqüência.
‘Depois do almoço, eu disse a Hans: “Vamos escrever de novo ao Professor”, e ele me ditou o seguinte: “Quando eu vi as calcinhas amarelas eu disse ‘hum! isso me faz cuspir!’, e joguei-me no chão, e fechei os olhos e não olhei.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Porque vi as calcinhas amarelas, e fiz também a mesma coisa quando vi as calcinhas pretas. As pretas são do mesmo tipo das calcinhas, só que eram pretas.” (Interrompendo-se, disse:) “Estou tão contente, sabe? Fico sempre contente quando posso escrever para o Professor.”
Eu: “Por que você disse ‘hum’? Você sentiu nojo?”
Hans: “Sim, porque eu vi aquilo. Pensei que teria que fazer ‘lumf‘.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Não sei.”
Eu: “Quando foi que você viu as calcinhas pretas?”
Hans: “Foi um dia em que Anna (nossa empregada) ficou aqui muito tempo, com a mamãe, e ela as trouxe para casa logo depois que as comprou.” (Essa asserção foi confirmada por minha esposa.)
Eu: “Você ficou com nojo dessa vez também?”
Hans: “Sim.”
Eu: “Você já viu a mamãe vestida numa calça daquelas?”
Hans: “Não.”
Eu: “Nem enquanto ela se vestia?”
Hans: “Quando ela comprou as amarelas eu já as tinha visto uma vez.” (Isso foi desmentido. Ele viu as amarelas pela primeira vez quando sua mãe as comprou.) “Mamãe está usando as pretas hoje” (correto), “porque eu vi quando ela as tirou, hoje de manhã.”
Eu: “O quê? Ela tirou as calças pretas, de manhã?”
Hans: “Hoje de manhã, quando ela saiu, ela tirou as calças pretas, e quando voltou ela vestiu as pretas de novo.”
‘Perguntei a minha esposa sobre isso, pois me parecia absurdo. Ela disse que isso não tinha fundamento algum. É claro que não havia trocado de calças ao sair.
‘Fui logo perguntar a Hans sobre o fato: “Você me disse que mamãe tinha vestido calças pretas e que ao sair ela as tirou, e as vestiu de novo quando voltou. Mas mamãe disse que não é verdade.”
Hans: “Acho que talvez eu tenha esquecido que ela não tirou as calças.” (E com impaciência:) “Por favor, me deixe em paz.”’
Devo fazer alguns comentários, a essa altura, com respeito à história das calças. Logicamente foi mera hipocrisia da parte de Hans fingir que estava tão feliz com a oportunidade de falar nelas. No final, pôs a máscara de lado e foi rude com seu pai. Tratava-se de algo que já lhe havia proporcionado um prazer enorme, mas que agora, instalada a repressão, muito o envergonhava, provocando nele expressões de nojo. Resolveu, assim, mentir para disfarçar as cicunstâncias nas quais vira sua mãe trocar de calças. Na realidade, vestir e tirar as calças eram parte do contexto do ‘lumf‘. Seu pai estava inteiramente ciente de tudo, e também daquilo que Hans tentava ocultar.

’Perguntei a minha esposa se Hans a acompanhava com freqüência quando ela ia ao banheiro. “Sim, muitas vezes”, disse ela. “Ele insiste e me amola até que eu o permita. Todas as crianças são assim.”’
Deve-se, contudo, prestar cuidadosa atenção ao desejo, que Hans já havia reprimido, de ver sua mãe fazer ‘lumf‘.
‘Saímos, então, até a calçada da nossa casa. Ele estava muito animado e brincava de trotar como um cavalo, quase sem parar. Disse-lhe: “E agora, quem é o cavalo do ônibus? Eu, você ou mamãe?”
Hans: (respondendo logo): “Sou eu; eu sou um cavalinho novo.”
‘No período em que sua ansiedade atingira seu ponto mais agudo e Hans ficava assustado ao ver cavalos brincando, perguntou-me por que faziam isso; eu, para acalmá-lo, disse: “São cavalos novos, sabe, e eles ficam brincando, como os meninos. Você também brinca, corre para lá e para cá, e você é um menino.” Desde então me dizia, sempre que via cavalos brincando: “É isso mesmo, eles são cavalos novos!”
‘Enquanto subíamos as escadas, perguntei-lhe, quase sem pensar: “Você brincava de cavalos com as crianças lá de Gmunden?”
Ele: “Sim.” (E pensativo) “Acho que foi aí que fiquei com a ‘bobagem’.”
Eu: “Quem era o cavalo?”
Ele: “Era eu, e Berta era o cocheiro.”
Eu: “Alguma vez você caiu, quando você era um cavalo?”
Hans: “Não. Quando Berta dizia ‘anda!’, eu corria depressa, depressa, até disparava.”
Eu: “Vocês nunca brincavam de ônibus?”
Hans: “Não, só de carroças, e de cavalos sem carroças. Quando um cavalo tem uma carroça ele pode muito bem andar sem ela, e a carroça pode ficar em casa.”
Eu: “Vocês brincavam muito de cavalos?”
Hans: “Muitas vezes. Fritzl uma vez foi o cavalo e Franzl era o cocheiro; e Fritzl correu tão depressa e, de repente, bateu com o pé numa pedra e o pé sangrou.”
Eu: “Quem sabe não caiu?”
Hans: “Não. Ele pôs o pé dentro d’água e depois amarrou um pano nele.”

Eu: “Você muitas vezes foi o cavalo?”
Hans: “Sim, muitas.”
Eu: “ E como foi que você ficou com a ‘bobagem’?”
Hans: “Foi porque eles ficavam dizendo ‘por causa do cavalo’, ‘por causa do cavalo’” (ele acentuou com ênfase o ‘por causa’); “então, talvez, fiquei com a ‘bobagem’ porque eles falavam daquele jeito, ‘por causa do cavalo’.”
Por algum tempo o pai de Hans continuou seu inquérito, através de outros caminhos, sem resultado.
Eu: “Eles lhe contaram alguma coisa sobre cavalos?”
Hans: “Sim.”
Eu: “O quê?”
Hans: “Esqueci.”
Eu: “Talvez eles lhe tenham falado sobre os seus pipis?”
Hans: “Oh, não.”
Eu: “Você já tinha medo de cavalos, nessa época?”
Hans: “Não. Eu não tinha medo nenhum.”
Eu: “Talvez Berta lhe tenha falado que os cavalos…”
Hans (interrompendo): “…fazem pipi? Não.”
‘No dia 10 de abril retomei nossa conversa do dia anterior, e tentei descobrir o que significava o seu “por causa do cavalo”. Hans não conseguia lembrar-se; ele só sabia que, certa manhã, algumas crianças tinham ficado do lado de fora da porta da frente, e disseram: “por causa do cavalo, por causa do cavalo!” Ele mesmo estava lá. Quando o pressionei mais, ele declarou que elas não disseram “por causa do cavalo” nada, mas que ele se tinha lembrado errado.
Eu: “Mas você e os outros estavam constantemente nos estábulos. Vocês devem ter conversado sobre cavalos lá.” - “Nós não conversamos.” - “Sobre que é que vocês falavam?” - “Sobre nada.” - “Tantas crianças, e nada para conversar?” - “Nós falávamos sobre alguma coisa, mas não sobre cavalos.” - “Bom, o que era?” - “Não me lembro mais.”
‘Deixei de lado o assunto, já que as resistências eram evidentemente grandes demais, e passei para a seguinte pergunta: “Você gostava de brincar com Berta?”
Ele: “Gostava muito, mas não com Olga. Você sabe o que Olga fez? Uma vez eu ganhei uma bola de papel de Grete, lá em Gmunden, e Olga rasgou-a toda em pedaços. Berta nunca teria rasgado a minha bola. Eu gostava muito de brincar com Berta.”
Eu: “Você viu como era o pipi de Berta?”
Ele: “Não, mas eu vi o dos cavalos; porque eu estava sempre nos estábulos, então vi os pipis dos cavalos.”
Eu: “Então você estava curioso e queria saber como eram os pipis de Berta e de mamãe?
Ele: “Sim.”
‘Eu lhe lembrei como ele uma vez se queixou a mim de que as menininhas sempre queriam ficar olhando quando ele estava fazendo pipi [ver em [1]].
Ele: “Berta sempre me olhava também” (ele falou com muita satisfação, e nem um pouco ressentido); “ela fazia isso freqüentemente. Eu costumava fazer pipi no jardinzinho onde havia rabanetes, e ela ficava do lado de fora da porta da frente e me olhava.”
Eu: “E quando ela fazia pipi, você ficava olhando?”
Ele: “Ela costumava ir ao banheiro.”
Eu: “E você ficava curioso?”
Ele: “Eu ficava dentro do banheiro quando ela estava lá dentro.”
‘(Isto era um fato. As empregadas nos falaram sobre o assunto, uma vez, e eu me lembro que proibimos Hans de fazê-lo.)
Eu “Você lhe disse que queria entrar?”

Ele: “Eu entrei sozinho, e porque Berta me deixou entrar. Não há nada de vergonhoso nisso.”
Eu: “E você teria gostado de ver o pipi dela?”
Ele: “Sim, mas eu não vi.”
Eu então lhe lembrei o sonho de cobrar prendas que ele tinha tido em Gmunden [ver em [1]], e disse: “Quando você estava em Gmunden, você queria que Berta o fizesse fazer pipi?”
Ele: “Eu nunca disse isso a ela.”
Eu: “Por que você nunca lhe disse isso?”
Ele: “Porque eu não pensei nisso.” (Interrompendo-se) “Se eu escrever tudo para o Professor, minha bobagem vai acabar logo, não vai?”
Eu: “Por que é que você queria que Berta o fizesse fazer pipi?”
Ele: “Não sei. Porque ela me ficava olhando.”
Eu: “Você pensou para você mesmo que ela podia pôr a mão no seu pipi?”
Ele: “Sim.” (Mudando de assunto) “Era tão divertido em Gmunden. No jardinzinho onde havia rabanetes, havia um montinho de areia; eu costumava brincar lá com a minha pá.”
‘(Esse era o jardim onde ele costumava fazer pipi sempre.)
Eu: “Você punha a mão no seu pipi em Gmunden, quando estava na cama?”
Ele: “Não. Naquela época não; eu dormia tão bem em Gmunden que nunca nem pensei nisso. As únicas vezes que eu fiz isso foi na Rua - e agora.”
Eu: “Mas Berta nunca pôs a mão no seu pipi?”
Ele: “Ela nunca pôs, não; porque eu nunca lhe disse para pôr.”
Eu: “Bom, e quando foi que você quis que ela pusesse?”
Ele: “Ah, uma vez em Gmunden.”
Eu: “Uma vez só?”
Ele: “Bom, de vez em quando.”
Eu: “Ela costumava ficar olhando sempre para você quando você fazia pipi; talvez ela estivesse curiosa para saber como é que você fazia pipi?”
Ele: “Talvez ela estivesse curiosa para saber como era o meu pipi.”
Eu: “Mas você também estava curioso. Só sobre a Berta?”
Ele: “Sobre a Berta, e sobre a Olga.”
Eu: ‘‘Sobre quem mais?”

Ele: “Sobre ninguém mais.”
Eu: “Você sabe que isso não é verdade. Sobre mamãe também.”
Ele: “Ah, sim, sobre mamãe.”
Eu: “Mas agora você não está mais curioso. Você sabe como é o pipi da Hanna, não sabe?”
Ele: “Mas o pipi de Hanna vai crescer, não vai?”
Eu: “É claro que vai. Mas quando crescer não vai ser igual ao seu.”
Ele: “Eu sei disso. Vai ser a mesma coisa” (isto é, como é agora), “só que maior.”
Eu: “Quando nós estávamos em Gmunden, você ficava curioso quando sua mamãe se despia?”
Ele: “Sim. E quando Hanna estava no banho, eu vi o pipi dela.”
Eu: “E o de mamãe também?”
Ele: “Não.”
Eu: “Você teve nojo quando viu as calças de mamãe?”
Ele: “Só quando eu vi as pretas - quando ela as comprou -, então eu cuspi. Mas eu não cuspo quando ela põe suas calças ou as tira. Eu cuspo porque as calças pretas são pretas como um ‘lumf’ e as amarelas são como pipi, e então eu acho que tenho que fazer pipi. Quando mamãe está usando suas calças, eu não as vejo; ela usa suas roupas por cima delas.”
Eu: “E quando ela tira as roupas dela?”
Ele: “Eu não cuspo nessa hora, também não. Mas quando as calças estão novas, elas parecem um ‘lumf‘. Quando elas estão velhas, a cor vai embora, e elas ficam sujas. Quando você as compra, elas estão bem limpas, mas em casa elas se tornam sujas. Quando elas são compradas, elas são novas, e quando elas não são compradas, elas são velhas.”
Eu: “Então você não tem nojo das velhas?”
Ele: “Quando elas estão velhas, ficam muito mais pretas que um ‘lumf‘, não ficam? Elas ficam só um pouco mais pretas.”
Eu: “Você esteve muitas vezes no banheiro com a mamãe?”
Ele: “Muitas vezes.”
Eu: “E você teve nojo?”

’Ele: “Sim… Não.”
Eu: “Você gosta de ficar lá quando a mamãe faz pipi ou ‘lumf‘?”
Ele: “Gosto muito.”
Eu: “Por que é que você gosta tanto disso?”
Ele: “Não sei.”
Eu: “Porque você acha que vai ver o pipi da mamãe.”
Ele: “É, eu acho que é por isso.”
Eu: “Mas por que é que você nunca vai ao banheiro em Lainz?”
‘(Em Lainz ele sempre me pede para não levá-lo ao banheiro; ele ficou assustado certa vez com o barulho da descarga.)
Ele: “Talvez porque faz um barulhão quando você puxa a válvula.”
Eu: “E então você fica com medo.”
Ele: “Sim.”
Eu: “E no banheiro daqui?”
Ele: “Aqui eu não tenho medo. Em Lainz me dá medo quando você puxa a válvula. E quando eu estou lá dentro e a água corre para baixo, me dá medo também.”
‘E, “só para me mostrar que ele não tinha medo no nosso apartamento”, me fez ir até o banheiro e pôs a válvula em funcionamento. Então ele me explicou:
‘“Primeiro há um barulho alto, depois um barulho solto.” (Este é quando a água escorre.) “Quando há o barulho alto eu prefiro ficar dentro; quando há o barulho suave, eu prefiro sair.”
Eu: “Por que você tem medo?”
Ele: “Porque quando há o barulho alto eu gosto tanto de vê-lo” - (corrigindo-se) “de ouvi-lo; de modo que eu prefiro ficar dentro e ouvi-lo direito.”
Eu: “O que é que o barulho alto lhe lembra?”
Ele: “Que eu tenho que fazer ‘lumf‘ no banheiro. (A mesma coisa que as calças pretas lhes lembravam.)
Eu: “Por quê?”
Ele: “Não sei. Um barulho alto soa como se você estivesse fazendo ‘lumf‘. Um barulhão me lembra ‘lumf‘, e um barulhinho, pipi.” (Cf. as calças pretas e amarelas.)
Eu: “Escute, o cavalo do ônibus não era da mesma cor que um “‘lumf‘?” (De acordo com o seu relato ele era preto [ver em [1]].)
Ele (muito impressionado): “Era.”
Nesse ponto devo acrescentar algumas palavras. O pai de Hans estava fazendo perguntas demais, e estava pressionando o inquérito através de suas próprias linhas, em vez de permitir ao garotinho que expressasse seus pensamentos. Por essa razão a análise começou a ficar obscura e incerta. Hans tomou seu próprio caminho e não produziria nada se fossem feitas tentativas para tirá-lo deste. No momento seu interesse estava, evidentemente, centralizado em ‘lumf‘ e pipi, mas não podemos dizer por quê. O caso do barulho foi tão mal enfocado quanto o das calças amarelas e pretas. Suspeito que os argutos ouvidos do menino tenham detectado claramente a diferença entre os sons feitos por um homem urinando e por uma mulher. A análise conseguiu forçar o material, de forma um tanto artificial, para uma expressão da distinção entre os dois diferentes apelos da natureza. Só posso aconselhar àqueles dos meus leitores que até agora ainda não tenham conduzido uma análise, que não tentem compreender tudo de uma vez, mas que dêem um tipo de atenção não tendenciosa para todo ponto que surgir e aguardem desenvolvimentos posteriores.
‘11 de abril. Nesta manhã Hans veio, de novo, para nosso quarto, e foi mandado embora, como tem sido sempre nos últimos dias.
‘Mais tarde ele começou: “Papai, eu pensei uma coisa: eu estava no banho, e então veio o bombeiro e desaparafusou a banheira. Depois ele pegou uma grande broca e bateu no meu estômago.”’
O pai de Hans traduziu essa fantasia como se segue: ‘“Eu estava na cama com mamãe. Depois papai veio e me tirou de lá. Com o seu grande pênis ele me empurrou do meu lugar, ao lado de mamãe.”’
Vamos manter em suspenso o nosso julgamento por agora.
‘Ele prosseguiu relatando uma segunda idéia que tinha tido: “Estávamos viajando no trem para Gmunden. Na estação pusemos nossas roupas, mas não conseguimos acabar a tempo, e o trem nos levou.”
‘Mais tarde, perguntei: “Você já viu alguma vez um cavalo fazendo ‘lumf‘?”
Hans: “Vi muitas vezes.”
Eu: “Faz muito barulho quando o cavalo faz ‘lumf?”
Hans: “Faz.”
Eu: “O que é que o barulho lhe lembra?”
Hans: “Como quando o ‘lumf‘ cai no urinol.”

’O cavalo do ônibus que cai e faz um barulhão com suas patas é, sem dúvida, um ‘lumf, caindo e fazendo barulho. Seu medo da defecação e seu medo de carroças muito carregadas é equivalente ao medo do estômago muito cheio.’
Por esse caminho indireto o pai de Hans estava começando a obter um vislumbre do verdadeiro estado de coisas.
‘11 de abril. Na hora do almoço Hans disse: “Se ao menos nós tivéssemos uma banheira em Gmunden, para que eu não precisasse ir aos banhos públicos!” É verdade que em Gmunden ele tem sempre que ser levado aos banhos públicos na vizinhança para que lhe seja dado um banho quente - um processo contra o qual ele costumava protestar com lágrimas apaixonadas. E em Viena também ele sempre grita, se o fazem sentar-se ou deitar-se na banheira grande. Ele precisa que seu banho seja dado com ele ajoelhado ou de pé.’
Hans estava, agora, começando a trazer combustível para a análise, sob a forma de pronunciamentos espontâneos seus. Essa sua observação estabeleceu a relação entre as suas duas últimas fantasias - a do bombeiro que desaparafusou a banheira e a da jornada malsucedida a Gmunden. Seu pai inferiu corretamente da última que Hans tinha alguma aversão a Gmunden. Isso, a propósito, é um outro bom lembrete do fato de que o que emerge do inconsciente deve ser compreendido à luz não do que vem antes, mas do que vem depois.
‘Perguntei-lhe se tinha medo e, se tinha, de quê.
Hans: “De cair lá dentro.”
Eu: “Mas por que você nunca teve medo quando tomava seu banho na banheirinha?”
Hans: “Ora, porque eu sentava nela. Não podia deitar nela. Era pequena demais.”
Eu: “Quando você foi de barco a Gmunden, não teve medo de cair na água?”
Hans: “Não, porque eu me segurava, então não podia cair. É só na banheira grande que eu tenho medo de cair.”
Eu: “Mas mamãe lhe dá o seu banho na banheira grande. Você tem medo de que a mamãe deixe você cair na água?”
Hans: “Eu tenho medo de que ela me largue e que a minha cabeça mergulhe.”
Eu: “Mas você sabe que a mamãe gosta muito de você e que não vai largá-lo.”
Hans: “Eu só pensei nisso.”

Eu: “Por quê?”
Hans: “Eu não sei mesmo.”
‘Eu: “Talvez fosse porque você estivesse levado, e então pensou que ela não amasse mais você?”
Hans: “Sim.”
Eu: “Quando você estava olhando mamãe dar o banho de Hanna, talvez você quisesse que ela largasse Hanna, para que ela caísse na água?”
Hans: “Sim.’”
O pai de Hans, não podemos deixar de pensar, tinha feito uma ótima conjectura.
‘12 de abril. Enquanto estávamos voltando de Lainz numa carruagem de segunda classe, Hans olhou para o couro preto do encosto dos bancos e disse: “hum! isso me faz cuspir! Calças pretas e cavalos pretos me fazem cuspir também, porque tenho que fazer ‘lumf‘.”
Eu: “Talvez você tenho visto alguma coisa da mamãe que era preto, e isso o assustou?”
Hans: “Sim.”
Eu: “Bom, e o que foi?”
Hans: “Não sei. Uma blusa preta ou meias pretas.”
Eu: “Talvez tenha sido cabelo preto perto do pipi dela, quando você estava curioso e olhou.”
Hans (defendendo-se): “Mas eu não vi o pipi dela.”
‘De uma outra vez ele se assustou novamente com uma carroça saindo do portão do pátio em frente. “Os portões não parecem um traseiro?”, perguntei.
Ele: “E os cavalos são os ‘lumfs‘!” Desde, então, toda vez que ele vê uma carroça saindo, ele diz: “Olha, lá vem vindo um ‘lumfy‘!” Essa forma da palavra (“lumfy”) é bem nova para ele; soa como um termo de ternura. Minha cunhada sempre chama sua criança de “Wumfy”.
‘No dia 13 de abril ele viu um pedaço de fígado na sopa e exclamou: “hum! Um ‘lumf‘!” Croquetes de carne, também, ele os come com evidente relutância, porque sua forma e cor lhe lembram ‘lumf‘.
‘De noite minha mulher me contou que Hans tinha ficado na varanda e tinha dito: “Eu pensei para mim mesmo que Hanna estava na varanda e tinha caído de lá.” Eu lhe tinha dito uma ou duas vezes para ter cuidado para que Hanna não chegasse muito perto da balaustrada, quando ele estivesse na varanda, pois a grade fora projetada da maneira menos prática possível (porum serralheiro do Movimento Secessionista) e tinha grandes intervalos, os quais eu teria que ter preenchido com uma rede de arame. O desejo reprimido de Hans estava bem transparente. Sua mãe lhe perguntou se ele tinha preferido que Hanna não estivesse lá, ao que ele respondeu “Sim”.
‘14 de abril. O tema de Hanna é o principal. Como vocês devem lembrar-se por registros anteriores, Hans sentiu uma forte aversão pelo bebê recém-nascido, que lhe roubou uma parte do amor de seus pais. Essa antipatia não desapareceu completamente e só foi supercompensada em parte por uma afeição exagerada. Ele já tinha expressado muitas vezes um desejo de que a cegonha não trouxesse mais bebês e que devíamos pagar-lhe algum dinheiro para não trazer mais nenhum “de dentro da grande caixa”, onde estão os bebês. (Comparar com o seu medo das carroças de mudanças. Um ônibus não se parece com uma caixa grande?) Hanna grita tanto, diz ele, e isso é uma amolação para ele.
‘Certa vez ele disse de repente: “Você se lembra de quando Hanna veio? Ela ficou ao lado de mamãe na cama, tão bonitinha e boazinha.” (Seu elogio soou suspeitamente vazio.)
‘E, depois, no que se refere ao andar de baixo, fora da casa, há um grande progresso a ser relatado. Até mesmo os vagões de carga pesada lhe causam menos susto. Uma vez ele exclamou, quase com alegria: “Lá vem um cavalo com uma coisa preta na boca!” E, por fim, pude estabelecer o fato de que era um cavalo com uma focinheira de couro. Mas Hans não estava com medo algum desse cavalo.
‘Uma vez ele bateu na calçada com a sua vara e disse: “Escute, tem algum homem aqui embaixo? - alguém enterrado? - ou isso é só no cemitério?” Então ele está ocupado não só com o enigma da vida, mas também com o enigma da morte.
‘Quando chegamos em casa de novo, vi uma caixa no hall de entrada, e Hans disse: “Hanna viajou conosco para Gmunden numa caixa como essa. Toda vez que viajávamos para Gmunden ela ia conosco na caixa. Você não está acreditando em mim de novo? É verdade, papai. Acredite em mim. Nós tínhamos uma caixa grande, que estava cheia de bebês; eles se sentavam na banheira.” (Uma pequena banheira tinha sido acondicionada dentro da caixa.) “Eu os pus lá dentro. De verdade mesmo. Eu me lembro muito bem.”
Eu: “O que você pode lembrar?”
Hans: “Que Hanna viajou na caixa, porque eu não esqueci isso. Palavra de honra!”
Eu: “Mas no ano passado Hanna viajou conosco na carruagem.”
Hans: “Mas antes disso ela sempre viajou conosco na caixa.”
Eu: “Mamãe não tinha a caixa?”
Hans: “Sim, mamãe tinha.”
Eu: “Onde?”
Hans: “Em casa, no sótão.”
Eu: “Talvez ela levasse a caixa com ela?”
Hans: “Não. E quando viajarmos para Gmunden desta vez, Hanna vai viajar de novo na caixa.”
Eu: “E como foi que ela saiu da caixa, então?”
Hans: “Ela foi tirada.”
Eu: “Por mamãe?”
Hans: “Por mamãe e por mim. Depois nós tomamos a carruagem e Hanna foi montada no cavalo, e o cocheiro disse: ‘Vira para a direita.’ O cocheiro sentou-se na frente. Você também estava lá? Mamãe sabe tudo sobre isso. Mamãe não sabe; ela já se esqueceu disso, mas não lhe diga nada!”
‘Eu o fiz repetir toda essa história.
Hans: “Depois Hanna saiu.”
Eu: “Como, se ela não podia andar de jeito nenhum naquela época?”
Hans: “Bom, então nós a suspendemos e tiramos.”
Eu: “Mas como é que ela podia ter sentado no cavalo? Ela não podia sentar-se de jeito nenhum no ano passado.”
Hans: “Ah, sim, ela podia sentar-se muito bem, e gritou ‘Vira para a direita’, e chicoteou com seu chicote - ‘Vira para a direita! Vira para a direita!’ -, o chicote que eu tinha. O cavalo não tinha nenhum estribo, mas Hanna montou nele. Eu não estou brincando, você sabe, papai.”’

Qual pode ser o significado da persistência obstinada do menino em toda essa bobagem? Oh, não, não era bobagem: era uma paródia, era a vingança de Hans sobre seu pai. Era o mesmo que dizer: ‘Se você realmente espera que eu acredite que a cegonha trouxe Hanna em outubro, quando até mesmo no verão, enquanto estávamos viajando para Gmunden, eu notei como o estômago de mamãe estava grande - então, espero que você acredite nas minhas mentiras.’ Qual pode ser o significado da afirmação de que, até mesmo no verão anterior ao último, Hanna tinha viajado com eles para Gmunden ‘na caixa’, exceto que ele sabia da gravidez de sua mãe? O fato de ele sustentar a perspectiva de uma repetição dessa jornada na caixa a cada ano sucessivo exemplifica uma maneira comum pela qual os pensamentos inconscientes do passado emergem para a consciência; ou pode haver razões especiais, e expressar seu receio em ver uma gravidez semelhante repetir-se nas suas próximas férias de verão. Agora vemos, acima de tudo, quais eram as circunstâncias que o fizeram tomar uma antipatia pela viagem a Gmunden, como indicou sua segunda fantasia [ver em [1]].
‘Mais tarde perguntei-lhe como foi que Hanna realmente veio para a cama de sua mãe, depois que nasceu.’
Isso deu a Hans uma oportunidade de se soltar e de ‘encher’ bastante o seu pai.
Hans: “Hanna veio. Frau Kraus” (a parteira) “colocou-a na cama. Ela não podia andar, é claro. Mas a cegonha carregou-a no seu bico. É claro que ela não podia andar.” (Ele continuou sem uma pausa.) “A cegonha subiu as escadas até o patamar, e então bateu, e todos estavam dormindo, e ela tinha a chave certa e abriu a porta e pôs Hanna na sua cama, e mamãe estava dormindo - não, a cegonha colocou-a na cama dela. Isso foi no meio da noite, e então a cegonha colocou-a na cama muito tranqüilamente, não fez o menor barulho com os pés, e depois pegou seu chapéu e foi embora de novo. Não, ela não tinha chapéu.”
Eu: “Quem tirou o chapéu dela? O médico, talvez?”
Hans: “Depois a cegonha foi embora; foi para casa, e depois tocou a campainha da porta, e todos na casa pararam de dormir. Mas não diga isso a mamãe ou a Tini” (a cozinheira). “É um segredo.”
Eu: “Você gosta de Hanna?”
Hans: “Oh, sim, gosto muito.”

Eu: “Você prefere que Hanna não estivesse viva, ou que ela esteja viva?”
Hans: “Eu preferia que ela não estivesse viva.”
‘Eu: “Por quê?”
Hans: “Em todo caso, ela não gritaria tanto, e eu não suporto a sua gritaria.”
Eu: “Por que se você mesmo grita?”
‘Hans: “Mas Hanna grita demais.”
Eu: “Por que é que você não agüenta isso?”
Hans: “Porque ela grita muito alto.”
Eu: “Ora, ela não grita nada.”
Hans: “Quando ela apanha no seu traseiro nu, ela grita.”
Eu: “Você já bateu nela?”
Hans: “Quando a mamãe bate no traseiro dela, ela grita.”
Eu: “E você não gosta disso?”
Hans: “Não… Por quê? Porque ela faz muito barulho com a sua gritaria.”
Eu: “Se você prefere que ela não estivesse viva, você não pode gostar nada dela.”
Hans (concordando): “É, é mesmo.”
Eu: “Foi por isso que você pensou, quando a mamãe estava dando o banho dela, que, se ela a soltasse, Hanna cairia na água…”
Hans (atalhando-me): “…e morreria.”
Eu: “E então você ficaria sozinho com mamãe. Mas um bom menino não deseja esse tipo de coisa.”
‘Hans: “Mas ele pode PENSAR isso.”
Eu: “Mas isso não é bom.”
HansSe ele pensa isso, é bom de todo jeito, porque você pode escrevê-lo para o Professor.
‘Mais tarde eu lhe disse: “Você sabe, quando Hanna for maior e souber falar, você vai gostar mais dela.”
Hans: “Oh, não. Eu gosto dela. No outono, quando ela for grande, eu vou sozinho com ela para o Stadtpark, e vou explicar tudo a ela.”
‘Quando eu estava começando a lhe dar algum esclarecimento adicional, ele me interrompeu, provavelmente com a intenção de me explicar que não era tão mau assim, de sua parte, desejar que Hanna estivesse morta.
Hans: “Você sabe, de qualquer jeito, que ela já estava viva há muito tempo, mesmo antes de chegar aqui. Quando ela estava com a cegonha, ela estava viva também.”
Eu: “Não. Talvez afinal de contas ela não estivesse com a cegonha.”
Hans: “Quem a trouxe, então? A cegonha a conseguiu.”
Eu: “De onde foi que ela a trouxe, então?”
Hans: “Oh - dela.”
Eu: “Onde foi que ela a conseguiu, então?”
Hans: “Na caixa; na caixa da cegonha.”
Eu: “Bom, e como é que é a caixa?”
Hans: “Vermelha, Pintada de vermelho.” (Sangue?)
Eu: “Quem lhe disse isso?”
Hans: “Mamãe… eu pensei isso para mim mesmo… está no livro.”
Eu: “Em que livro?”
Hans: “No livro de ilustrações.” (Eu o fiz buscar seu primeiro livro de ilustrações. Nele havia uma figura de um ninho com cegonhas, numa chaminé vermelha. Esta era a caixa. Curiosamente, na mesma página havia também a figura de um cavalo sendo ferrado. Hans transferiu os bebês para a caixa, pois eles não deveriam ser vistos no ninho.)
Eu: “E o que foi que a cegonha fez com ela?”
Hans: “Então a cegonha trouxe Hanna para cá. No seu bico. Você sabe, a cegonha que está em Schönbrunn, e que bicou o guarda-chuva.” (Uma reminiscência de um episódio em Schönbrunn.)
Eu: “Você viu como foi que a cegonha trouxe Hanna?”
Hans: “Ora, eu estava dormindo, você sabe. Uma cegonha nunca pode trazer uma menininha ou um menininho de manhã.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Ela não pode. Uma cegonha não pode fazer isso. Você sabe por quê? Para que as pessoas não vejam. E então, de repente, pela manhã, lá está uma menininha.”

Eu: “Mas, de todo jeito, na época você ficou curioso para saber como foi que a cegonha fez isso?”
Hans: “Oh, sim.”
Eu: “Como é que Hanna era quando ela veio?”
Hans: (hipocritamente): “Toda branca e adorável. Tão bonitinha.”
Eu: “Mas quando você a viu pela primeira vez, você não gostou dela.”
Hans: “Oh, gostei sim; muito!”
Eu: “Você no entanto ficou surpreso de ela ser tão pequena.”
Hans: “Sim.”
Eu: “De que tamaninho ela era?”
Hans: “Do tamanho de um bebê de cegonha.”
Eu: “Do tamanho de que mais? De um ‘lumf‘, talvez?”
Hans: “Oh, não. Um ‘lumf‘ é muito maior… um pouco menor que Hanna, é verdade.”’
Eu tinha predito a seu pai que seria possível reportar a fobia de Hans aos pensamentos e desejos ocasionados pelo nascimento da sua irmãzinha. Mas deixei de salientar que, de acordo com a teoria sexual das crianças, um bebê é um ‘lumf‘, de modo que a trilha de Hans se encontraria no complexo excremental. Foi devido a essa negligência da minha parte que o progresso do caso se tornou temporariamente obscurecido. Agora que o assunto tinha sido esclarecido, o pai de Hans tentou examinar o menino, de uma segunda vez, em relação a esse ponto importante.
No dia seguinte, ‘fiz Hans repetir o que ele me dissera ontem. Ele disse: “Hanna viajou para Gmunden na caixa grande e mamãe viajou na carruagem da estrada de ferro, e Hanna viajou no trem de bagagem com a caixa; e depois, quando chegamos a Gmunden, mamãe e eu suspendemos e tiramos Hanna, e a pusemos em cima do cavalo. O cocheiro sentou na frente, e Hanna tinha o velho chicote” (o chicote que ele tinha no ano passado) “e chicoteou o cavalo e ficou dizendo ‘Vira para a direita’ e foi tão engraçado; o cocheiro chicoteou também. - O cocheiro não chicoteou não, porque Hanna tinha o chicote. - O cocheiro tinha as rédeas - Hanna também tinha as rédeas.” (Em todas as ocasiões nós fomos numa carruagem da estação até em casa. Hans estava, aqui, tentando reconciliar fato e fantasia.) “Em Gmunden nós suspendemos Hanna e a tiramos do cavalo, e ela subiu os degraus sozinha.” (No ano passado, quando Hanna estava em Gmunden, ela tinha oito meses de idade. No ano anterior a este - e a fantasia de Hans evidentemente referia-se a essa época - sua mãe estava com cinco meses completos de gravidez quando chegamos a Gmunden.)
Eu: “No ano passado Hanna estava lá.”
Hans: “No ano passado ela viajou na carruagem; mas no ano anterior a este, quando ela estava morando conosco…”
Eu: “Ela já estava conosco nessa época?”
Hans: “Estava. Você sempre esteve aqui; você costumava ir sempre no barco comigo, e Anna era nossa empregada.”
Eu: “Mas isso não foi no ano passado. Hanna não estava viva então.”
Hans: “Sim, ela estava viva nessa época. Mesmo quando ela ainda estava viajando na caixa, ela podia correr por aí e podia dizer ‘Anna’.” (Ela só foi capaz de agir assim nos últimos quatro meses.)
Eu: “Mas ela não estava conosco de jeito nenhum naquela época.”
Hans: “Oh, sim, ela estava; ela estava com a cegonha.”
Eu: “Que idade ela tem, então?”
Hans: ‘‘Ela vai fazer dois anos no outono. Hanna estava aqui, você sabe que ela estava.”
Eu: “E quando é que ela estava com a cegonha, na caixa da cegonha?”
Hans: “Muito tempo antes de ela viajar na caixa, muito tempo mesmo.”
Eu: “Há quando tempo Hanna sabe andar, então? Quando ela estava em Gmunden, ela ainda não sabia andar.”
Hans: “Não no ano passado; mas em outras vezes ela sabia.”
Eu: “Mas Hanna só esteve em Gmunden uma vez.”
Hans: “Não. Ela esteve duas vezes. Sim, é isso mesmo. Eu me lembro muito bem. Pergunte à mamãe, ela vai lhe dizer logo.”
Eu: “De qualquer maneira, não é verdade.”
Hans: “Sim, é verdade. Quando ela esteve em Gmunden da primeira vez ela sabia andar e montar, e mais tarde, ela precisava ser carregada. - Não. Foi só mais tarde que ela montou, e no ano passado ela precisava ser carregada.”
Eu: “Mas só há muito pouco tempo é que ela está andando. Em Gmunden, ela não sabia andar.”
Hans: “Sabia sim. Pode escrever isso. Eu me lembro muito bem. - Por que é que você está rindo?”
Eu: “Porque você é um impostor; porque você sabe muito bem que Hanna só esteve em Gmunden uma vez.”

Hans: “Não, não é verdade. Da primeira vez ela foi montada a cavalo… e da segunda vez…” (Ele mostrou sinais de evidente incerteza.)
Eu: “Talvez o cavalo fosse mamãe?”
Hans: “Não, um cavalo de verdade, num coche.”
Eu: “Mas nós costumávamos ter sempre uma carruagem com dois cavalos.”
Hans: “Bom, então, era uma carruagem e uma parelha.”
Eu: “O que é que Hanna comia dentro da caixa?”
Hans: “Botavam pão com manteiga lá para ela, e arenque, e rabanetes” (o tipo de coisa que costumávamos ter na ceia em Gmunden), “e no caminho Hanna passava manteiga no seu pão com manteiga, e comia cinqüenta refeições.”
Eu: “Hanna não gritava?”
Hans:: “Não.”
Eu: “E o que é que ela fazia, então?”
Hans: “Ficava sentada bem quietinha lá dentro.”
Eu: “Ela não ficava batendo?”
Hans: “Não, ela ficava comendo o tempo todo e não se agitou nenhuma vez. Ela bebeu duas canecas grandes de café - pela manhã tinha acabado tudo, e ela deixou os pedaços atrás, dentro da caixa, as folhas dos dois rabanetes e uma faca para cortar os rabanetes. Ela engolia tudo como uma lebre: num minuto estava tudo terminado. Foi uma brincadeira. Hanna e eu realmente viajamos juntos na caixa; eu dormi a noite inteira na caixa.” (Nós, de fato, há dois anos, fizemos a viagem para Gmunden de noite.) “E mamãe viajou na carruagem da estrada de ferro. E nós ficamos comendo o tempo todo, quando estávamos viajando na carruagem também; foi divertido. - Ela não foi montada a cavalo, não…” (ele agora se tornou indeciso, pois sabia que tínhamos viajado com dois cavalos) “…ela foi sentada na carruagem. Sim, foi assim mesmo, mas Hanna e eu fomos por nossa conta… mamãe foi num cavalo, e Karoline” (nossa empregada no ano passado) “no outro… quero dizer, o que estou lhe dizendo não é nem um pouco verdade.”
Eu: “O que não é verdade?”
Hans: “Nada disso é verdade. Quero dizer, vamos pôr Hanna e eu dentro da caixa e eu vou fazer pipi na caixa. Eu vou fazer pipi nas calças; não me importo nem um pouco; não há nada de vergonhoso nisso. Quero dizer, não é uma brincadeira, você sabe: mas é muito divertido, mesmo assim.”

’Depois ele me contou a história de como a cegonha veio - a mesma história de ontem, só que ele deixou de fora a parte sobre a cegonha levar o chapéu quando ia embora.
Eu: “Onde foi que a cegonha guardou a chave do trinco?”
Hans: “No bolso dela.”
Eu: “E onde é o bolso da cegonha?”
Hans: “No bico dela.”
Eu: “É no bico dela! Eu ainda não tinha visto uma cegonha com uma chave no bico.”
Hans: “De que outro jeito ela poderia ter entrado? Como foi que a cegonha entrou pela porta, então? Não, não é verdade; e eu cometi um erro. A cegonha tocou a campainha da porta da frente e alguém a fez entrar.”
Eu: “E como foi que a ela tocou a campainha?”
Hans: “Ela tocou a campainha.”
Eu: “Como foi que ela fez isso?”
Hans: “Ela pegou seu bico e a apertou com ele.”
Eu: “E ela fechou a porta de novo?”
Hans: “Não, uma empregada fechou. Ela já estava de pé, você sabe, e abriu a porta para a cegonha, e a fechou.”
Eu: “Onde é que a cegonha mora?”
Hans: “Onde? Na caixa onde ela guarda as menininhas. Em Schönbrunn talvez.”
Eu: “Eu nunca vi nenhuma caixa em Schönbrunn.”
Hans: “Deve ser mais longe então. - Você sabe como é que a cegonha abre a caixa? Ela pega seu bico - a caixa tem uma chave também -, ela pega o bico, levanta um” (isto é, uma metade do bico) “e a destranca assim.” (Ele demonstrou na fechadura da escrivaninha.) “Também há um cabo na caixa.”
Eu: “Uma menininha como essa não é pesada demais para ela?”
Hans: “Oh, não.”
Eu: “Escuta, um ônibus não se parece com uma caixa de cegonha?”
Hans: “Sim.”
Eu: “É uma carroça de mudanças?”
Hans: “E também um vagãozinho” (“scallywag” - termo para os abusos das crianças levadas).

’17 de abril. Ontem Hans levou a cabo seu esquema, longamente premeditado, de atravessar o pátio em frente. Ele não faria hoje, pois havia uma carroça parada na rampa de carregamento, exatamente em frente aos portões de entrada. “Quando uma carroça fica parada aí”, disse-me ele, “eu tenho medo de importunar os cavalos e de eles caírem e fazerem um barulhão com as suas patas.”
Eu: “Como é que se importuna os cavalos?”
Hans: “Quando você está zangado com eles, você os importuna, e quando você grita ‘Vira para a direita’.”
Eu: “Você já importunou os cavalos?”
Hans: “Sim, muitas vezes. Eu tenho medo de fazê-lo, mas eu não o faço, realmente.”
Eu: “Você alguma vez importunou os cavalos em Gmunden?”
Hans: “Não.”
Eu: “Mas você gosta de importuná-los?”
Hans: “Oh, sim, muito.”
Eu: “Você gostaria de chicoteá-los?”
Hans: “Gostaria.”
Eu: “Você gostaria de bater nos cavalos como a mamãe bate em Hanna? Você gosta disso também, você sabe.”
Hans: “Não acontece nada de mal aos cavalos quando se bate neles.” (Eu lhe disse isso uma vez, para mitigar o seu medo de ver os cavalos serem chicoteados.) “Uma vez eu bati. Uma vez eu tinha o chicote, e chicoteei o cavalo, e ele caiu e fez um barulhão com suas patas.”
Eu: “Quando?”
Hans: “Em Gmunden.”
Eu: “Um cavalo de verdade? Arreado a uma carroça?”
Hans: “Não foi na carroça.”
Eu: “Onde foi, então?”
Hans: “Eu apenas o segurei, para que ele não pudesse fugir.” (É claro que tudo isso soava muito improvável.)
Eu: “Onde foi isso?”
Hans: “Perto do bebedouro.”
Eu: “Quem o deixou? O cocheiro tinha deixado o cavalo parado lá?”
Hans: “Era apenas um cavalo das estrebarias.”

Eu: “Como foi que ele chegou ao bebedouro?”
Hans: “Eu o levei lá.”
Eu: “De onde? Das estrebarias?”
Hans: “Eu o levei para fora porque eu queria bater nele.”
Eu: “Não havia ninguém nas estrebarias?”
Hans: “Oh sim, o Loisl.” (O cocheiro em Gmunden.)
Eu: “Ele o deixou?”
Hans: “Eu falei direitinho com ele, e ele disse que eu poderia levar o cavalo.”
Eu: “O que foi que você disse a ele?”
Hans: “Eu posso levar o cavalo e chicoteá-lo e gritar com ele. E ele disse ‘pode’.”
Eu: “Você chicoteou muito o cavalo?”
Hans: “O que eu te disse não é nem um pouco verdade.”
Eu: “Até que ponto isso é verdade?”
Hans: “Nada disso é verdade; eu só contei isso para me divertir.”
Eu: “Você nunca levou um cavalo para fora das estrebarias?”
Hans: “Oh, não.”
Eu: “Mas você queria fazê-lo.”
Hans: “Oh, sim, eu queria. Eu pensei nisso para mim mesmo.”
Eu: “Em Gmunden?”
Hans: “Não, só aqui. Eu pensei nisso na manhã em que eu estava inteiramente despido; não, de manhã, na cama.”
Eu: “Por que é que você nunca me falou sobre isso?”
Hans: “Eu não pensei nisso.”
Eu: “Você pensou isso para você mesmo porque você viu a cena na rua.”
Hans: “Sim.”
Eu: “Em quem é que você realmente gostaria de bater? Na mamãe, em Hanna, ou em mim?”
Hans: “Na mamãe.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Eu apenas gostaria de bater nela.”
Eu: “Quando foi que você viu alguém bater na sua mamãe?”
Hans: “Eu nunca vi ninguém fazer isso, nunca em toda a minha vida.”
Eu: “E, no entanto, você gostaria de fazê-lo. Como é que você gostaria de executar isso?”

’Hans: “Com um batedor de tapete.” (Sua mãe freqüentemente ameaça bater-lhe com o batedor de tapete.)
‘Fui obrigado a parar com a conversa por hoje.
‘Na rua Hans explicou-me que os ônibus, as carroças de mudanças e as carroças de carvão eram carroças de caixas de cegonha.’
Isso quer dizer mulheres grávidas. O acesso de sadismo de Hans imediatamente anterior não pode ser desligado do presente tema.
‘21 de abril. Esta manhã Hans disse que tinha pensado o seguinte: “Havia um trem em Lainz e eu viajei com minha vovó de Lainz para a estação de Hauptzollamt. Você não tinha descido da ponte ainda, e o segundo trem já estava em St. Veit. Quando você chegou embaixo, o trem já estava lá, e nós entramos.”
‘Hans esteve em Lainz ontem. Para chegar à plataforma de embarque a pessoa tem que atravessar uma ponte. Da plataforma pode-se ver ao longo da linha até a estação de St. Veit. A coisa está um pouco obscura. O pensamento original de Hans foi, sem dúvida, que ele tinha partido no primeiro trem, que eu perdi, e que então um segundo trem veio de Unter St. Veit, no qual eu tinha ido atrás dele. Mas ele distorceu uma parte dessa fantasia de fuga, de modo que finalmente disse: “Nós dois só fomos embora no segundo trem.”
‘Essa fantasia relaciona-se à última [ver em [1]], que não foi interpretada e de acordo com a qual demoramos muito para pôr nossas roupas na estação em Gmunden, de modo que o trem nos levou.
‘De tarde, em frente da casa, Hans correu subitamente para casa, quando uma carruagem com dois cavalos vinha vindo. Eu não conseguia ver nada de inusitado na cena, e perguntei-lhe o que estava errado. “Os cavalos estão tão orgulhosos”, disse ele, “que eu tenho medo de que eles caiam.” (O cocheiro estava conduzindo os cavalos com firmeza, de modo que eles estavam trotando com passadas curtas e mantendo suas cabeças erguidas. De fato a ação deles era “orgulhosa”.)
‘Perguntei-lhe quem é que era realmente tão orgulhoso.
Ele: “É você, quando eu venho para a cama com mamãe.”
Eu: “De modo que você quer que eu caia?”

’Hans: “Sim. Você teria que estar nu” (significando “descalço”, como Fritzl estava) “e ferir-se contra uma pedra e sangrar, e então eu poderei ficar sozinho com a mamãe um pouquinho pelo menos. Quando você voltar ao nosso apartamento eu poderei fugir rápido para que você não veja.”
Eu: “Você se lembra quem foi que se feriu contra a pedra?”
Hans: “Sim, foi Fritzl.”
Eu: “Quando Fritzl caiu, o que foi que você pensou?”
Ele: “Que você devia bater na pedra e cair.”
Eu: “Então você gostaria de ir ficar com a mamãe?”
Ele: “Sim.”
Eu: “A respeito de que eu realmente repreendo você?”
Ele: “Não sei.”(!!)
Eu: “Por quê?”
Ele: “Porque você está zangado.”
Eu: “Mas isso não é verdade.”
Hans: “Sim, é verdade. Você está zangado. Eu sei que você está. Isso tem que ser verdade.”
‘Evidentemente, portanto, minha explicação de que só os menininhos vão para a cama com suas mamães e que os meninos grandes dormem nas suas próprias camas não o tinha impressionado muito.
‘Suspeito que seu desejo de “importunar” o cavalo, isto é, de bater e gritar com ele, não se aplica à sua mãe, como ele declarou, mas a mim. Não há dúvida de que ele só a colocou na frente porque não queria admitir a alternativa para mim. Nos últimos dias ele tem estado particularmente afetuoso comigo.’
Falando com o ar de superioridade que é tão facilmente adquirido depois do acontecimento, podemos corrigir o pai de Hans, e explicar que o desejo do menino de ‘importunar’ o cavalo tinha dois constituintes; era composto de um desejo sádico obscuro por sua mãe e de um claro impulso de vingança contra seu pai. O último não podia ser reproduzido até que o ângulo do precedente viesse a emergir, ligado ao complexo da gravidez. No processo da formação de uma fobia pelos pensamentos inconscientes que a fundamentam, tem lugar a condensação; e por essa razão o curso da análise nunca pode seguir o do desenvolvimento da neurose.

’22 de abril. Esta manhã, de novo, Hans pensou algo para si mesmo: “Um menino da rua estava dirigindo uma carreta, o guarda veio e o despiu, deixando-o inteiramente nu, e fez o menino ficar parado lá até a manhã seguinte, e de manhã o menino deu ao guarda 50.000 florins, para que ele pudesse continuar a dirigir a carreta.”
‘(A Nordbahn [Ferrovia Setentrional] corre por trás da nossa casa. Numa via de serviço havia um trole, que Hans uma vez viu um menino da rua dirigir. Ele também queria fazê-lo; mas eu lhe disse que não era permitido, e que se ele o fizesse o guarda iria atrás dele. Um segundo elemento nessa fantasia é o desejo reprimido de Hans de ficar nu.)’
Pôde-se notar por algum tempo que a imaginação de Hans estava sendo colorida por imagens derivadas do tráfego, e que estava avançando sistematicamente de cavalos, que puxam veículos, para ferrovias. Da mesma forma, uma fobia de estrada de ferro finalmente torna-se associada a qualquer fobia de rua.
‘Na hora do almoço fui informado de que Hans tinha brincado a manhã inteira com uma boneca de borracha, que ele chamava de Grete. [Cf. em [1].] Ele tinha metido um pequeno canivete através da abertura à qual estava originalmente pregado um pequeno guincho, e depois separou bem as pernas da boneca, de modo a deixar a faca sair. Ele tinha dito à empregada, apontando para entre as pernas da boneca: “Olha, lá está o pipi dela!
Eu: “De que é que você estava brincado com a sua boneca hoje?”
Hans: “Eu separei bem as suas pernas. Você sabe por quê? Porque havia uma faca dentro, que pertencia a mamãe. Eu a coloquei dentro, no lugar em que o botão faz gemer, e depois eu separei suas pernas e a faca apareceu lá.”
Eu: “Por que é que você separou as pernas da boneca? Para que pudesse ver o pipi dela?”
Ele: “O pipi dela não estava lá antes; eu poderia tê-lo visto antes, de qualquer modo.”
Eu: “Para que foi que você botou a faca lá dentro?”
Ele: “Não sei.”

’Eu: “Bom, como é a faca?”
‘Ele a trouxe para mim.
Eu: “Você pensou que era um bebê, talvez?”
Ele: “Não, eu não pensei nada, nada; mas eu acredito que a cegonha teve um bebê uma vez - ou alguém.”
Eu: “Quando?”
Ele: “Uma vez. Eu ouvi dizer - ou não ouvi? - ou eu disse errado?”
Eu: “O que significa ‘dizer errado’?”
Ele: “Que não é verdade.”
Eu: “Tudo que a gente diz é um pouco verdade.”
Ele: “Bom, sim um pouquinho.”
Eu (depois de mudar de assunto): “Como é que você acha que as galinhas nascem?”
Ele: “A cegonha as faz crescer; a cegonha faz as galinhas crescerem - não, Deus é que faz.”
‘Eu lhe expliquei que as galinhas botam ovos, e que de dentro dos ovos vêm outras galinhas.
‘Hans riu.
Eu: “Por que é que você está rindo?”
Ele: “Porque eu gosto do que você me contou.”
‘Ele disse que já tinha visto isso acontecer.
Eu: “Onde?”
Hans: “Você fez isso.”
Eu: “Onde é que eu botei um ovo?”
Hans: “Em Gmunden; você botou um ovo na grama e, de repente, uma galinha saiu pulando. Você botou um ovo uma vez; eu sei que você botou, eu tenho certeza. Porque mamãe disse.”
Eu: “Vou perguntar a mamãe se isso é verdade.”
Hans: “Não é nem um pouco verdade. Mas eu uma vez botei um ovo, e uma galinha saiu pulando.”
Eu: “Onde?”
Hans: “Em Gmunden eu botei um ovo na grama - não, eu me ajoelhei - e as crianças não olharam para mim, e de repente, de manhã eu disse: ‘Olhem para isso, crianças; eu botei um ovo ontem.’ De repente, elas olharam e viram um ovo, e de dentro deste veio um pequeno Hans. Bom, de que é que você está rindo? Mamãe não sabia disso, e Karoline também não, porque ninguém estava olhando; de repente eu botei um ovo e, de repente, estava lá. De verdade mesmo. Papai, quando é que uma galinha sai de um ovo? Quando ele é deixado só? Ele precisa ser comido?”

’Eu lhe expliquei o assunto.
Hans: “Está certo, vamos deixar o ovo com a galinha; então, uma galinha vai crescer. Vamos acondicioná-la na caixa e vamos levá-la para Gmunden.”’
Como seus pais ainda hesitavam em dar-lhe a informação que já estava, a essa altura, muito atrasada, o pequeno Hans, com um golpe audaz, tomou em suas próprias mãos a direção da análise. Por meio de um brilhante ato sintomático, ‘Olhem!’ ele tinha lhes dito, ‘é assim que eu imagino que aconteça um nascimento.’ O que ele tinha dito à empregada sobre o significado da sua brincadeira com a boneca tinha sido insincero; para seu pai negou explicitamente que ele queria apenas ver o pipi da boneca. Depois que seu pai lhe disse, como numa espécie de pagamento por conta, como é que as galinhas saem dos ovos, Hans deu uma expressão combinada do seu descontentamento, da sua desconfiança e do seu conhecimento superior, numa encantadora zombaria, que culminou, com suas últimas palavras, numa alusão inconfundível ao nascimento de sua irmã.
Eu: “De que é que você estava brincando com a sua boneca?”
Hans: “Eu disse ‘Grete’ para ela.”
Eu: “Por quê?”
Hans: “Porque eu disse ‘Grete’ para ela.”
Eu: “Como é que você brincou?”
Hans: “Eu apenas tomei conta dela como de um bebê de verdade.”
Eu: “Você gostaria de ter uma menininha?”
Hans: “Oh, sim. Por que não? Eu gostaria de ter uma, mas a mamãe não deve ter; eu não gosto disso.”
‘(Ele antes expressou muitas vezes esse ponto de vista. Ele tem medo de perder ainda mais da sua posição, se uma terceira criança chegar.)
Eu: “Mas só as mulheres têm crianças.”
Hans: “Eu vou ter uma menininha.”
Eu: “Onde é que você vai consegui-la?”
Hans: “Ora, da cegonha. Ela tira a menininha para fora, e de repente a menininha bota um ovo, e de dentro do ovo sai uma outra Hanna - outra Hanna. De dentro de Hanna sai outra Hanna. Não, sai uma Hanna.”
Eu: “Você gostaria de ter uma menininha.”
Hans: “Sim , no ano que vem eu vou ter uma, e ela vai chamar-se Hanna também.”
Eu: “Mas por que é que mamãe não deve ter uma menininha?’’
Hans: “Porque eu quero ter uma menininha dessa vez.”
Eu: “Mas você não pode ter uma menininha.”

’Hans: “Oh, sim, os meninos têm meninas e as meninas têm meninos.”

Eu: “Os meninos não têm crianças. Só as mulheres, só as mamães é que têm crianças.”
Hans: “Mas por que eu não poderia?”
Eu: “Porque Deus arranjou as coisas assim.”
Hans: “Mas por que você não tem uma? Oh, sim, você vai ter uma, sim. Espere só.”
Eu: “Eu vou ter que esperar algum tempo.”
Hans: “Mas eu pertenço a você.”
Eu: “Mas mamãe trouxe você ao mundo. Então, você pertence a mamãe e a mim.”
Hans: “Hanna pertence a mim ou a mamãe?“
Eu: “A mamãe.”
Hans: “Não, a mim. Por que não a mim e a mamãe?
Eu: “Hanna pertence a mim, mamãe, e você.”
Hans: “Está vendo?, aí está você.”’
Enquanto a criança estiver na ignorância quanto às partes genitais femininas, haverá naturalmente uma lacuna vital na sua compreensão dos assuntos sexuais.
‘No dia 24 de abril minha mulher e eu esclarecemos Hans até um certo ponto: nós lhe dissemos que as crianças crescem dentro das suas mamães, e que depois são trazidas ao mundo ao serem empurradas para fora delas, como um “lumf”, e que isso envolve muita dor.
‘De tarde saímos para a frente da casa. Havia uma melhora visível no seu estado. Ele correu atrás das carroças, e a única coisa que traiu um traço remanescente de sua ansiedade foi o fato de que ele não se aventurou para fora da vizinhança da porta da rua, não podendo ser induzido a dar nenhum passeio maior.
‘No dia 25 de abril Hans deu uma marrada no meu estômago com sua cabeça, como ele já tinha feito uma vez [ver em [1]]. Eu lhe perguntei se ele era uma cabra.
‘“Sim”, disse ele, “um carneiro”. Eu perguntei onde ele tinha visto um carneiro.

’Ele: “Em Gmunden: Fritzl tinha um.” (Fritzl tinha um cordeiro de verdade para brincar.)
Eu: “Você precisa falar-me sobre o cordeiro. O que é que ele fazia?”
Hans: “Você sabe, a Fräulein Mizzi” (uma professora da escola que morava na casa) “costumava sempre pôr Hanna em cima do cordeiro, mas assim ele não conseguia ficar em pé, e ele não podia dar marradas. Se você fosse na direção dele, ele costumava dar marradas, porque tinha chifres. Fritzl costumava levá-lo por uma corda e amarrá-lo a uma árvore. Ele sempre o amarrava a uma árvore.”
Eu: “O carneiro deu marradas em você?”
Hans: “Ele pulou para cima de mim; Fritzl me tirou de perto dele uma vez… Eu fui na direção do carneiro uma vez, e eu não sabia, e de repente ele pulou em cima de mim. Foi tão divertido - eu não fiquei assustado.”
‘Isso certamente não era verdade.
Eu: “Você gosta do papai?”
Hans: “Oh, sim.”
Eu: “Ou talvez não.”
‘Hans estava brincando com o cavalinho de brinquedo. Nesse momento o cavalo caiu, e Hans exclamou: “O cavalo caiu! Olha que barulhão ele está fazendo!”
Eu: “Você está um pouco vexado com o papai porque a mamãe gosta dele.”
Hans: “Não.”
Eu: “Então por que você sempre chora toda vez que a mamãe me dá um beijo? É porque você está com ciúmes.”
Hans: “Com ciúmes, é mesmo.”
Eu: “Você gostaria de ser o papai.”
Hans: “Oh, gostaria.”
Eu: “O que é que você gostaria de fazer se você fosse o papai?”
Hans: “E se você fosse Hans? Eu gostaria de levar você a Lainz todo domingo - não, todo dia da semana também. Se eu fosse papai eu seria sempre tão agradável e bom.”
Eu: “Mas o que é que você gostaria de fazer com mamãe?”
Hans: “Levá-la para Lainz também.”
Eu: “E o que mais?”
Hans: “Nada.”
Eu: “Então, por que é que você estava com ciúmes?”
Hans: “Não sei.”

’Eu: “Você tinha ciúmes em Gmunden também?”
Hans: “Não, em Gmunden não.” (Isso não é verdade.)
“Em Gmunden eu tinha minhas próprias coisas. Eu tinha um jardim em Gmunden e crianças também.”
Eu: “Você se lembra de como a vaca teve o bezerro?”
Hans: “Oh, sim. Ele veio numa carroça.” (Sem dúvida lhe disseram isso em Gmunden; um outro ataque à teoria da cegonha.) “E uma outra vaca o empurrou para fora do seu traseiro.” (Isso já era fruto do seu esclarecimento, que ele estava tentando harmonizar com a teoria da carroça.)
Eu: “Não é verdade que o bezerro veio numa carroça; ele veio de dentro da vaca no curral.”
‘Hans contestou isso, dizendo que tinha visto a carroça de manhã. Eu salientei para ele que provavelmente lhe tinham falado sobre o bezerro ter vindo numa carroça. No fim, ele admitiu isso, e disse: “É bem provável que Berta me tenha dito, ou não - ou talvez tenha sido o senhorio. Ele estava lá e foi de noite, de modo que é verdade, afinal de contas, o que eu lhe estava dizendo - ou eu acho que ninguém me disse; eu pensei isso para mim mesmo de noite.”
‘A menos que eu esteja enganado, o bezerro foi levado embora numa carroça; daí a confusão.
Eu: “Por que é que você não pensou que foi a cegonha que trouxe o bezerro?”
Hans: “Eu não quis pensar isso.”
Eu: “Mas você pensou que a cegonha trouxe Hanna?”
‘Hans: “De manhã” (na manhã do parto) “eu pensei assim. - Escuta, Herr Reisenbichler” (nosso senhorio) “estava lá quando o bezerro saiu da vaca?”
Eu: “Não sei. Você acha que ele estava?”
Hans: “Acho que sim… Papai, você andou notando que os cavalos têm uma coisa preta na boca?”
Eu: “Notei uma vez ou outra na rua em Gmunden.”
Eu: “Você foi muitas vezes para a cama com a mamãe em Gmunden?”
Hans: “Fui.”

’Eu: “E você costumava pensar para si mesmo que você era o papai?”
Hans: “Sim.”
Eu: “E então você sentiu medo do papai?”
Hans: “Você sabe tudo; eu não sabia nada.”
Eu: “Quando Fritzl caiu você pensou: ‘Se ao menos o papai caísse assim!’ E quando o carneiro deu uma marrada em você, você pensou: ‘Se ao menos o carneiro desse uma marrada no papai!’ Você se lembra do enterro em Gmunden?” (O primeiro enterro que Hans tinha visto. Ele freqüentemente se recorda disso, e esta é, sem dúvida, uma lembrança encobridora.)
Hans: “Sim. O que tem isso?”
Eu: “Você pensou então que era só o papai morrer e você seria o papai.”
Hans: “Sim.”
Eu: “De que carroças você ainda tem medo?”
Hans: “De todas elas.”
Eu: “Você sabe que isso não é verdade.”
Hans: “Eu não tenho medo de carruagens e parelhas ou cabriolés com um cavalo. Eu tenho medo de ônibus e carroças de bagagem, mas só quando estão carregadas, não quando estão vazias. Quando há um cavalo e a carroça está totalmente cheia, então eu tenho medo; mas quando há dois cavalos e a carroça não está totalmente cheia, então eu não tenho medo.”
Eu: “Você tem medo de ônibus porque há muita gente dentro?”
Hans: “Porque tem muita bagagem no teto.”
Eu: “Quando mamãe estava tendo Hanna, ela estava totalmente lotada, também?”
Hans: “Mamãe vai ficar completamente lotada de novo quando ela tiver outro, quando outro começar a crescer, quando outro estiver dentro dela.”
Eu: “E você gostaria disso?”
Hans: “Gostaria”.
Eu: “Você disse que não queria que mamãe tivesse outro bebê.”
Hans: “Bom, então ela não vai ficar lotada de novo. Mamãe disse que se mamãe não quisesse um bebê, Deus também não iria querer. Se a mamãe não quiser um bebê, ela não vai ter.” (Hans naturalmente perguntou ontem se havia mais algum bebê dentro da mamãe. Eu lhe disse que não, e disse que se Deus não o desejasse, nenhum bebê cresceria dentro dela.)
Hans: “Mas mamãe me disse que, se ela não quisesse, não cresceria mais nenhum, e você diz que se Deus não quiser.”
‘Então eu lhe disse que era como eu tinha dito, ao que ele observou: “Você estava lá, contudo, não estava? Você sabe melhor, com certeza.” Ele, então procedeu a um interrogatório da sua mãe, e ela reconciliou as duas afirmações, declarando que se ela não quisesse bebê, Deus também não iria querer.
Eu: “A mim parece que, de todo jeito, você deseja que a mamãe tenha um bebê.”
Hans: “Mas eu não quero que isso aconteça.”
‘Eu: “Mas você deseja isso?”
Hans: “Oh, sim, desejo.”
Eu: “Você sabe por que você deseja isso? Porque você gostaria de ser papai.”
Hans: “Sim… Como é que funciona?”
Eu: “Como é que funciona o quê?”
Hans: “Você diz que os papais não têm bebês; então, como é que funciona a minha vontade de ser papai?”
Eu: “Você gostaria de ser papai e casado com a mamãe; você gostaria de ser do meu tamanho e de ter um bigode; e você gostaria que a mamãe tivesse um bebê.”
Hans: “E, papai, quando eu for casado, só vou ter um bebê se eu quiser, quando eu for casado com a mamãe, e se eu não quiser um bebê, Deus não vai querer também, quando eu for casado.”
Eu: “Você gostaria de ser casado com a mamãe?”
‘Hans: “Oh, gostaria.”’
É fácil ver que a alegria de Hans com a sua fantasia foi atrapalhada tanto pela sua incerteza quanto ao papel desempenhado pelos pais como pelas suas dúvidas quanto à concepção das crianças estar sob seu controle.
‘Na noite do mesmo dia, enquanto Hans estava sendo posto na cama, ele me disse: “Escuta, papai, você sabe o que é que eu vou fazer agora? Agora eu vou falar com Grete até as dez horas; ela está na cama comigo. Meus filhos estão sempre na cama comigo. Você pode dizer-me por que é assim?” - Como ele já estava com muito sono, eu lhe prometi que escreveríamos isso no dia seguinte, e ele dormiu.

’Eu já tinha notado em relatos anteriores que, desde a volta de Hans de Gmunden, ele tem tido constantemente fantasias sobre “seus filhos” [por exemplo, em [1]], tem mantido conversas com eles, e assim por diante.
‘De modo que no dia 26 de abril eu lhe perguntei por que ele estava sempre pensando nos seus filhos.
Hans: “Por quê? Porque eu gostaria tanto de ter filhos; mas eu nunca quero; eu não deveria gostar de tê-los.”
Eu: “Você sempre imaginou que Berta e Olga e o resto eram seus filhos?”
Hans: “Sim, Franzl e Fritzl, e Paul também” (seus companheiros em Lainz), “e Lodi.” Este é um nome de menina inventado, o de seu filho favorito, de quem ele fala com mais freqüência - posso enfatizar aqui o fato de que a figura de Lodi não é uma invenção dos últimos dias, mas existia antes da data em que ele recebeu a última parcela de esclarecimento (24 de abril).
Eu: “Quem é Lodi? Ela está em Gmunden?”
Hans: “Não.”
Eu: “Existe uma Lodi?”
Hans: “Existe, eu a conheço.”
Eu: “Quem é ela então?”
Hans: “Eu a tive aqui.”
Eu: “Como é que ela é?”
Hans: “Como ela é? Olhos pretos, cabelos pretos… eu a encontrei uma vez com Mariedl” (em Gmunden), “quando eu estava indo para a cidade.”
‘Quando eu entrei no assunto parecia que isso era uma invenção.
Eu: “Então você pensou que era a mamãe deles?”

’Hans: “E eu era mesmo a mamãe deles.”
Eu: “O que é que você fazia com os seus filhos?”
Hans: “Eu os botava para dormir comigo, as meninas e os meninos.”
Eu: “Todo dia?”
Hans: “Ora, é claro.”
Eu: “Você conversava com eles?”
Hans: “Quando eu não conseguia botar todas as crianças na cama, eu botava algumas delas no sofá, e algumas no corredor; se ainda houvesse alguma sobrando, eu as levava para o sótão e as punha na caixa, e se houvesse mais algumas, eu as punha na outra caixa.”
Eu: “Então as caixas de bebê da cegonha estavam no sótão?”
Hans: “Estavam.”
Eu: “Quando é que você teve seus filhos? Hanna já estava viva?”
Hans: “Sim, ela já estava viva há muito tempo.”
Eu: “Mas de quem é que você acha que teve os filhos?”
Hans: “Ora, de mim.”
Eu: “Mas nessa época você não tinha a menor idéia de que as crianças vinham de alguém.”
Hans: “Eu pensei que a cegonha as tivesse trazido.” (Obviamente uma mentira e uma evasão.)
Eu: “Você teve Grete na cama com você ontem, mas você sabe muito bem que os meninos não podem ter filhos.”
Hans: “Bom, é. Mas eu acredito que eles possam, assim mesmo.”
Eu: “Como é que você chegou ao nome de Lodi? Nenhuma menina se chama assim. Lotti, talvez?”
Hans: “Oh, não, Lodi. Não sei; mas de qualquer jeito é um nome lindo.”
Eu (brincando): “Talvez você queira dizer um Schokolodi?”
Hans (prontamente): “Não, um Saffalodi,… porque eu gosto tanto de comer salsichas, e salame também.”
Eu: “Escuta, um Saffalodi não parece um ‘lumf‘?”
Hans: “Parece.”

I: “Bom, como é um ‘lumf‘?”
‘Hans: “Preto. Você sabe” (apontando para as minhas sobrancelhas e meu bigode), “como isso e como isso.”
Eu: “E que mais? Redondo como um Saffaladi?”
Hans: “Sim.”
Eu: “Quando você sentava no urinol e vinha um “lumf‘, você pensava para si mesmo que você estava tendo um bebê?”
Hans (rindo): “Pensava. Não só na Rua…, mas também aqui.”
‘Eu: “Você sabe quando os cavalos do ônibus caíram? [Ver a partir de [1]] O ônibus parecia uma caixa de bebê, e quando o cavalo preto caiu era exatamente como…”
Hans (atalhando-me): “… como ter um bebê.”
Eu: “E o que foi que você pensou quando o cavalo fez um barulhão com suas patas?”
Hans: “Oh, quando eu não quero sentar-me no urinol e preferiria brincar, então faço um barulho assim com os meus pés.” [Cf. em [1].] (Ele bateu com os pés.)
‘Esta era a razão pela qual ele estava tão interessado na questão de saber se as pessoas gostavam ou não gostavam de ter filhos.
‘Hans hoje esteve o dia inteiro brincando de carregar e descarregar caixotes; ele disse que desejaria poder ter um vagão de brinquedo e caixas desse tipo para brincar. O que mais costumava interessá-lo no pátio da Alfândega em frente era o carregamento e descarregamento das carroças. E ele costumava assustar-se mais quando uma carroça tinha sido completamente carregada e estava no ponto de partir. “Os cavalos vão cair”; costumava dizer [ver em [1]]. Costumava também chamar as portas do alpendre da Agência Central da Alfândega de “buracos” (por exemplo, primeiro buraco, segundo buraco, terceiro buraco etc.). Mas agora, em vez de “buraco”, ele diz “atrás do buraco”.
‘A ansiedade tinha desaparecido quase completamente, com a exceção de que ele gosta de permanecer na vizinhança da casa, de modo a ter uma linha de retirada no caso de se assustar. Mas ele nunca foge para casa agora, e fica na rua o tempo todo. Como sabemos, a doença começou com a sua volta em prantos quando ele estava fora, passeando; e quando ele foi obrigado a ir a um segundo passeio, só foi até a estação Hauptzollamt no Stadtbahn, de onde a nossa casa ainda pode ser vista. Na época do parto de minha mulher, ele foi, é claro, afastado dela; e a sua presente ansiedade, que o impede de deixar a vizinhança da casa, na realidade, é a necessidade dela que ele sentiu então.
‘30 de abril. Vendo Hans brincar com seus filhos imaginários de novo, eu lhe disse “Alô, seus filhos ainda estão vivos? Você sabe muito bem que um menino não pode ter filhos.”
Hans: “Eu sei. Antes eu era a mamãe deles, agora eu sou o papai deles.”
Eu: “E quem é a mamãe das crianças?”
Hans: “Ora, a mamãe, e você é o vovô delas.”
Eu: “Então você gostaria de ser do meu tamanho, e de ser casado com a mamãe, e então você gostaria que ela tivesse filhos.”
Hans: “Sim, é disso que eu gostaria, e então a minha vovó de Lainz” (minha mãe) “será a vovó deles.”’
As coisas estavam caminhando para uma conclusão satisfatória. O pequeno Édipo encontrou uma solução mais feliz do que a prescrita pelo destino. Em vez de colocar seu pai fora do caminho, concedeu-lhe a mesma felicidade que ele mesmo desejava: fez dele um avô e casou-o com a sua própria mãe também.
‘No dia 1º de maio Hans chegou para mim na hora do almoço e disse: “Sabe de uma coisa? Vamos escrever alguma coisa para o Professor.”
Eu: “Bom, e o que vai ser?”
Hans: “Esta manhã eu estava no banheiro com todos os meus filhos. Primeiro eu fiz ‘lumf‘ e fiz pipi, e eles olharam. Depois eu os pus no assento e eles fizeram pipi e ‘lumf‘, e eu limpei seus traseiros com papel. Você sabe por quê? Porque eu gostaria tanto de ter filhos; então eu faria tudo para eles - eu os levaria ao banheiro, limparia seus traseiros, e faria tudo que se faz com os filhos.”’
Depois da admissão fornecida por essa fantasia, quase não será possível discutir-se o fato de que na mente de Hans havia prazer ligado às funções excretórias.
‘De tarde ele se aventurou ao Stadtpark pela primeira vez. Como é dia 1º de maio, não há dúvida de que havia menos tráfego do que o normal, mas ainda assim o suficiente para tê-lo assustado até agora. Ele estava muito orgulhoso do seu feito, e depois do chá fui obrigado a ir com ele para o Stadtpark mais uma vez. No caminho encontramos um ônibus; Hans apontou-o para mim dizendo: “Olha! uma carroça de caixa de cegonha!” Se ele for comigo para o Stadtpark de novo amanhã, como planejamos, poderemos realmente encarar a sua doença como curada.
‘No dia 2 de maio Hans veio a mim de manhã. “Escuta”, disse ele, “eu pensei uma coisa hoje.” Primeiramente ele tinha esquecido o que era; mais tarde, porém, ele contou o que se segue, mas com sinais de considerável resistência: “O bombeiro veio; e primeiro ele retirou o meu traseiro com um par de pinças, e depois me deu outro, e depois fez o mesmo com o meu pipi. Ele disse: ‘Deixe-me ver o seu traseiro!’ Tive que dar uma volta, e ele o levou; depois disse: ‘Deixe-me ver o seu pipi!’”’
O pai de Hans compreendeu a natureza dessa fantasia apaixonada, e não hesitou um momento quanto à única interpretação que ela poderia admitir.
Eu: “Ele te deu um pipi maior e um traseiro maior.”
Hans: “É.”
Eu: “Como os do papai; porque você gostaria de ser o papai.”
Hans: “Sim, e eu gostaria de ter um bigode como o seu e cabelos como os seus.” (Ele apontou para os cabelos no meu peito.)
‘À luz desse fato, podemos rever a interpretação da fantasia anterior de Hans quanto ao conteúdo de que o bombeiro tinha vindo e tinha desaparafusado a banheira e golpeado o seu estômago com uma broca [ver em [1]]. A banheira grande significava um “traseiro”, a broca ou chave de parafuso era (como foi explicado na época) um pipi. As duas fantasias são idênticas. Além disso, uma nova luz foi lançada sobre o medo de Hans da banheira grande. (Isto, a propósito, já diminuiu.) Ele não gosta de seu “traseiro” ser pequeno demais para a banheira grande.’
No curso dos próximos dias a mãe de Hans escreveu-me mais de uma vez para expressar sua alegria pelo restabelecimento do menino.

Uma semana depois chegou um pós-escrito do pai de Hans.
‘Meu caro Professor, gostaria de fazer os seguintes acréscimos ao caso clínico de Hans:
‘(1) A melhora depois que ele recebeu sua primeira parcela de esclarecimento não foi tão completa como eu a representei [ver em [1]]. É verdade que Hans deu passeios, mas só sob compulsão e num estado de grande ansiedade. Uma vez ele foi comigo até a estação de Hauptzollamt, de onde nossa casa ainda pode ser vista, mas não pôde ser induzido a ir mais longe.
‘(2) Com relação a “geléia de framboesa” e “uma espingarda para atirar” [ver em [2]]. Damos geléia de framboesa a Hans quando ele está constipado. Ele também confunde freqüentemente as palavras “atirar” e “cagar”.
‘(3) Hans tinha mais ou menos quatro anos quando foi transferido do nosso quarto para um quarto só seu.
‘(4) Ainda persiste um traço do seu distúrbio, mesmo que não mais sob a forma de medo, mas só sob a do instinto normal de fazer perguntas. As perguntas dizem respeito principalmente a saber de que são feitas as coisas (bondes, máquinas etc.), quem faz as coisas etc. A maior parte das suas perguntas é caracterizada pelo fato de que Hans as faz apesar de ele mesmo já tê-las respondido. Ele só quer ter certeza. Uma vez, quando me tinha cansado ao máximo com suas perguntas, e eu lhe disse: “Você acha que eu posso responder a toda pergunta que você faz?”, ele respondeu: “Bom, eu pensei que, como você sabia aquilo sobre o cavalo, você saberia isso também.”
‘(5) Hans só refere a sua doença agora como um assunto de história antiga - “na época em que eu tive a minha bobagem”.
‘(6) Um resíduo não resolvido permanece por trás, pois Hans ainda quebra a cabeça para descobrir o que um pai tem a ver com seu filho, já que é a mãe que o traz ao mundo. Isso pode ser visto pelas suas perguntas, como, por exemplo: “Eu pertenço a você também, não pertenço?” (querendo dizer não só à sua mãe). Não está claro para ele de que maneira ele pertence a mim. Por outro lado, não tenho nenhuma evidência direta de ele por acaso ter ouvido, como o senhor supõe, seus pais tendo relações sexuais.

’(7) Ao apresentar o caso é preciso que se insista sobre a violência da sua ansiedade. De outra forma, poderia ser dito que o menino teria saído para passeios bem cedo, se tivesse recebido uma boa surra.’

Concluindo, deixe-me acrescentar estas palavras. Com a última fantasia de Hans, a ansiedade que foi provocada pelo seu complexo de castração também foi superada, e suas dolorosas expectativas receberam uma transformação mais feliz. Sim, o doutor [ver em [1]] (o bombeiro) veio, ele de fato levou seu pênis - mas apenas para dar-lhe um maior em troca. Quanto ao resto, nosso jovem investigador simplesmente chegou um pouco cedo à descoberta de que todo o conhecimento é um monte de retalhos, e que cada passo à frente deixa atrás um resíduo não resolvido.

DISCUSSÃO

Devo agora proceder ao exame dessa observação do desenvolvimento e resolução de uma fobia em um menino de menos de cinco anos de idade, e vou ter que fazer isso de três pontos de vista. Em primeiro lugar, devo considerar até que ponto o exame dessa observação apóia as afirmações que fiz nos meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d). Em segundo lugar, devo considerar em que medida ele pode contribuir para nossa compreensão dessa freqüente forma de distúrbio. E em terceiro lugar, devo considerar se pode ser feito de modo a projetar alguma luz sobre a vida mental das crianças ou a fornecer alguma crítica dos nossos objetivos educacionais.
(I)
Minha impressão é de que o quadro da vida sexual de uma criança apresentado nessa observação do pequeno Hans está muito de acordo com o relato que forneci (baseando meus pontos de vista em exames psicanalíticos de adultos) nos meus Três Ensaios. Mas antes de entrar nos detalhes dessa concordância, devo tratar de duas objeções que serão levantadas contra o fato de eu fazer uso da presente análise para esse fim. A primeira objeção é quanto ao fato de que Hans não era uma criança normal, mas (como os eventos - a própria doença, de fato - mostraram) tinha uma predisposição para a neurose, e era um jovem “degenerado”; seria ilegítimo, portanto, aplicar-se a outras crianças normais conclusões que talvez pudessem ser verdadeiras em relação a ele. Devo adiar a consideração dessa objeção, de vez que ela só limita o valor da observação, e não o anula completamente. De acordo com a segunda e menos comprometedora objeção, uma análise de uma criança conduzida por seu pai, que foi instilado ao trabalho com meus pontos de vista teóricos e infectado com meus preconceitos, deve ser inteiramente desprovida de qualquer valor objetivo. Uma criança, dirão, é necessariamente muito sugestionável, e muito mais por seu próprio pai do que talvez por qualquer outra pessoa; ela permitirá que qualquer coisa lhe seja forçada, por causa da gratidão a seu pai por lhe dar tanta atenção; nenhuma das suas afirmações pode ter qualquer valor de evidência, e tudo o que ela produz sob a forma de associações, fantasias e sonhos tomará, naturalmente, a direção para a qual está sendo pressionada por todos os meios possíveis. Mais uma vez, em suma, a coisa toda é simplesmente `sugestão’ - a única diferença é que, no caso de uma criança, ela pode ser desmascarada muito mais facilmente do que no caso de um adulto.
Coisa singular. Lembro-me, quando comecei a me intrometer no conflito de opiniões científicas há vinte e dois anos atrás, de com que zombaria a geração mais velha de neurologistas e psiquiatras dessa época recebeu as afirmações sobre a sugestão e seus efeitos. Desde então a situação mudou fundamentalmente. A aversão original converteu-se numa aceitação por demais pronta; e isso aconteceu não só como conseqüência da impressão que o trabalho de Liébeault e Bernheim e de seus alunos não podia deixar de criar no curso dessas duas décadas, mas também porque desde então se descobriu que grande economia de pensamento pode ser feita com o uso da chamada `sugestão’. Ninguém sabe e ninguém se importa com o que seja sugestão, de onde ela vem, ou quando surge - basta que tudo de estranho na região da psicologia seja rotulado de `sugestão’. Não compartilho do ponto de vista, que está em voga atualmente, de que as afirmações feitas pelas crianças são invariavelmente arbitrárias e indignas de confiança. O arbitrário não tem existência na vida mental. A não-confiabilidade das afirmações das crianças é devida à predominância da sua imaginação, exatamente como a não-confiabilidade das afirmações das pessoas crescidas é devida à predominância dos seus preconceitos. Quanto ao resto, mesmo as crianças não mentem sem um motivo, e no todo são mais inclinadas para um amor da verdade do que os mais velhos. Se fôssemos rejeitar a raiz e os ramos das declarações do pequeno Hans certamente deveríamos estar-lhe fazendo uma grave injustiça. Ao contrário, podemos distinguir claramente as ocasiões em que ele estava falsificando os fatos ou guardando-os sob a força compelidora de uma resistência, as ocasiões em que, estando indeciso, concordava com seu pai (de modo que aquilo que ele dissesse não fosse tomado como evidência), e as ocasiões em que, livre de qualquer pressão, ele explodia numa torrente de informação sobre o que estava realmente acontecendo dentro dele e sobre coisas que até então ninguém sabia, a não ser ele mesmo. As declarações feitas por adultos não oferecem maior certeza. É um fato lamentável que nenhum relatório de uma psicanálise possa reproduzir as impressões recebidas pelo analista enquanto ele a conduz, e que um sentido final de convicção nunca possa ser obtido pela leitura sobre ela, mas somente experimentando-a diretamente. Contudo, essa incapacidade aplica-se em igual grau a análises de adultos.
O pequeno Hans é descrito por seus pais como uma criança alegre, franca, e assim ele deve ter sido, considerando-se a educação dada por seus pais, que consistia essencialmente na omissão dos nossos costumeiros pecados educacionais. Enquanto podia levar avante suas pesquisas num estado de feliz naïvété, sem nenhuma suspeita dos conflitos que estavam para surgir a partir destas, ele não escondeu nada; e as observações feitas durante o período anterior à fobia não admitem dúvida ou reserva. Foi com a eclosão da doença e durante a análise que começaram a aparecer as discrepâncias entre o que ele dizia e o que ele pensava; isso acontecia em parte porque o material inconsciente, que ele era incapaz de controlar, de repente se estava forçando sobre ele, e em parte porque o conteúdo de seus pensamentos provocava reservas em relação às suas relações com seus pais. Minha opinião imparcial é que essas dificuldades não resultaram maiores do que em muitas análises de adultos.
É verdade que durante a análise teve que ser contada a Hans muita coisa que ele mesmo não podia dizer, ele teve de ser apresentado a pensamentos que até então ele não tinha mostrado sinais de possuir, e sua atenção teve de ser voltada para a direção da qual seu pai estava esperando que surgisse algo. Isso diminui o valor de evidência da análise, mas o processo é o mesmo em todos os casos. Pois uma psicanálise não é uma investigação científica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas simplesmente alterar alguma coisa. Em uma psicanálise o médico sempre dá a seu paciente (às vezes em maior e às vezes em menor escala) as idéias conscientes antecipadas, com a ajuda das quais ele se coloca em posição de reconhecer e de compreender o material inconsciente. Há alguns pacientes que necessitam mais de tal assistência e alguns que necessitam menos, mas não há nenhum que passe sem alguma assistência. Leves distúrbios podem, às vezes, ser levados a um fim pelos esforços não auxiliados do sujeito, mas nunca uma neurose - uma coisa que se colocou contra o ego como um elemento estranho a ele. Para obter o melhor de tal elemento, outra pessoa precisa ser trazida para dentro, e na medida em que essa pessoa puder auxiliar, a neurose será curável. Se está na própria natureza de qualquer neurose afastar-se da `outra pessoa’ - e isso parece ser uma das características dos estados agrupados sob o nome de demência precoce -, então, por esta razão, tal estado será incurável por quaisquer esforços de nossa parte. É verdade que uma criança, devido ao pequeno desenvolvimento dos seus sistemas intelectuais, requer uma assistência especialmente enérgica. Mas, afinal, a informação que o médico dá ao seu paciente deriva, por sua vez, de experiência analítica; e, de fato, isso é suficientemente convincente se, à custa dessa intervenção do médico, ficamos habilitados para descobrir a estrutura do material patogênico e, simultaneamente, para dissipá-lo.
Contudo, mesmo durante a análise, o pequeno paciente deu sinal de independência suficiente para colocá-lo acima da acusação de `sugestão’. Como todas as outras crianças, ele aplicava suas teorias sexuais infantis ao material à sua frente, sem ter recebido qualquer encorajamento para agir assim. Essas teorias estão extremamente distantes da mente adulta. Na verdade, nesse caso eu realmente deixei de avisar ao pai de Hans que o menino seria impelido a aproximar-se do tema do parto por meio do complexo excretório. Essa negligência da minha parte, apesar de ter levado a uma fase obscura na análise, foi, todavia, o meio de produzir uma boa parte de evidência da legitimidade e da independência dos processos mentais de Hans. Ele se tornou de repente, ocupado com `lumf‘: [ver a partir de [1].], sem que seu pai, que se supunha estar praticando sugestão sobre ele, tivesse a menor idéia de como ele tinha chegado a esse tema, ou o que iria sair daí. Seu pai também não pode ser sobrecarregado com nenhuma responsabilidade pela produção das duas fantasias do bombeiro [ver em [1] e [2]], que surgiram com o `complexo de castração’ de Hans, adquirido muito cedo. É preciso confessar aqui que, fora o interesse teórico, ocultei inteiramente do pai de Hans minha expectativa de que acabaria havendo um pouco de tal conexão, de modo a não interferir no valor de uma parte de evidência que não vem muitas vezes à compreensão da pessoa.
Se eu entrasse mais profundamente nos detalhes da análise, poderia mostrar muito mais evidência da independência de Hans quanto à `sugestão’, mas devo interromper a discussão dessa objeção preliminar neste ponto. Estou ciente de que, mesmo com esta análise, não vou conseguir convencer ninguém que não se deixe ser convencido, e vou continuar com minha discussão do caso para o benefício daqueles leitores que já estão convencidos da realidade objetiva do material patogênico inconsciente. E faço isso com a agradável certeza de que o número de tais leitores está constantemente crescendo.
O primeiro traço no pequeno Hans que pode ser encarado como parte da sua vida sexual é um interesse particularmente vivo por seu `pipi’ - um órgão cujo nome deriva de uma de suas duas funções que, não sendo a menos importante das duas, não pode ser excluída dos cuidados com a criança. Esse interesse despertou nele o espírito de inquérito, e ele assim descobriu que a presença ou ausência de um pipi tornava possível diferenciar objetos animados de inanimados [ver em [1]]. Ele presumiu que todos os objetos animados eram como ele, e possuíam esse importante órgão corporal; ele observou que este estava presente nos animais maiores, suspeitou que era assim também no seus pais, e não foi dissuadido pela evidência dos seus próprios olhos ao autenticar o fato na sua irmã recém-nascida [ver em [2]]. Alguém poderia quase dizer que teria sido um golpe por demais dilacerante para a sua `Weltanschauung‘ se ele tivesse tido que se decidir a renunciar à presença desse órgão num ser semelhante a ele; teria sido como se este tivesse sido arrancado dele. Foi provavelmente por causa disso que uma ameaça de sua mãe [ver em [3]], que se referia precisamente à perda do seu pipi, foi tão precipitadamente banida dos seus pensamentos e só conseguiu tornar seus efeitos aparentes num período posterior. O motivo para a intervenção da sua mãe tinha sido que ele costumava gostar de proporcionar a si mesmo sentimentos de prazer ao tocar o seu membro: o menininho tinha começado a praticar a mais comum - e mais normal - forma de atividade sexual auto-erótica.
O prazer que uma pessoa sente no seu próprio órgão sexual pode tornar-se associado com a escopofilia (ou prazer sexual em olhar) nas suas formas ativa e passiva, de uma maneira que tem sido descrita com muita aptidão por Alfred Adler (1908) como `confluência de instintos’. Assim, o pequeno Hans começou a tentar dar uma olhada nos pipis dos outros; sua curiosidade sexual desenvolveu-se, e ao mesmo tempo ele gostava de exibir seu próprio pipi. Um dos seus sonhos, datando do início do seu período de repressão, expressava o desejo de que uma das suas amiguinhas o assistisse ao fazer pipi, isto é, que ela compartilhasse do espetáculo [ver em [1]]. O sonho mostra, portanto, que até então esse desejo tinha subsistido sem ter sido reprimido, e informação posterior confirmou o fato de que ele tinha o hábito de gratificá-lo. O lado ativo da sua escopofilia logo se associou nele com um tema definido. Ele expressou repetidamente, tanto para seu pai como para sua mãe, seu pesar por nunca ter visto seus pipis; e foi provavelmente a necessidade de fazer uma comparação que o impeliu a fazer isso. O ego é sempre o padrão pelo qual a pessoa mede o mundo externo; a pessoa aprende a compreendê-lo por meio de uma comparação constante consigo mesma. Hans tinha observado que os animais grandes tinham pipis que eram correspondentemente maiores que o seu; por conseguinte suspeitou de que o mesmo procedia quanto a seus pais, e ficou ansioso para ter certeza disso. Sua mãe, pensou ele, certamente tem um pipi `como um cavalo’. Ele estava, então, preparado com a reconfortante reflexão de que seu pipi cresceria com ele. Era como se o desejo da criança de ser maior tivesse sido concentrado nos seus genitais.
Assim, na constituição sexual do pequeno Hans a zona genital foi, desde o começo, aquela dentre as suas zonas erógenas que lhe proporcionou o mais intenso prazer. O único outro prazer semelhante do qual ele deu sinal foi o prazer excretório, o prazer ligado aos orifícios através dos quais a micção e a evacuação dos intestinos são efetuadas. Na sua fantasia final de prazer perfeito, com a qual a sua doença foi superada, ele imaginou que tinha filhos, que os levava ao banheiro, que os fazia urinar, que limpava seus traseiros - em suma, fazia com eles `tudo o que se pode fazer com os filhos’ [ver em [1]]; parece, portanto, impossível evitar a suposição de que, durante o período em que ele mesmo era tratado como um bebê, esses mesmos atos tivessem sido a fonte de sensações de prazer para ele. Ele tinha obtido esse prazer das suas zonas erógenas com a ajuda da pessoa que cuidava dele - sua mãe, na realidade, e assim o prazer já apontava o caminho para a escolha objetal. Mas é possível que numa data ainda mais remota ele tenha tido o hábito de proporcionar a si mesmo esse prazer auto-eroticamente - que ele tenha sido dessas crianças que gostam de reter suas fezes até que possam tirar uma sensação voluptuosa da sua evacuação. Eu só digo que isso é possível, porque o assunto não ficou esclarecido na análise; o `fazer um barulhão com as pernas’ (dando pontapés), de que ele tinha tanto medo mais tarde, aponta essa direção. Mas de qualquer maneira essas fontes de prazer não tiveram qualquer importância particularmente impressionante com Hans, como elas têm tão freqüentemente com outras crianças. Ele cedo se tornou limpo nos seus hábitos, e nem molhar a cama ou a incontinência diurna desempenharam qualquer papel durante seus primeiros anos; não foi observado nele nenhum traço de qualquer inclinação a brincar com seu excremento, propensão que é tão repulsiva em adultos, e que reaparece no término de processos de involução física.
Nessa junção é bom enfatizar logo o fato de que durante a sua fobia havia uma manifesta repressão desses dois componentes bem desenvolvidos da sua atividade sexual. Ele tinha vergonha de urinar na frente de outras pessoas, acusava-se de colocar o dedo no seu pipi, fazia esforços para parar de se masturbar, e mostrava sinais de nojo diante de `lumf‘ e `pipi’, e de tudo o que lhe lembrasse estes. Na sua fantasia de tomar conta dos seus filhos, ele desfez essa última repressão.
Uma constituição sexual como a do pequeno Hans não parece encerrar uma predisposição para o desenvolvimento nem de perversões, nem de seu negativo (vamos limitar-nos a uma consideração de histeria). Até onde vai minha experiência (e ainda há uma necessidade real de se falar com cuidado nesse ponto), a constituição inata dos histéricos - que isso é procedente também em relação a pervertidos é quase evidente em si mesmo - é marcada pelo fato de a zona genital ser relativamente menos proeminente do que as outras zonas erógenas. Mas precisamos excetuar expressamente dessa regra uma `aberração’ especial da vida sexual. Naqueles que mais tarde se tornam homossexuais encontramos a mesma predominância na influência da zona genital (e especialmente do pênis) que nas pessoas normais. Na realidade é a alta estima sentida pelo homossexual pelo órgão masculino que decide o seu destino. Na sua infância ele escolhe mulheres como seu objeto sexual, enquanto presume que elas também possuem o que, a seus olhos, é uma parte indispensável do corpo; quando ele se convence de que as mulheres o decepcionaram nesse particular, elas deixam de ser aceitáveis para ele como objeto sexual. Ele não pode abrir mão de um pênis em qualquer pessoa que deva atraí-lo para o ato sexual; e se as circunstâncias forem favoráveis, ele fixará sua libido sobre a `mulher com um pênis’, um jovem de aparência feminina. Os homossexuais, então, são pessoas que, devido à importância erógena dos seus próprios genitais, não podem passar sem uma forma semelhante no seu objeto sexual. No curso do desenvolvimento do auto-erotismo para o amor objetal, eles permaneceram fixados num ponto entre os dois - um ponto que está mais perto do auto-erotismo.
Não há absolutamente qualquer justificativa para distinguir um instinto homossexual especial. O que constitui um homossexual é uma peculiaridade não na sua vida instintual, mas na sua escolha de um objeto. Deixem-me lembrar o que eu disse nos meus Três Ensaios quanto ao fato de que erradamente imaginamos a conexão entre instinto e objeto na vida sexual como sendo mais íntima do que realmente é. Um homossexual pode ter instintos normais, mas é incapaz de separá-los de uma classe de objetos definida por um determinante particular. E na sua infância, já que nesse período esse determinante é considerado como um fato de aplicação universal, ele é capaz de se comportar como o pequeno Hans, que mostrou sua afeição por menininhos e menininhas indiscriminadamente, e uma vez descreveu seu amigo Fritzl como `a menina de quem ele gostava mais’ [ver em [1]]. Hans era um homossexual (como todas as crianças podem muito bem ser), devido ao fato, que precisa ser sempre mantido em mente, de que ele só estava informado quanto a um tipo de órgão genital - um órgão genital como o seu.
No seu desenvolvimento subseqüente, contudo, não foi para a homossexualidade que o nosso jovem libertino prosseguiu, mas para uma masculinidade enérgica, com traços de poligamia; também soube como variar seu comportamento, com seus objetos femininos variados - audaciosamente agressivo num caso, lânguido e acanhado em outro. Sua afeição passou de sua mãe para outros objetos de amor, mas, numa época em que havia uma escassez destes, suas afeição voltou a ela, só para desabar numa neurose. Só depois que isso aconteceu é que se tornou evidente a que grau de intensidade seu amor por sua mãe se tinha desenvolvido, e por que vicissitudes tinha passado. O objetivo sexual que ele perseguia com suas companheiras meninas, o de dormir com elas, tinha-se originado com relação à sua mãe. Foi expresso em palavras que poderiam ser conservadas na maturidade, embora trouxessem então uma conotação mais rica. O menino tinha descoberto o caminho para o amor objetal da maneira usual, pelo cuidado que tinha recebido quando era bebê; e um novo prazer tinha, agora, se tornado o mais importante para ele - o de dormir ao lado de sua mãe. Eu gostaria de enfatizar a importância do prazer proveniente do contato cutâneo como um componente nesse novo objetivo de Hans, que, de acordo com a nomenclatura (artificial em minha opinião) de Moll, teria que ser descrito como a satisfação do instinto de contrectação. [Moll (1898). Cf. ver em [1], 1972.]
Na sua atitude em relação a seu pai e sua mãe Hans confirma da maneira mais concreta e sem compromisso o que eu tinha dito na minha A Interpretação de Sonhos (1900a, na Seção D () do Capítulo V; a partir de [1], 1972] com respeito às relações sexuais de uma criança com seus pais. Hans era realmente um pequeno Édipo que queria ter seu pai `fora do caminho’, queria livrar-se dele, para que pudesse ficar sozinho com sua linda mãe e dormir com ela. Esse desejo tinha-se originado durante suas férias de verão, quando a presença e a ausência alternativa de seu pai tinha atraído a atenção de Hans para a condição da qual dependia a intimidade com sua mãe, que ele desejava tanto. Nessa época a forma tomada pelo desejo tinha sido simplesmente que seu pai devia `ir embora’; num estádio posterior tornou-se possível para seu medo de ser mordido por um cavalo branco ligar-se diretamente a essa forma do desejo, devido a uma impressão casual que ele recebeu no momento da partida de outra pessoa. Mas, subseqüentemente (provavelmente só depois que eles se tinham mudado para Viena, onde não devia mais contar com as ausências de seu pai), o desejo tomou a forma de que seu pai devia ficar permanentemente longe - que ele devia estar `morto’. O medo que se originou desse desejo de morte contra seu pai, e que portanto podemos dizer que teve um motivo normal, formou o obstáculo principal à análise, até que foi removido durante a conversa no meu consultório [ver em [1]].
Mas Hans não era, de modo algum, um mau caráter; não era nem dessas crianças que, na sua idade, ainda dão livre curso para a propensão à crueldade e à violência, o que é um constituinte da natureza humana. Ao contrário, ele tinha uma disposição incomumente humana e afetuosa; seu pai relatou que a transformação das tendências agressivas em sentimentos de piedade ocorreram muito cedo nele. Muito antes da fobia ele tinhaficado inquieto quando viu os cavalos num carrossel serem batidos; e nunca ficava insensível se alguém chorasse na sua presença. Num estádio da análise, uma parte de sadismo suprimido apareceu num contexto particular: mas era sadismo suprimido, e teremos que descobrir agora, pelo contexto, o que representava e o que queria substituir. E Hans amava profundamente seu pai, contra quem ele nutria esses desejos de morte; enquanto seu intelecto objetava a tal contradição, ele não podia deixar de demonstrar o fato da existência desta, batendo no seu pai e logo depois beijando o lugar em que ele tinha batido [ver em [1].]. Nós mesmos, também, precisamos ter cuidado para não fazer de tal contradição uma dificuldade. A vida emocional do homem é, em geral, feita de pares de contrários como estes. De fato, se não fosse assim, as repressões e as neuroses talvez nunca ocorressem. No adulto esses pares de emoções contrárias não se tornam, via de regra, simultaneamente conscientes, exceto nos clímaxes de amor apaixonado; em outras ocasiões eles, em geral, continuam suprimindo-se uns aos outros até que um deles consiga manter o outro completamente fora de vista. Mas nas crianças eles podem existir pacificamente lado a lado, por um tempo bem considerável.
A influência mais importante sobre o curso do desenvolvimento psicossexual de Hans foi o nascimento de uma irmãzinha, quando ele estava com três anos e meio. Esse evento acentuou as suas relações com seus pais e lhe deu alguns problemas insolúveis em que pensar; mais tarde, enquanto observava a maneira pela qual o bebê era cuidado, os traços de memória das suas próprias experiências mais remotas de prazer foram reavivados nele. Essa influência é também uma influência típica; em um número inesperadamente grande de históricos de vida, tanto normais quanto patológicos, vemo-nos obrigados a tomar como nosso ponto de partida uma explosão de prazer sexual e de curiosidade sexual ligada, como esta, ao nascimento da criança seguinte. O comportamento de Hans em relação à nova chegada foi exatamente o que eu tinha descrito em A Interpretação de Sonhos [1900a, na Seção D () do Capítulo V; a partir de [1], 1972]. Na sua febre, poucos dias mais tarde, deixou escapar quão pouco gostava do acréscimo à família [ver em [2]]. A afeição por sua irmã podia vir mais tarde, mas sua primeira atitude foi de hostilidade. Dessa época em diante o medo de que ainda pudesse chegar outro bebê encontrou lugar entre os seus pensamentos conscientes. Na neurose, a sua hostilidade, já suprimida, foi representada por um medo especial - um medo do banho [ver em [1]]. Na análise ele deu uma expressão indisfarçada do seu desejo de morte contra sua irmã, e não se contentou com alusões que precisavam ser suplementadas por seu pai. Sua consciência mais íntima não considerava esse desejo tão vil como o desejo análogo contra seu pai; está claro, porém, que no seu inconsciente ele tratava ambas as pessoas da mesma maneira, porque ambas afastavam sua mamãe dele, e interferiam em seu estar só com ela.
Além do mais, esse evento e os sentimentos que foram reavivados por ele deram uma nova direção para seus desejos. Na sua triunfante fantasia final [ver em [1]], ele somou todos os seus desejos eróticos, tanto os derivados da sua fase auto-erótica quanto os ligados ao seu amor objetal. Nessa fantasia ele estava casado com sua linda mãe e tinha inúmeros filhos, de quem ele podia cuidar à sua própria maneira.
(II)
Um dia, quando Hans estava na rua, foi acometido de um ataque de ansiedade. Não podia, contudo, dizer de que é que tinha medo; mas logo no início desse estado de ansiedade deixou escapar para seu pai o motivo para estar doente, o ganho proveniente da doença. Queria ficar com sua mãe e acariciá-la; sua lembrança de que ele também tinha ficado separado dela na época do nascimento do bebê também pode ter contribuído, como sugere seu pai [ver em [1]], para seu anseio. Logo se tornou evidente que sua ansiedade não era mais reconversível em anseio, ele tinha medo até mesmo quando sua mãe ia com ele. Nesse ínterim apareceram indicações sobre aquilo a que sua libido (agora transformada em ansiedade) se tinha ligado. Ele deu expressão ao medo bastante específico de que um cavalo branco o mordesse.
Os distúrbios desse tipo são chamados de `fobias’, e poderíamos classificar o caso de Hans como um agorafobia, se não fosse pelo fato de que uma característica dessa doença é que a locomoção da qual o paciente é, de outra forma, incapaz, pode ser facilmente efetuada quando ele está acompanhado por uma pessoa especialmente escolhida - no último recurso, pelo médico. A fobia de Hans não preenchia essa condição; logo deixou de ter qualquer relação com a questão da locomoção e se tornou cada vez mais claramente concentrada sobre cavalos. Nos primeiros dias da sua doença, quando a ansiedade estava no seu mais alto grau, ele expressou um medo de que `o cavalo entrasse no quarto’ [ver em [1]], e foi isso que tanto me ajudou a compreender sua condição.
No sistema classificatório das neuroses não foi, até agora, atribuída uma posição definida para as `fobias’. Parece certo que elas só devam ser encaradas como síndromes, que podem formar parte de várias neuroses e que não precisamos classificá-las como um processo patológico independente. Para fobias da espécie a que pertence a do pequeno Hans, e que são, na realidade, as mais comuns, o nome `histeria de angústia’ não me parece impróprio; sugeri o termo para o Dr. W. Stekel, quando ele estava empreendendo uma descrição dos estados de ansiedade neuróticos; e espero que passe para uso geral. O termo encontra sua justificação na semelhança entre a estrutura psicológica dessas fobias e a da histeria - uma semelhança que é completa, exceto em um único ponto. Esse ponto, todavia, é um ponto decisivo e bem adaptado para finalidades de diferenciação. Na histeria de angústia, a libido, que tinha sido libertada do material patogênico pela repressão, não é convertida (isto é, desviada da esfera mental para uma inervação somática), mas é posta em liberdade na forma de ansiedade. Nos casos clínicos com os quais nos defrontamos, essa `histeria de angústia’ pode estar combinada em alguma proporção com a `histeria de conversão’. Existem casos de pura histeria de conversão sem nenhum traço de ansiedade, assim como há casos de simples histeria de angústia que exibem sentimentos de ansiedade e de fobias, mas não têm mistura de conversão. O caso do pequeno Hans é da última espécie.
As histerias de angústia são os distúrbios psiconeuróticos mais comuns. Mas, antes de tudo, são as que aparecem mais cedo na vida; são as neuroses da infância par excellence. Quando uma mãe usa frases como os `nervos’ do seu filho estão num mau estado, podemos ter certeza de que em nove entre dez casos a criança está sofrendo de alguma espécie de ansiedade ou de muitas espécies ao mesmo tempo. Infelizmente o mecanismo mais delicado desses distúrbios altamente significativos não foi ainda suficientemente estudado. Ainda não foi estabelecido se a histeria de angústia é determinada, em contraste com a histeria de conversão e outras neuroses, unicamente por fatores constitucionais ou unicamente por experiências acidentais, ou por que combinação dos dois. A mim parece que de todos os distúrbios neuróticos este é o menos dependente de uma disposição constitucional especial e é, conseqüentemente, o mais facilmente adquirido em qualquer época da vida.
Uma característica essencial das histerias de angústia é muito facilmente apontada. Uma histeria de angústia tende a desenvolver-se mais e mais para uma `fobia’. No final o paciente pode ter-se livrado de toda a sua ansiedade, mas somente ao preço de sujeitar-se a todos os tipos de inibições e restrições. Desde o começo, na histeria de angústia, a mente está constantemente trabalhando no sentido de ligar psiquicamente, mais uma vez, a ansiedade que tinha se liberado; mas esse trabalho não pode nem efetuar uma retransformação da ansiedade em libido, nem estabelecer qualquer contato com os complexos que foram a fonte da libido. Nada lhe resta, a não ser cortar o acesso a todo possível motivo que possa levar ao desenvolvimento de ansiedade, erigindo barreiras mentais da natureza de precauções, inibições ou proibições; e são essas estruturas protetoras que aparecem para nós sob a forma de fobias e que constituem aos nossos olhos a essência da doença.
Pode-se dizer que até agora o tratamento da histeria de angústia tem sido um tratamento puramente negativo. A experiência demonstrou que é impossível efetuar-se a cura de uma fobia (e até mesmo em certas circunstâncias, perigoso tentar fazê-lo) por meios violentos, isto é, primeiro privando-se o paciente de suas defesas, e depois colocando-o numa situação da qual ele não possa escapar da liberação da sua ansiedade. Conseqüentemente, nada pode ser feito, a não ser deixar o paciente procurar por proteção onde quer que ele ache que pode encontrá-la; e ele é simplesmente encarado com um desprezo, que não é de muita ajuda, pela sua `incompreensível covardia’.
Os pais do pequeno Hans estavam determinados, desde o início da sua doença, a que não era para se rir dele, nem para tiranizá-lo, mas que se precisava obter acesso aos seus desejos reprimidos por meio da psicanálise. Os sofrimentos extraordinários suportados pelo pai de Hans foram recompensados pelo sucesso, e os seus relatos vão-nos dar uma oportunidade de penetrar no sistema desse tipo de fobia e de acompanhar o curso de sua análise.
Não acho improvável que o caráter extensivo e detalhado da análise a tenha tornado um tanto obscura para o leitor. Vou, portanto, começar por dar um breve resumo dela, no qual omitirei todas as saídas laterais que distraem e atrairei a atenção para os resultados, à medida que vinham à luz, um atrás do outro.
A primeira coisa que aprendemos é que a eclosão do estado de ansiedade não foi, de modo algum, tão repentina como parecia à primeira vista. Uns dias antes o menino tinha acordado de um sonho de ansiedade, cujo conteúdo era que sua mãe tinha ido embora e que agora ele não tinha mãe para fazer carinho [ver em [1]]. Esse sonho, por si só, aponta para a presença de um processo repressivo de intensidade ominosa. Não podemos explicá-lo, como podemos explicar tantos outros sonhos de ansiedade, supondo que a criança tenha sentido nesse sonho a ansiedade surgindo de alguma causa somática e tenha feito uso da ansiedade com a finalidade de realizar um desejo inconsciente que, de outra forma, teria sido profundamente reprimido. Precisamos encará-lo mais como um sonho genuíno de punição e repressão, e, além disso, como um sonho que falhou na sua função, já que a criança acordou do seu sono num estado de ansiedade. Podemos facilmente reconstruir o que, de fato, ocorreu no inconsciente. A criança sonhou trocando carinhos com sua mãe e dormindo com ela, mas todo o prazer foi transformado em ansiedade, e todo o conteúdo ideativo, no seu oposto. A repressão derrotou a finalidade do mecanismo de sonhar.
Mas os primórdios dessa situação psicológica vão ainda mais longe. Durante o verão precedente Hans tinha tido estados de espírito semelhantes de anseio e apreensão, nos quais tinha dito coisas semelhantes; e nessa época eles lhe tinham assegurado a vantagem de ser levado por sua mãe para a cama dela. Podemos presumir que, desde então, Hans tenha ficado num estado de excitação sexual intensificada, cujo objeto era sua mãe. A intensidade dessa excitação foi mostrada por suas duas tentativas [ver em [1] e [2]] de seduzir sua mãe (a segunda das quais ocorreu imediatamente antes da eclosão da sua ansiedade); e ele achou um canal de descarga incidental para isso, masturbando-se toda noite e, dessa forma, obtendo gratificação. Se a súbita transmutação da sua excitação em ansiedade teve lugar espontaneamente, ou como resultado da rejeição de sua mãe aos seus avanços, ou devido ao renascimento acidental das impressões anteriores pela `causa precipitadora’ da sua doença (sobre a qual vamos ouvir agora) - não podemos decidir; e, de fato, essa é uma questão indiferente, pois essas três possibilidades alternativas não podem ser encaradas como mutuamente incompatíveis. O fato é que a sua excitação sexual subitamente mudou para ansiedade.
Já descrevemos o comportamento da criança no início da sua ansiedade, assim como o primeiro conteúdo que ele atribuiu a esta, a saber, que um cavalo o morderia. Foi nesse ponto que interveio a primeira parte da terapia. Seus pais fizeram com que ele visse que a sua ansiedade era o resultado da masturbação, e o encorajaram a romper com esse hábito [ver em [1]]. Tive o cuidado de que, quando falassem com ele, fosse dada grande ênfase à sua afeição por sua mãe, pois era isso que ele estava tentando substituir pelo seu medo de cavalos [ver em [2]]. A primeira intervenção trouxe uma leve melhora, mas o terreno foi logo novamente perdido, durante um período de doença física. A condição de Hans permaneceu inalterada. Logo depois ele reportou seu medo de ser mordido por um cavalo a uma impressão que ele tinha recebido em Gmunden [ver em [3]]. Um pai se dirigira a sua filha, na partida desta, com estas palavras de advertência: `Não ponha o dedo no cavalo; se você puser, ele vai morder você.’ As palavras `Não ponha o dedo no’, que Hans usou ao contar essa advertência, se parecia com a fórmula de palavras na qual a advertência contra a masturbação tinha sido estruturada. A princípio, portanto, como os pais de Hans estavam certos em supor, parecia que o que o assustava era sua própria indulgência masturbadora. Mas todo o nexo ficou solto, e parecia ser simplesmente por acaso que os cavalos se tinham tornado seu bicho-papão.
Expressei uma suspeita de que o desejo reprimido de Hans poderia ser agora que ele quisesse, a todo custo, ver o pipi de sua mãe. Como seu comportamento para com uma nova empregada combinava com essa hipótese, seu pai lhe deu sua primeira parte de esclarecimento, a saber, que as mulheres não têm pipis [ver em [1]]. Ele reagiu a esse primeiro esforço para ajudá-lo, criando uma fantasia de que tinha visto sua mãe mostrando o pipi dela. Essa fantasia e uma observação feita por ele em conversa, dizendo que seu pipi estava `preso, é claro’, nos concedem entrever pela primeira vez o processo mental inconsciente do paciente. O fato é que a ameaça de castração feita a ele por sua mãe, cerca de quinze meses antes [ver em [1] e [2]], estava agora tendo um efeito adiado sobre ele. Pois sua fantasia de que sua mãe estava fazendo o mesmo que ele tinha feito (a réplica familiar do tu quoque das crianças culpadas) destinava-se a servir como uma parte de autojustificação; era uma fantasia protetora ou defensiva. Ao mesmo tempo precisamos observar que foram os pais de Hans que extraíram do material patogênico operando nele o tema particular do seu interesse por pipis. Hans seguiu a orientação deles nesse assunto, mas não tinha tomado ainda nenhuma linha própria na análise. E não havia nenhum sucesso terapêutico a ser observado. A análise tinha passado longe do assunto de cavalos; e a informação de que as mulheres não têm pipis foi calculada para, no mínimo, aumentar seu interesse pela preservação do seu próprio pipi.
O sucesso terapêutico, entretanto, não é o nosso objetivo primordial; nós nos empenhamos mais em capacitar o paciente a obter uma compreensão consciente dos seus desejos inconscientes. E podemos atingir isso trabalhando com base nos indícios que ele expõe, e assim, com a ajuda da nossa técnica interpretativa, apresentar o complexo inconsciente para a sua consciência nas nossas próprias palavras. Haverá um certo grau de semelhança entre o que ele ouve de nós e aquilo que ele está procurando, e o que, a despeito de todas as resistências, está tentando forçar caminho até a consciência; e é essa semelhança que vai capacitá-lo a descobrir o material inconsciente. O médico está um passo à frente dele no conhecimento; e o paciente segue pelo seu próprio caminho, até que os dois se encontrem na meta marcada. Os principiantes em psicanálise estão aptos para assimilar esses dois eventos e para supor que o momento no qual um dos complexos inconscientes do paciente tornou-se conhecido para eles é também o momento no qual o próprio paciente o reconhece. Estão esperando demais quando pensam que vão curar o paciente informando-o sobre essa parcela de conhecimento; pois ele nada mais pode fazer com a informação, a não ser fazer uso dela para ajudar a si mesmo a descobrir o complexo inconsciente onde ele está ancorado no seu inconsciente. Um primeiro sucesso desse tipo foi obtido com Hans. Tendo parcialmente dominado seu complexo de castração, ele era então capaz de comunicar seus desejos em relação a sua mãe. Ele o fez, no que ainda era uma forma distorcida, por meio da fantasia das duas girafas, uma das quais estava gritando em vão porque Hans tinha tomado posse da outra [ver em [1]]. Ele representou o `tomar posse de’, pictoricamente, como `sentar em cima’. Seu pai reconheceu a fantasia como uma reprodução de uma cena de quarto, que costumava ter lugar de manhã, entre o menino e seus pais; e logo despiu o desejo subjacente do disfarce que ainda usava. O pai e a mãe do menino eram as duas girafas. A razão para a escolha de uma fantasia de girafa para as finalidades de disfarce foi plenamente explicada por uma visita que, alguns dias antes, o menino tinha feito a esses mesmos grandes animais em Schönbrunn, por um desenho de girafa, pertencente a um período anterior, que tinha sido conservado por seu pai, e também, talvez, por uma comparação inconsciente baseada no pescoço longo e rígido da girafa. Pode ser observado que a girafa, sendo um animal grande, e interessante do ponto de vista do seu pipi, era um possível competidor com o cavalo para o papel de bicho-papão; além do mais, o fato de tanto seu pai como sua mãe terem aparecido como girafas oferecia um indício que ainda não tinha sido seguido, no que se refere à interpretação dos cavalos de ansiedade.
Imediatamente depois da história da girafa, Hans criou duas fantasias menores: uma de forçar passagem para um espaço proibido em Schönbrunn, e outra de quebrar uma janela de uma carruagem de estrada de ferro no Stadtbahn [ver em [1]]. Em cada um dos casos a natureza punível da ação foi enfatizada, e em cada um deles seu pai aparecia como um cúmplice. Infelizmente seu pai fracassou ao interpretar essas duas fantasias, de modo que o próprio Hans não lucrou nada em contá-las. Em uma análise, no entanto, uma coisa que não foi compreendida, inevitavelmente reaparece; como um fantasma inquieto, não pode descansar até que o mistério tenha sido resolvido e que o encanto tenha sido quebrado.

Não há dificuldades na maneira para compreendermos essas duas fantasias criminosas. Elas pertenciam ao complexo de Hans de tomar posse da sua mãe. Agitava-se em sua mente algum tipo de vaga noção de que havia algo que ele poderia fazer com sua mãe por meio do que ele chegaria a tomar posse dela; para esse pensamento ilusório ele encontrou algumas representações pictóricas, que tinham em comum as qualidades de serem violentas e proibidas, e cujo conteúdo nos choca por combinar maravilhosamente com a verdade escondida. Só podemos dizer que havia fantasias simbólicas de relações sexuais, e não era um detalhe irrelevante o fato de que seu pai era representado como compartilhando das suas ações: `Eu gostaria’, ele parecia estar dizendo, `de estar fazendo algo com minha mãe, algo proibido; eu não sei o que é, mas sei que você está fazendo isso também.’
A fantasia da girafa fortaleceu a convicção que já tinha começado a se formar na minha mente, quando Hans expressou seu medo de que `o cavalo entrasse no quarto’ [ver em [1]]; e achei que então tinha chegado o momento certo para informá-lo de que ele tinha medo do seu pai porque ele mesmo nutria desejos ciumentos e hostis contra este - pois era essencial postular-se bem isso com relação aos seus impulsos inconscientes. Ao lhe dizer isso, eu tinha interpretado parcialmente o seu medo de cavalos para ele: o cavalo tem que ser seu pai - a quem ele tinha boas razões internas para temer. Certos detalhes dos quais Hans mostrou que tinha medo, o preto nas bocas dos cavalos e as coisas na frente dos seus olhos (os bigodes e os óculos que são o privilégio de um homem crescido), me pareciam ter sido diretamente transpostos do seu pai para os cavalos [ver em [1]].
Ao esclarecer Hans sobre esse assunto, liquidei sua resistência mais poderosa contra permitir aos seus pensamentos inconscientes tornarem-se conscientes; pois seu próprio pai estava agindo como seu médico. O pior do ataque estava então acabado; havia uma torrente abundante de material; o pequeno paciente convocou coragem para descrever os detalhes da sua fobia, e logo começou a tomar parte ativa na condução da análise.

Foi só então que soubemos quais eram os objetos e as impressões de que Hans tinha medo. Ele não tinha medo só de cavalos o morderem - logo silenciou a respeito desse ponto -, mas também de carroças, de carroças de mudança, de ônibus (sua qualidade comum sendo, como se tornou claro agora, que todos estavam pesadamente carregados), de cavalos que começavam a se mover, de cavalos que pareciam grandes e pesados, e de cavalos que andavam depressa. O significado dessas especificações foi explicado pelo próprio Hans: ele tinha medo de cavalos caindo, e conseqüentemente incorporou na sua fobia tudo que parecesse provavelmente facilitar a queda destes [ver em [1]].
Não é nada raro acontecer que, só depois de fazer uma certa quantidade de trabalho psicanalítico com um paciente, um analista possa conseguir saber o conteúdo real de uma fobia, a forma precisa de palavras de um impulso obsessivo, e assim por diante. A repressão não só invadiu os complexos inconscientes, como está continuamente atacando seus derivados e até impede o paciente de ficar sabendo dos produtos da própria doença. O analista, assim, se encontra na posição, curiosa para um médico, de vir em auxílio de uma doença e de proporcionar-lhe a devida atenção. Mas só aqueles que não entendem nada da natureza da psicanálise vão dar ênfase a essa fase do trabalho e supor que por causa disto é provável que se possa fazer mal através da análise. O fato é que é preciso pegar o ladrão para poder enforcá-lo, e é necessário algum dispêndio de trabalho para se agarrar firmemente as estruturas patológicas, sendo a destruição destas a meta do tratamento.
Já observei no curso do meu comentário corrido sobre o caso clínico [ver em [1]] que é muito instrutivo mergulhar desse modo nos detalhes de uma fobia, e assim chegar a uma convicção da natureza secundária da relação entre a ansiedade e seus objetos. É isso que contribui para as fobias serem ao mesmo tempo tão curiosamente difusas e tão estritamente condicionadas. É evidente que o material para os disfarces particulares que o medo de Hans adotou foi coletado das impressões às quais ele estava exposto o dia todo, devido à Central de Alfândega ser situada do lado oposto da rua. Nessa conexão ele também mostrou sinais de um impulso - embora estivesse agora inibido por sua ansiedade - de brincar com as cargas nas carroças, com os embrulhos, barris e caixas como os meninos da rua.

Foi nesse estágio da análise que ele se lembrou do acontecimento, insignificante em si, que precedeu imediatamente a eclosão da doença e que pode, sem dúvida, ser encarado como a causa precipitadora dessa eclosão. Ele foi dar um passeio com sua mãe e viu um cavalo de ônibus cair e escoicear com suas patas [ver em [1]]. Isso lhe causou uma grande impressão. Ele ficou aterrorizado e pensou que o cavalo estava morto; dessa época em diante, achava que todo os cavalos iriam cair. Seu pai salientou para ele que, quando viu o cavalo cair, deve ter pensado nele, seu pai, e ter desejado que ele caísse da mesma maneira e morresse. Hans não discutiu essa interpretação: um pouco mais tarde fez uma brincadeira que consistia em morder seu pai, e assim mostrou que aceitava a teoria de ter identificado seu pai com o cavalo de que ele tinha medo [ver em [1]]. Dessa época em diante seu comportamento em relação ao pai era sem constrangimento e sem medo, e de fato um pouquinho arrogante. Contudo, seu medo de cavalos persistia; e não estava claro, ainda, através de que cadeia de associações a queda do cavalo agitou seus desejos inconscientes.
Deixem-me resumir os resultados que foram alcançados até agora. Por trás do medo que Hans exprimiu primeiro, o medo de que um cavalo o mordesse, descobrimos um medo mais profundamente assentado, o medo de cavalos caindo; e os dois tipos de cavalo, o cavalo que morde e o cavalo que cai, foram mostrados para representar seu pai, que ia puni-lo pelos maus desejos que ele estava nutrindo contra ele. Nesse ínterim a análise se tinha afastado do tema da sua mãe.
Bem inesperadamente, e certamente sem nenhuma incitação do seu pai, Hans agora começava a se ocupar com o complexo do `lumf‘, e a mostrar nojo pelas coisas que lhe lembravam a evacuação dos seus intestinos [ver em [1]]. Seu pai, que estava relutando em acompanhá-lo nessa linha, impulsionou a análise, sem fazer caso de nada, na direção em que ele queria ir. Ele desencavou de Hans a lembrança de um acontecimento em Gmunden, cuja impressão ficou oculta atrás da do cavalo de ônibus que caiu. Quando eles estavam brincando de cavalos, Fritzl, o companheiro de quem ele tanto gostava, mas que, ao mesmo tempo, talvez fosse seu rival diante das muitas meninas suas amigas, tinha batido com o pé contra uma pedra e tinha caído, tendo seu pé sangrado [ver em [1]]. Ver o cavalo do ônibus cair lhe tinha lembrado esse acidente. Merece ser notado que Hans, que no momento estava interessado em outras coisas, começou por negar que Fritzl tivesse caído (embora isso tenha sido o acontecimento que formou a conexão entre as duas cenas) e só o admitiu num estádio posterior da análise [ver em [1] ]. É especialmente interessante, no entanto, observar a maneira como a transformação da libido de Hans em ansiedade foi projetada do principal objeto da sua fobia para os cavalos. Os cavalos o interessavam mais do que todos os animais grandes; brincar de cavalos era a sua brincadeira favorita com outras crianças. Tive uma desconfiança - e esta foi confirmada pelo pai de Hans quando o interroguei - de que a primeira pessoa que serviu a Hans como um cavalo devia ter sido seu pai; e foi isso que o habilitou a encarar Fritzl como um substituto para seu pai, quando se deu o acidente em Gmunden. Quando a repressão começou e trouxe consigo uma revulsão de sentimento, os cavalos, que até então tinham sido associados com tanto prazer, foram necessariamente transformados em objetos de medo.
Mas, como já dissemos, foi devido à intervenção do pai de Hans que foi feita essa última importante descoberta quanto à maneira como a causa precipitadora da doença tinha operado. O próprio Hans estava ocupado com seus interesses relativos ao lumf, e aí, finalmente, precisamos segui-lo. Ficamos sabendo que Hans anteriormente tinha o hábito de insistir em acompanhar sua mãe ao banheiro [ver em [1]], e que ele tinha reavivado esse costume com sua amiga Berta, numa época em que ela estava ocupando o lugar da sua mãe, até que o fato se tornou conhecido e ele foi proibido de agir assim [ver em [2]]. O prazer sentido ao ficar olhando enquanto uma pessoa que se ama executa as funções naturais é, mais uma vez, uma `confluência de instintos’ da qual já tínhamos observado um exemplo em Hans [ver em [3]]. Por fim seu pai entrou no simbolismo do lumf, e reconheceu que havia uma analogia entre uma carroça pesadamente carregada e um corpo cheio com fezes, entre a maneira pela qual uma carroça sai por um portão e a maneira como as fezes deixam o corpo, e assim por diante [ver a partir de [4]].
Nessa época, contudo, a posição ocupada por Hans na análise tinha-se tornado muito diferente do que tinha sido em um estádio anterior. Antes, seu pai era capaz de dizer-lhe, de antemão, o que estava por vir, enquanto Hans simplesmente seguia sua orientação e vinha trotando atrás; mas agora era Hans quem estava abrindo caminho na frente, tão rapidamente e tão firmemente que seu pai encontrou dificuldade em acompanhá-lo. Sem nenhum aviso, como vinha, Hans criava uma nova fantasia: o bombeiro desaparafusou a banheira na qual Hans estava, e depois bateu no seu estômago com sua grande broca [ver em [1]]. Daí em diante o material introduzido na análise ultrapassou de longe o nosso poder de compreendê-lo. Só mais tarde foi possível adivinhar que isso era uma remodelação de uma fantasia de procriação, distorcida pela ansiedade. A grande banheira de água, na qual Hans se imaginou, era o ventre de sua mãe; a `broca’, que seu pai tinha reconhecido desde a primeira vez como um pênis, deveu sua menção à sua conexão com `estar nascendo’. A interpretação que somos obrigados a dar à fantasia soará, é claro, muito curiosa: `Com seu grande pênis você me “molestou”’ (isto é `me deu origem’) `e colocou-me na barriga de minha mãe.’ No momento, no entanto, a fantasia iludiu a interpretação, e só serviu a Hans como ponto de partida de onde continuar a dar informação.
Hans mostrou medo de que lhe dessem banho na banheira grande [ver em [1]]; e esse medo era, mais uma vez, um medo composto. Uma parte deste nos escapou até agora, mas a outra parte podia ser imediatamente elucidada, em conexão com sua irmãzinha tomando banho. Hans confessou ter desejado que sua mãe deixasse a criança cair enquanto esta estava sendo banhada de modo que ela morresse [ver em [1]]. Sua própria ansiedade enquanto ele estava tomando seu banho era o medo de retribuição pelo seu mau desejo e de ser punido com a mesma coisa. Hans agora deixou o tema do lumf e passou diretamente para o da sua irmãzinha. Podemos imaginar o que essa justaposição significava: nada menos, na realidade, do que a pequena Hanna ser um lumf - que todos os bebês eram lumfs e nasciam como lumfs. Podemos, agora, reconhecer que todas as carroças de mudanças, carrinhos e ônibus eram apenas carroças de caixas de cegonhas, e só tinham interesse para Hans como sendo representações simbólicas da gravidez; e que, quando um cavalo pesado ou pesadamente carregado caiu, ele pode ter visto nisto apenas uma coisa - um parto, uma libertação [`ein Niederkommen‘]. Portanto, o cavalo que caiu não era só seu pai moribundo, mas também sua mãe no parto.
E nesse ponto Hans nos fez uma surpresa, para a qual não estávamos nem um pouco preparados. Ele tinha notado a gravidez de sua mãe, que terminara com o nascimento da sua irmãzinha, quando ele estava com três anos e meio, e em todo caso, depois do parto, tinha juntado os fatos do caso - sem dizer a ninguém, é verdade, e talvez sem ser capaz de dizer a ninguém. Tudo que podia ser visto na época era que, imediatamente após o parto, ele tinha assumido uma atitude extremamente cética em relação a tudo o que pudesse pretender apontar a presença da cegonha [ver em [1]]. Mas que ele - em completa contradição com suas falas oficiais - sabia no seu inconsciente de onde o bebê tinha vindo e onde ele tinha estado antes, é provado sem sombra de dúvida pela presente análise; de fato, este talvez seja seu traço mais inatacável.
A evidência mais convincente disso é fornecida pela fantasia (na qual ele persistia com tanta obstinação, e que embelezou com tanta riqueza de detalhe) de como Hanna tinha estado com eles em Gmunden no verão anterior ao nascimento dela, de como ela tinha viajado para lá com eles, e de como ela tinha sido capaz de fazer muito mais do que podia um ano mais tarde, depois que ela tinha nascido [ver a partir de [1]]. O descaramento com que Hans contou essa fantasia e as incontáveis mentiras extravagantes com as quais ele a interligou eram tudo, menos sem significação. Tudo isso tencionava ser uma vingança sobre o seu pai, contra quem ele acalentava rancor por tê-lo enganado com a fábula da cegonha. Era exatamente como se ele quisesse dizer: `Se você realmente pensou que eu era tão estúpido assim, e esperava que eu acreditasse que a cegonha trouxe Hanna, então, em troca, eu espero que você aceite as minhas invenções como sendo verdade.’ Esse ato de vingança da parte do nosso jovem inquiridor sobre seu pai foi sucedido pela fantasia claramente correlata de importunar e bater nos cavalos [ver em [1]]. Essa fantasia, mais uma vez, tinha dois constituintes. De um lado, era baseada na irritação a que ele tinha submetido seu pai imediatamente antes; e, de outro lado, reproduzia os obscuros desejos sádicos dirigidos à sua mãe, que já tinham encontrado expressão (apesar de não terem sido compreendidos a princípio) nas suas fantasias de fazer algo proibido. Hans até confessou conscientemente um desejo de bater na sua mãe [ver em [2]].
Não há muitos mistérios mais à nossa frente agora. Uma obscura fantasia de perder um trem [ver em [3]], parece ter sido um presságio da noção posterior de entregar o pai de Hans para a sua avó em Lainz, pois a fantasia tratava de uma visita a Lainz, e sua avó aparecia nela. Uma outra fantasia, na qual um menino dava ao guarda 50.000 florins para deixá-lo andar na carreta [ver em [1]], soa quase como um plano de comprar sua mãe do seu pai, parte de cujo poder, é claro, repousa na sua riqueza. Mais ou menos nessa mesma época também, ele confessou, com um grau de abertura que nunca tinha alcançado antes, que desejava livrar-se do seu pai, e que a razão pela qual desejava isso era que seu pai interferia em sua própria intimidade com sua mãe [ver em [2]]. Não devemos surpreender-nos ao encontrar os mesmos desejos reaparecendo constantemente no curso da análise. A monotonia só se prende às interpretações que o analista faz desses desejos. Para Hans eles não eram meras repetições, mas passos num desenvolvimento progressivo do tímido indício para a clareza plenamente consciente e sem distorção.

O que resta são apenas confirmações da parte de Hans de conclusões analíticas que as nossas interpretações já tinham estabelecido. Num ato sintomático inteiramente inequívoco, que ele disfarçou ligeiramente para a empregada, mas de modo algum para seu pai, mostrou como imaginava que um nascimento ocorria [ver em [1]]; mas, se olharmos para isso mais de perto, poderemos ver que ele mostrou algo mais, que estava sugerindo algo a que não mais se aludiu na análise. Ele empurrou um pequeno canivete, que pertencia a sua mãe, para dentro de um buraco redondo no corpo de uma boneca de borracha, e depois deixou-o cair de novo para fora, afastando as pernas da boneca. O esclarecimento que logo depois ele recebeu dos seus pais [ver em [1]], dizendo que as crianças de fato crescem dentro do corpo de suas mães e que são empurradas para fora deste como um lumf, veio tarde demais; não podia dizer-lhe nada de novo. Um outro ato sintomático, acontecendo como por acidente, envolveu uma confissão de que ele tinha desejado que seu pai estivesse morto; pois, no exato momento em que seu pai estava falando deste desejo de morte, Hans deixou um cavalo, com o qual ele estava brincando, cair - na verdade ele o derrubou. Depois, confirmou com muitas palavras a hipótese de que carroças pesadamente carregadas representavam para ele a gravidez de sua mãe, e de que o cavalo caindo era como ter um bebê. A parte da confirmação mais deliciosa em conexão com isso - uma prova de que, segundo seu ponto de vista, as crianças eram `lumfs‘ - foi ele inventar o nome de `Lodi’ para seu filho favorito. Houve algum atraso em contar esse fato, pois depois pareceu que ele tinha estado brincando com esse seu filho de salsicha já por um longo tempo [ver em [1]].
Já consideramos as duas fantasias concludentes de Hans, com as quais a sua recuperação foi fechada. Uma destas [ver em [2]], a do bombeiro dando-lhe um novo e, como seu pai adivinhou, maior pipi, não era simplesmente a repetição da fantasia anterior que dizia respeito ao bombeiro e à banheira. A nova era uma fantasia triunfante e apaixonada, e foi com ela que ele superou seu medo de castração. Sua outra fantasia [ver em [3]], que confessava o desejo de ser casado com sua mãe e de ter muitos filhos com ela, não esgotou simplesmente o conteúdo dos complexos inconscientes que tinham sido agitados pela visão do cavalo caindo e que tinham gerado sua ansiedade. Também corrigiu aquela porção daquelas idéias que era inteiramente inaceitável; pois, ao invés de matar seu pai, tornou-o inofensivo, incentivando-o a um casamento com a avó de Hans. Com essa fantasia, tanto a doença como a análise chegaram a um final apropriado.
Enquanto a análise de um caso está em andamento é impossível obter qualquer impressão clara da estrutura e do desenvolvimento da neurose. Isso é da competência de um processo sintético que precisa ser executado subseqüentemente. Ao tentar levar a cabo tal síntese da fobia do pequeno Hans, devemos tomar como nossa base a consideração da sua constituição mental, do seu controle sobre os desejos sexuais e das suas experiências até a época do nascimento da sua irmã, o que fornecemos em parte anterior deste artigo.
A chegada da sua irmã trouxe para a vida de Hans muitos elementos novos, que dessa época em diante não lhe deram sossego. Em primeiro lugar, foi obrigado a submeter-se a um certo grau de privação: para começar, uma separação temporária de sua mãe, e mais tarde uma diminuição permanente na soma de cuidado e atenção que ele tinha recebido dela, o que, a partir de então, teve que se acostumar a dividir com sua irmã. Em segundo lugar, experimentou uma reanimação dos prazeres que tinha desfrutado quando era cuidado como um bebê, pois foram invocados por tudo o que ele viu sua mãe fazer para o bebê. Como resultado dessas duas influências, suas necessidades eróticas tornaram-se intensificadas, enquanto, ao mesmo tempo, começaram a obter satisfação insuficiente. Compensou a perda que a chegada da sua irmã lhe legou, imaginando que ela tinha filhos seus; durante o tempo em que ficou em Gmunden - na sua segunda visita lá - e podia realmente brincar com essas crianças, encontrou uma saída suficiente para as suas afeições. Mas, depois da sua volta a Viena, ficou de novo sozinho e colocou todas as suas esperanças em sua mãe. Ele tinha, nesse ínterim, sofrido uma outra privação, tendo sido exilado do quarto dos seus pais com a idade de quatro anos e meio. Sua excitabilidade erótica intensificada encontrou então expressão em fantasias, por meio das quais, na sua solidão, ele evocava seus companheiros do verão anterior, e numa satisfação auto-erótica regular, obtida por uma estimulação masturbatória dos seus genitais.

Mas em terceiro lugar, o nascimento de sua irmã estimulou-o a um esforço de pensamento que, de um lado, era impossível conduzir a uma conclusão e que, de outro lado, envolveu-o em conflitos emocionais. Ele deparou o grande enigma do de onde é que os bebês vêm, que é, talvez, o primeiro problema a ocupar os poderes mentais de uma criança, e do qual o enigma da Esfinge tebana provavelmente não é mais do que uma versão distorcida. Ele rejeitou a solução oferecida, a de a cegonha ter trazido Hanna. Pois ele tinha notado que, meses antes do nascimento do bebê, o corpo de sua mãe tinha crescido, que depois ela tinha ido para a cama, que tinha gemido enquanto o nascimento estava ocorrendo e que, quando se levantou, estava magra de novo. Ele então deduziu que Hanna tinha estado dentro do corpo de sua mãe, e que depois tinha vindo para fora como um `lumf‘. Foi capaz de imaginar o ato de dar à luz como um ato de prazer, relacionando-o com seus próprios primeiros sentimentos de prazer ao evacuar; e assim foi capaz de encontrar um duplo motivo para desejar ter filhos seus: o prazer de dar à luz eles e o prazer (o prazer compensatório, como era o caso) de cuidar deles. Não havia nada em tudo isso que pudesse tê-lo levado a dúvidas ou conflitos.
Mas havia algo mais, que não podia deixar de torná-lo inquieto. Seu pai tinha que ter algo a ver com o nascimento da pequena Hanna, pois ele tinha declarado que Hanna e o próprio Hans eram filhos dele. No entanto, certamente não era seu pai quem os tinha trazido para o mundo, mas sua mãe. Esse seu pai ficou entre ele e sua mãe. Quando ele estava lá, Hans não podia dormir com sua mãe, e quando sua mãe queria trazer Hans para a cama com ela, seu pai costumava reclamar. Hans tinha aprendido, por experiência, como podia ficar à vontade na ausência de seu pai, e era bastante justificável que desejasse livrar-se dele. E depois a hostilidade de Hans tinha recebido um novo reforço. Seu pai lhe contou a mentira sobre a cegonha e, desse modo, tornou impossível para ele pedir esclarecimento a respeito dessas coisas. Ele não só impediu que Hans ficasse na cama com sua mãe, mas também manteve afastado dele o conhecimento de que ele estava sedento. Estava colocando Hans em desvantagem nas duas direções, e estava obviamente agindo assim em seu próprio benefício.
Mas seu pai, a quem ele não podia deixar de odiar como um rival, era o mesmo pai que ele sempre tinha amado, e estava inclinado a continuar amando, que tinha sido seu modelo, tinha sido seu primeiro companheiro, etinha cuidado dele desde a mais tenra infância: e foi isso que deu origem ao primeiro conflito. Esse conflito também não podia encontrar uma solução imediata. Pois a natureza de Hans se tinha desenvolvido tanto que, no momento, seu amor só podia levar vantagem e suprimir seu ódio - apesar de não poder matar esse ódio, pois este era mantido permanentemente vivo por seu amor a sua mãe.
Seu pai, porém, não só sabia de onde vinham as crianças, mas de fato as fez - coisa que Hans só podia adivinhar obscuramente. O pipi tem que ter algo a ver com isso, pois o seu próprio ficou excitado toda vez que ele pensou nessas coisas - e tem que ser um pipi grande também, maior que o de Hans. Se ele atendia a essas sensações premonitórias, só podia supor que era uma questão de algum ato de violência executado em sua mãe, de quebrar alguma coisa, de fazer uma abertura em alguma coisa, de forçar um caminho num espaço fechado - tais eram os impulsos que ele sentiu agitando-se dentro dele. Mas, apesar de as sensações do seu pênis o terem colocado no caminho de pressupor uma vagina, ele ainda não podia resolver o problema, pois em sua experiência não existia tal coisa como o seu pipi exigia. Ao contrário, sua convicção de que sua mãe possuía um pênis, tal como ele, ficou no caminho de qualquer solução. Sua tentativa de descobrir o que era que tinha de ser feito com sua mãe a fim de que ela pudesse ter filhos afundou para o seu inconsciente; e seus dois impulsos ativos - o hostil em relação a seu pai e o sádico-terno em relação a sua mãe - não podem ser postos em uso - o primeiro, por causa do amor que existia lado a lado com o ódio, e o segundo, por causa da perplexidade na qual suas teorias sexuais infantis o deixaram.
É assim, baseando minhas conclusões nas descobertas da análise, que sou obrigado a reconstruir os complexos e desejos inconscientes, a repressão e o redespertar do que produziu a fobia do pequeno Hans. Estou ciente de que, agindo assim, atribuo muito à capacidade mental de uma criança entre quatro e cinco anos de idade; mas deixei-me ser guiado pelo que aprendemos recentemente, e não me considero ligado aos preconceitos da nossa ignorância. Poderia ter sido possível, talvez, fazer uso do medo de Hans de `fazer um barulho com as pernas’ para preencher umas poucas lacunas mais na nossa adjudicação sobre a evidência. Hans, é verdade, declarou que isso lhe lembrava ele dando pontapés com suas pernas quando era obrigado a parar de brincar para fazer lumf; de modo que esse elemento da neurose torna-se ligado ao problema de saber se sua mãe gostava de ter filhos ou era obrigada a tê-los. Contudo, tenho a impressão de que esta não é toda a explicação do `fazer um barulho com as pernas’. O pai de Hans foi incapaz de confirmar minha suspeita de que havia alguma lembrança agitando-se na mente da criança, lembrança de ter observado uma cena de relação sexual entre seus pais no quarto destes. Então, contentemo-nos com o que descobrimos.
É difícil dizer qual foi a influência que, na situação que acabamos de esboçar, levou à súbita mudança em Hans e à transformação do seu anseio libidinal em ansiedade - para dizer de que direção foi que a repressão começou. A questão provavelmente só poderia ser decidida fazendo-se uma comparação entre esta análise e várias outras similares. Se as escalas foram mudadas pela inabilidade intelectual da criança em resolver o difícil problema da geração de crianças e em lidar com os impulsos agressivos que foram liberados com a sua aproximação dessa solução, ou se o efeito foi produzido por uma incapacidade somática, uma intolerância constitucional da gratificação masturbatória à qual ele se entregava regularmente (se, por assim dizer, a mera persistência do excitamento sexual em tão alto nível de intensidade tendia a causar uma revulsão) - esta questão precisa ser deixada em aberto até que possa chegar à nossa assistência experiência nova.
Considerações cronológicas tornaram impossível, para nós, dar qualquer importância maior à causa precipitadora real da eclosão da doença de Hans, pois ele mostrou sinais de apreensão muito antes de ter visto o cavalo do ônibus cair na rua.
De qualquer modo, a neurose deu sua partida diretamente desse evento casual, e preservou um traço deste na circunstância de o cavalo ser exaltado como objeto da sua ansiedade. Em si, a impressão do acidente que por acaso ele presenciou não carregava nenhuma `força traumática’; adquiriu sua grande eficácia somente a partir do fato de que os cavalos antes tinham sido de importância para ele como objetos de sua predileção e interesse, a partir do fato de que ele associou o acontecimento na sua mente a um acontecimento anterior em Gmunden, que tinha mais razão para ser encarado como traumático, isto é, com a queda de Fritzl enquanto eles estavam brincando de cavalos, e, por último, a partir do fato de que havia um caminho fácil de associação de Fritzl a seu pai. De fato, mesmo essas conexões provavelmente não teriam sido suficientes, não fosse o fato de, graças à flexibilidade e à ambigüidade de cadeias associativas, o mesmo acontecimento ter-se mostrado capaz de agitar o segundo dos complexos que se escondiam no inconsciente de Hans, o complexo do parto de sua mãe grávida. A partir desse momento, o caminho ficou livre para o retorno do reprimido; e este voltou de tal maneira que o material patogênico foi remodelado e transposto para o complexo do cavalo, enquanto os afetos acompanhantes foram uniformemente transformados em ansiedade.

Merece ser notado que o conteúdo da fobia de Hans, tal como ficou depois, teve que ser submetido a um processo posterior de distorção e de substituição para que sua consciência tomasse conhecimento dele. A primeira formulação de Hans da sua ansiedade foi a seguinte: `o cavalo vai morder-me’; e isso derivou-se de um outro episódio em Gmunden que, de um lado, era relacionado com seus desejos hostis para com seu pai e, de outro lado, era um remanescente do aviso que ele tinha recebido contra masturbação. Alguma influência interferente, emanando talvez dos seus pais, se tinha feito sentir. Não estou certo se os relatos sobre Hans eram, nessa época, estabelecidos com o cuidado suficiente para nos habilitar a decidir se ele expressava sua ansiedade dessa forma antes ou só depois de sua mãe repreendê-lo sobre o assunto da masturbação. Devo inclinar-me a suspeitar de que só foi assim depois, embora isso fosse contradizer o relato fornecido no caso clínico [ver em [1]]. De qualquer forma, é evidente que em todos os pontos o complexo hostil de Hans contra seu pai encobria seu complexo luxurioso em relação a sua mãe, assim como foi o primeiro a ser revelado e tratado na análise.
Em outros casos desse gênero, haveria muito mais a ser dito a respeito da estrutura, do desenvolvimento e da difusão da neurose. Todavia, a história do ataque do pequeno Hans foi muito curta; quase logo que começou, seu lugar foi ocupado pela história do seu tratamento. E apesar de durante o tratamento a fobia ter parecido desenvolver-se mais e estender-se a novos objetos, e estabelecer novas condições, seu pai, já que era ele quem estava tratando do caso, naturalmente tinha penetração suficiente para ver que se tratava simplesmente da emergência do material que já existia, e não de novas criações para as quais o tratamento poderia ser tomado como responsável. No tratamento de outros casos não seria possível contar sempre com tanta penetração.
Antes que eu possa encarar esta síntese como completa, preciso voltar-me ainda para outro aspecto do caso, que vai levar-nos para o mais profundo âmago das dificuldades, que ficam no caminho da nossa compreensão de estados neuróticos. Vimos como o nosso pequeno paciente foi alcançado por uma grande onda de repressão e que esta apanhou precisamente aqueles seus componentes sexuais que eram dominantes. Ele abandonou a masturbação, e afastou-se com nojo de tudo que lhe lembrava excremento e olhar para outras pessoas executando suas funções naturais. Mas esses não eram os componentes que foram agitados pela causa precipitadora da doença (ver o cavalo cair) ou que forneceram o material para os sintomas, isto é, o conteúdo da fobia.
Isso nos permite, portanto, fazer uma distinção radical. Chegaremos provavelmente a compreender o caso mais profundamente se nos voltarmos para aqueles outros componentes que, de fato, preenchem as duas condições que acabaram de ser mencionadas. Esses outros componentes eram tendências em Hans que já tinham sido suprimidas e que, tanto quando podemos dizer, nunca puderam encontrar expressão desinibida: sentimentos hostis e ciumentos em relação a seu pai, e impulsos sádicos (premonições, como era o caso, da cópula) em relação a sua mãe. Essas supressões primitivas podem ter ocorrido, talvez, para formar a predisposição para sua doença subseqüente. Essas propensões agressivas de Hans não encontraram saída, e logo que chegou um tempo de privação e de excitação sexual intensificada, elas tentaram romper sua saída com força redobrada. Foi então que a batalha que chamamos de sua `fobia’ rebentou. Durante o curso desta, uma parte das idéias reprimidas, numa forma distorcida e transposta para um outro complexo, forçou seu caminho para a consciência como conteúdo da fobia. Mas este era um sucesso decididamente desprezível. A vitória ficou com as forças de repressão; e elas fizeram uso da oportunidade para estender seu domínio a outros componentes que não aqueles que se tinham rebelado. Essa última circunstância, todavia, não altera nem um pouco o fato de que a essência da doença de Hans era inteiramente dependente da natureza dos componentes instintuais que tiveram de ser repelidos. O conteúdo da sua fobia era tal que impunha uma grande medida de restrição sobre sua liberdade de movimento, e este era o seu propósito. Tratava-se, portanto, de uma poderosa reação contra os impulsos obscuros ao movimento que eram especialmente dirigidos contra sua mãe. Pois os cavalos de Hans sempre foram típicos do prazer no movimento (`Eu sou um jovem cavalo’, disse ele enquanto pulava [ver em [1]]); mas já que esse prazer no movimento incluía o impulso para copular, a neurose impôs uma restrição a este e exaltou o cavalo como emblema de terror. Assim, pareceria que tudo o que os instintos reprimidos obtiveram da neurose foi a honra de fornecer pretextos para o aparecimento da ansiedade na consciência. Mas não importa quão clara possa ter sido a vitória na fobia de Hans das forças que eram opostas à sexualidade, já que essa doença é na sua mais profunda natureza um compromisso, isso não pode ser tudo o que os instintos reprimidos obtiveram. Afinal, a fobia de Hans por cavalos era um obstáculo a ele ir até a rua, e podia servir como um meio de lhe permitir ficar em casa com sua querida mãe. Dessa maneira, portanto, sua afeição por sua mãe realizou triunfalmente seu objetivo. Em conseqüência da sua fobia, o amante agarrou-se ao objeto do seu amor - apesar de, para se assegurar, terem sido tomadas medidas para torná-lo inócuo. O verdadeiro caráter de um distúrbio neurótico é exibido nesse resultado duplo.
Alfred Adler, num sugestivo artigo, desenvolveu recentemente o ponto de vista de que a ansiedade surge da supressão do que ele chama de `instinto agressivo’, e por meio de um processo sintético impetuoso ele imputa a esse instinto o papel principal nos acontecimentos humanos, `na vida real ou na neurose’. Como chegamos à conclusão de que, no nosso presente caso de fobia, a ansiedade deve ser explicada como sendo devida à repressão das propensões agressivas de Hans (as propensões hostis contra seu pai e as sádicas contra sua mãe), parece que produzimos uma peça muito impressionante de confirmação do ponto de vista de Adler. Sou, contudo, incapaz de concordar com ele, e na verdade encaro-o como uma generalização enganadora. Não posso convencer-me a aceitar a existência de um instinto agressivo especial ao lado dos instintos familiares de autopreservação e de sexo, e de qualidade igual à destes. Parece-me que Adler promoveu erradamente a um instinto especial e auto-subsistente o que é, na realidade, um atributo universal e indispensável de todos os instintos - o seu caráter instintual [triebhaft] e `premente’, o que poderia ser descrito como a sua capacidade para iniciar movimento. Nada restaria, então, dos outros instintos, a não ser a sua relação com um objetivo, pois a sua relação com os meios de alcançar esse objetivo teria sido retirada deles pelo `instinto agressivo’. Apesar de toda a incerteza e obscuridade de nossa teoria dos instintos, eu preferiria, no momento, aderir ao ponto de vista usual, que deixa a cada instinto o seu próprio poder de se tornar agressivo; e estaria inclinado a reconhecer os dois instintos que se tornaram reprimidos em Hans como componentes familiares da libido sexual.
(III)
Procederei agora ao que, espero, será uma breve discussão de até que ponto a fobia do pequeno Hans oferece alguma contribuição de importância geral aos nossos pontos de vista sobre a vida e a educação das crianças. Mas, antes de fazê-lo, preciso voltar à objeção que foi mantida por tanto tempo, de acordo com a qual Hans era um neurótico, um `degenerado’, com uma má hereditariedade, e não uma criança normal, sendo possível aplicar o conhecimento sobre ele a outras crianças. Estive pensando por algum tempo, com pesar, na maneira como os que aderem à `pessoa normal’ vão cair em cima do pobre pequeno Hans logo que forem informados de que ele, de fato, pode ser mostrado como tendo tido uma tara hereditária. Sua linda mãe ficou doente com uma neurose como resultado de um conflito durante sua meninice. Pude ser de auxílio para ela na época, e este foi, de fato, o começo da minha ligação com os pais de Hans. É com a maior desconfiança que me arrisco a levar avante uma ou duas considerações em seu favor.
Em primeiro lugar, Hans, não era o que se entenderia, falando estritamente, por uma criança degenerada, condenada por sua hereditariedade a ser um neurótico. Ao contrário, ele era bem formado fisicamente, e era um rapazinho alegre, amável e de mente ativa, que poderia dar prazer a mais pessoas que seu próprio pai. Não pode haver dúvida, é claro, quanto à sua precocidade sexual; mas sobre esse ponto há muito pouco material no qualuma comparação justa possa ser baseada. Colhi, por exemplo, de um trabalho de pesquisa coletiva conduzida na América [Sanford Bell (1902)], que não é, de modo algum, uma coisa tão rara encontrar-se uma escolha de objeto e sentimentos de amor em meninos numa idade assim tão tenra; e o mesmo pode ser aprendido estudando-se os registros da infância de homens que mais tarde chegaram a ser reconhecidos como `grandes’. Devo inclinar-me a acreditar, portanto, que a precocidade sexual é um correlato, raramente ausente, da precocidade intelectual, e que, assim, deve ser encontrada em crianças dotadas mais freqüentemente do que se poderia esperar.
Além disso, deixem-me dizer em favor de Hans (e admito francamente minha atitude partidária) que ele não é a única criança que foi atingida por uma fobia em uma época ou outra na sua infância. Problemas desse tipo são conhecidos por serem extraordinariamente freqüentes, mesmo em crianças cujo cuidado da educação não deixava nada a desejar. Na vida futura essas crianças ou se tornam neuróticas ou permanecem saudáveis. Suas fobias são subjugadas na educação porque são inacessíveis a tratamento e são decididamente inconvenientes. No curso de meses ou anos elas diminuem, e a criança parece recuperar-se; mas ninguém pode dizer que mudanças psicológicas são necessitadas por tal recuperação, ou que alterações no caráter nela estão envolvidas. Quando, todavia, um paciente adulto neurótico vem a nós para tratamento psicanalítico (e presumamos que sua doença só se tornou manifesta depois que ele atingiu a maturidade), achamos regularmente que sua neurose tem como ponto de partida uma ansiedade infantil tal como a que discutimos, e é de fato uma continuação dela; de modo que, por assim dizer, um contínuo e tranqüilo foi de atividade psíquica, partindo dos conflitos da sua infância, foi prolongado através de sua vida - sem consideração se o primeiro sintoma daqueles conflitos persistiu ou recolheu-se sob a pressão das circunstâncias. Acho, portanto, que a doença de Hans pode, talvez, não ter sido mais séria que aquela de muitas outras crianças que não são rotuladas de `degeneradas’; mas, já que ele foi criado sem ser intimidado e com tanta consideração e com tão pouca coerção quanto possível, sua ansiedade ousou mostrar-se mais atrevidamente. Com ele não havia lugar para motivos tais como uma má consciência ou um medo de punição, o que com outras crianças deve, sem dúvida, contribuir para diminuir a ansiedade. Parece-me que nos concentramos demais nos sintomas e nos interessamos muito pouco por suas causas. Ao educar as crianças só visamos a ser deixados em paz e não ter dificuldades, em suma, a formar uma criança modelo, e prestamos muito pouca atenção a se tal curso de desenvolvimento é também para o bem da criança. Posso, portanto, imaginar muito bem que tenha sido para seu benefício que Hans produziu essa fobia, pois ela dirigiu a atenção dos seus pais para as dificuldades inevitáveis com as quais uma criança é confrontada quando, no curso de sua formação cultural, é solicitada a superar os componentes instintuais inatos da sua mente; e seu problema levou seu pai a assisti-lo. Pode ser que agora Hans desfrute de uma vantagem sobre as outras crianças, pelo fato de que ele não mais carrega dentro de si aquela semente sob a forma de complexos reprimidos que deverá ser sempre de algum significado para a vida futura de uma criança e que, sem dúvida, traz consigo um certo grau de deformidade de caráter, se não uma disposição a uma neurose subseqüente. Estou inclinado a pensar que isso é assim, mas não sei se muitos outros vão partilhar da minha opinião; nem sei também se a experiência vai provar que estou certo.
Mas preciso, agora, inquirir que mal foi feito a Hans para trazer à luz nele complexos tais como os que são não apenas reprimidos pelas crianças, mas temidos por seus pais. O menininho chegou a empreender alguma ação séria no que se refere ao que ele queria da sua mãe? Ou suas más intenções contra seu pai deram lugar a feitos maldosos? Tais pressentimentos terão, sem dúvida, ocorrido a muitos médicos, que não entendem a natureza da psicanálise e pensam que os instintos maus são fortalecidos por se tornarem conscientes. Os homens sábios como estes não estão sendo mais que convenientes quando nos imploram pelo amor de Deus que não nos metamos com as coisas ruins que se escondem por trás de uma neurose. Ao fazê-lo, esquecem-se, é verdade, de que são médicos, e suas palavras mostram uma semelhança fatal com as de Dogberry, quando aconselhou os guardas a evitarem todo contato com quaisquer ladrões que pudessem vir a encontrar: `pois com tal tipo de homens, quanto menos vocês se misturarem ou concordarem com eles, tanto melhor para sua honestidade.’

Ao contrário, os únicos resultados da análise foram que Hans se recuperou, deixou de ter medo de cavalos e chegou a termos bem familiares com seu pai, como este último relatou com algum humor. Mas o que seu pai possa ter perdido no respeito do menino, ganhou, de volta, na sua confiança: `Eu pensei’, disse Hans, `que você sabia tudo, como você sabia aquilo sobre o cavalo.’ Pois a análise não desfaz os efeitos da repressão. Os instintos que foram suprimidos anteriormente permanecem suprimidos, mas o mesmo efeito é produzido de uma maneira diferente. A análise substitui o processo de repressão, que é um processo automático e excessivo, por um controle moderado e resoluto da parte das mais altas instâncias da mente. Numa palavra, a análise substitui a repressão pela condenação. Isso parece trazer até nós a longamente procurada evidência de que a consciência tem uma função biológica, e de que com a sua entrada em cena uma importante vantagem é assegurada.
Se o assunto estivesse inteiramente entregue às minhas mãos, eu teria arriscado dar à criança a parcela de esclarecimento restante que seus pais retiveram dele. Eu teria confirmado as suas premonições instintivas, falando-lhe da existência da vagina e da cópula; assim, eu teria diminuído ainda mais seu resíduo não resolvido, e posto um fim à sua torrente de perguntas. Estou convencido de que essa nova parcela de esclarecimento não o teria feito perder nem seu amor por sua mãe nem sua própria natureza de criança e de que ele teria compreendido que essa preocupação com essas coisas importantes, essas coisas muito importantes, precisa descansar no momento - até que seu desejo de ser grande tenha sido satisfeito. Mas a experiência educacional não foi levada tão longe.

Que não pode ser traçada qualquer linha nítida entre pessoas `neuróticas’ e `normais’ - quer crianças ou adultos -, que a nossa concepção de `doença’ é uma concepção puramente prática e uma questão de somação, que a disposição e as eventualidades da vida precisam combinar-se para que o limiar dessa somação seja ultrapassado e que, conseqüentemente, vários indivíduos estão passando constantemente da classe de pessoas saudáveis para a de pacientes neuróticos, enquanto um número bem menor também faz a viagem na direção oposta - tudo isso são coisas que têm sido ditas com tanta freqüência e acatadas com tanta concordância, que certamente não estou só ao sustentar sua veracidade. É, para se falar o mínimo sobre isso, extremamente provável que a educação de uma criança possa exercer uma influência poderosa, para o bem ou para o mal, sobre a disposição que acabamos de mencionar como um dos fatores na ocorrência da `doença’; mas o que essa educação deve visar e em que ponto deve ser repelida parecem, no momento, ser questões muito duvidosas. Até agora a educação só estabeleceu para si a tarefa de controlar, ou, seria muitas vezes mais próprio dizer-se, de suprimir, os instintos. Os resultados não têm sido, de modo algum, gratificantes, e onde o processo foi bem-sucedido foi somente para o benefício de um pequeno número de indivíduos favorecidos, a quem não se exigiu que suprimissem seus instintos. Ninguém também inquiriu por que meios e a que custo a supressão dos instintos inconvenientes foi conseguida. Suponha-se agora que substituamos outra tarefa por essa e que visemos, em vez disso, fazer o indivíduo capaz de se tornar um membro civilizado e útil à sociedade com o mínimo de sacrifício possível da sua própria atividade; nesse caso a informação obtida pela psicanálise sobre a origem dos complexos patogênicos e sobre o núcleo de qualquer afecção nervosa pode reclamar, com justiça, que merece ser encarada por educadores como um guia inestimável na sua conduta em relação às crianças. Que conclusões práticas podem resultar disso e até que ponto a experiência pode justificar a aplicação dessas conclusões no nosso sistema social atual, são assuntos que deixo para o exame e a decisão de outros.
Não posso despedir-me da fobia do nosso pequeno paciente sem expressar uma noção que tornou sua análise, conduzindo como ela o fez a uma recuperação, parecer de especial valor para mim. Falando francamente, não aprendi nada de novo com essa análise, nada que eu já não tivesse sido capaz de descobrir (apesar de muitas vezes menos distintamente e mais indiretamente) em outros pacientes analisados numa idade mais avançada. Mas a neurose desses outros pacientes podia, em todos os casos, ser reportada aos mesmos complexos infantis que foram revelados por trás da fobia de Hans. Estou, portanto, tentado a reclamar para essa neurose da infância o significado de ser um tipo e um modelo, assim como a supor que a multiplicidade dos fenômenos de repressão exibidos pelas neuroses e a abundância do seu material patogênico não evitam que sejam derivadas de um número muito limitado de processos que participam de complexos ideativos idênticos.

PÓS-ESCRITO (1922)

Há uns meses atrás - na primavera de 1922 - um rapaz se apresentou a mim e me informou de que ele era o `pequeno Hans’, cuja neurose infantil tinha sido o tema do artigo que publiquei em 1909. Fiquei muito contente em vê-lo de novo, pois, cerca de dois anos depois do fim da sua análise, eu o tinha perdido de vista e não tinha tido notícias dele por mais de dez anos. A publicação dessa primeira análise de uma criança causara uma grande agitação e até uma grande indignação, e um futuro dos mais negros tinha sido previsto para o pobre menininho, porque lhe tinham `roubado sua inocência’ numa idade tão tenra e ele se tornara vítima de uma psicanálise.
Mas nenhuma dessas apreensões tornou-se verdade. O pequeno Hans era agora um forte rapaz de dezenove anos. Declarou que estava perfeitamente bem e que não sofria de nenhum problema ou inibição. Não só tinha atravessado sua puberdade sem nenhum dano, como também sua vida emocional tinha sofrido sucessivamente uma das mais severas provas. Seus pais se tinham divorciado e cada um deles se casara de novo. Em conseqüência disso ele vivia sozinho; mas estava em bons termos com seus pais, e só lamentava que, como resultado da divisão da família, ele tivesse sido separado de sua irmã mais moça, de quem tanto gostava.
Uma parte da informação que me foi dada pelo pequeno Hans chamou minha atenção por ser particularmente notável; nem me arrisco a dar qualquer explicação sobre ela. Quando leu seu caso clínico, disse-me ele, tudo aquilo veio a ele como algo desconhecido; ele não se reconheceu; não se lembrava de nada; e só quando chegou à viagem a Gmunden despontou nele uma espécie de trêmula lembrança de que poderia ter sido a ele que aquilo tinha acontecido. Então a análise não tinha preservado os acontecimentos da amnésia, mas tinha sido superada pela própria amnésia. Qualquer um que esteja familiarizado com a psicanálise pode experimentar ocasionalmente algo semelhante no sono. Será acordado por um sonho e decidirá analisá-lo imediatamente; então voltará a dormir, sentindo-se bastante satisfeito com o resultado dos seus esforços; na manhã seguinte o sonho e a análise terão igualmente sido esquecidos.











NOTAS SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA (1909)


NOTA DO EDITOR INGLÊS
BEMERKUNGEN ÜBER EINEN FALL VON ZWANGSNEUROSE

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
1909 Jb. psychoanal. psychopath. Forsch., 1 (2), 357-421.
1913 S. K. S. N., III, 123-197. (1921, 2ª ed.)
1924 G. S., 8, 269-351.
1932 Vier Krankengeschichten, 284-376.
1941 G. W., 7, 381-463.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘Notes upon a Case of Obsessional Neurosis’
1925 C. P., 3, 293-383. (Trad. de Alix e James Strachey.)

A presente tradução inglesa do caso clínico é uma reimpressão (contendo alterações consideráveis e inúmeras notas de rodapé adicionais) da versão inglesa original de 1925.

O tratamento desse caso, por Freud, começou a 1º de outubro de 1907. Um relato de seus primórdios, fornecido por Freud e seguido de um debate, ocupou duas noites na Sociedade Psicanalítica de Viena, a 30 de outubro e 6 de novembro. Federn (1948) fez uma descrição das Atas dessas duas reuniões em um artigo intitulado ‘Professor Freud: O Início de um Caso Clínico’. Ele, contudo, fornece incorretamente a data da segunda reunião, indicando 16 de novembro. Pequenos relatos posteriores sobre detalhes do caso foram apresentados por Freud à Sociedade de Viena a 20 de novembro de 1907 e a 22 de janeiro e 8 de abril de 1908. Um relato mais longo foi apresentado por ele no Primeiro Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Salzburg a 27 de abril de 1908. Segundo o Dr. Ernest Jones, nele presente, a exposição de Freud exigiu quatro horas. Um breve resumo desta, feito por Otto Rank, pode ser encontrado na Zentralbl. Psychoanal., 1 (1910), 125-6, publicado um ano depois do caso clínico em sua forma definitiva. Na ocasião do congresso, contudo, o tratamento não estava de modo algum concluído, de vez que, como Freud nos relata adiante (ver em [1]), durou quase um ano. No verão de 1909 ele preparou a história para ser publicada. Uma carta a Jung revela que levou um mês preparando-a e que, afinal, enviou-a à gráfica em 7 de julho de 1909.
Sobreviveu o registro original de Freud da primeira parte desse tratamento, que era feito dia a dia, à medida que prosseguia o tratamento, e que serviu de base para o caso clínico publicado. Acha-se publicado, pela primeira vez, na tradução inglesa que se encontra no final deste volume, junto com algumas notas explicativas que poderão auxiliar o leitor a acompanhar a complicada história. (Ver a partir de [1].)
(Em todas as edições anteriores, refere-se uma vez ao paciente como ‘Tenente H.’ (ver em [2]) e ao ‘cruel capitão’ como ‘Capitão M.’ (ver em [3]). A fim de harmonizar essas letras com os nomes escolhidos para o ‘Registro Original’, elas foram modificadas para ‘L’ e ‘N’, respectivamente.)

NOTAS SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA - INTRODUÇÃO

O assunto contido nas páginas a seguir será de duas categorias. Primeiramente, fornecerei alguns extratos fragmentários oriundos da história de um caso de neurose obsessiva. Esse caso, julgado por sua extensão, pelos danos de suas conseqüências e pelo próprio ponto de vista do paciente a seu respeito, merece ser classificado como um caso relativamente sério. O tratamento, que durou cerca de um ano, acarretou o restabelecimento completo da personalidade do paciente, bem com a extinção de suas inibições. Em segundo lugar, partindo-se desse caso e levando-se em consideração outros casos que analisei anteriormente, farei algumas assertivas de caráter aforístico, fora de conexão, sobre a gênese e o mecanismo mais estritamente psicológico dos processos obsessivos; assim, espero desenvolver as minhas primeiras observações sobre o assunto, publicadas em 1896.
Um programa desse tipo parece exigir de mim alguma justificativa. Isso porque, de outro modo, se poderia pensar que encaro esse método de fazer um comunicado como perfeitamente correto, e como um método a ser imitado; ao passo que, na realidade, me estou ajustando a obstáculos, alguns externos e outros inerentes ao próprio assunto. Eu teria, com satisfação, comunicado mais coisas, caso me fosse certo, ou possível, fazê-lo. Não posso fornecer uma história completa do tratamento, porque isso implicaria entrar em pormenores das circunstâncias da vida de meu paciente. O premente interesse de uma grande cidade, voltada com uma especial atenção para minhas atividades médicas, proíbe-me de dar um quadro fiel do caso. Por outro lado, vim progressivamente a encarar as distorções de que comumente se lançam mão em tais circunstâncias, como inúteis e passíveis de objeção. Sendo insignificantes, essas distorções pecam em seu objetivo de proteger o paciente contra a indiscreta curiosidade; ao passo que, se vão mais além, requerem um sacrifício muitíssimo grande, de vez que destroem a inteligibilidade do material, a qual depende, por sua coerência, precisamente dos pequenos detalhes da vida real. E, a partir dessa última circunstância, provém a verdade paradoxal de que é muito mais fácil divulgar os segredos mais íntimos do paciente do que os fatos mais inocentes e triviais a respeito dele: enquanto os primeiros não esclareceriam sua identidade, os outros, pelos quais ele é geralmente reconhecido, torná-la-iam óbvia a qualquer um.
Esta é a minha desculpa por haver reduzido tão drasticamente a história desse caso e seu tratamento. Ademais, posso oferecer razões ainda mais convincentes para o fato de haver-me limitado às afirmações de apenas alguns resultados desconexos da investigação psicanalítica das neuroses obsessivas. Devo confessar que ainda não logrei penetrar inteiramente na complicada textura de um sério caso de neurose obsessiva, e que, se fosse reproduzir a análise, me seria impossível tornar a estrutura (como, com o auxílio da análise, sabemos ou suspeitamos que ela exista) visível para os outros mediante o volume de trabalho terapêutico que se lhe superpõe. O que tão enormemente se acrescenta à dificuldade de fazê-lo são as resistências dos pacientes e as formas como elas se expressam. Contudo, mesmo não levando isso em consideração, é preciso admitir que uma neurose obsessiva não é, em si, algo fácil de compreender - é muito menos fácil do que um caso de histeria. Na realidade, o fato é que esperaríamos achar o contrário. A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos de poder orientar-nos a seu respeito com mais facilidade de vez que se refere com mais proximidade às formas de expressão adotadas pelo nosso pensamento consciente do que a linguagem da histeria. Sobretudo, não implica o salto de um processo mental a uma inervação somática - conversão histérica - que jamais nos pode ser totalmente compreensível.
Talvez seja apenas porque estejamos pouco familiarizados com as neuroses obsessivas que não vemos essas expectativas confirmadas pelos fatos. As pessoas que sofrem de um sério grau de neurose obsessiva se apresentam com muito menos freqüência a um tratamento analítico do que os pacientes histéricos. Dissimulam também sua condição na vida cotidiana, pelo tempo que puderem, e muitas vezes visitam um médico somente quando a sua queixa atingiu um estádio avançado tal que, se estivessem sofrendo, por exemplo, de tuberculose pulmonar, teria acarretado a recusa de sua admissão a um sanatório. Faço essa comparação porque, como acontece com a infecciosa doença crônica que acabo de mencionar, podemos apontar inúmeros êxitos terapêuticos notáveis em casos sérios, não menos do que em casos brandos, de neurose obsessiva, onde estes foram manipulados em um estádio precoce.
Nessas circunstâncias, não há alternativa senão relatar os fatos de um modo imperfeito e incompleto, no qual eles são conhecidos e pelo qual é legítimo que se os comunique. Os fragmentos de conhecimento oferecidos nestas páginas, embora tenham sido reunidos com suficiente laboriosidade, não podem, em si, dar provas de satisfazerem a contento; podem, contudo, servir de ponto de partida para o trabalho de outros investigadores, e um esforço comum poderá trazer o êxito que talvez esteja além do alcance do esforço individual.

I - EXTRATOS DO CASO CLÍNICO

Um jovem senhor de formação universitária apresentou-se a mim com a asserção de que ele sempre havia sofrido de obsessões, desde a infância, mas com intensidade especial nos últimos quatro anos. Os aspectos principais de seu distúrbio eram medos de que algo pudesse acontecer a duas pessoas de quem ele gostava muito: seu pai e uma dama a quem admirava. Além disso, ele estava consciente de impulsos compulsivos, tais como, por exemplo, um impulso de cortar a garganta com uma lâmina; posteriormente, criou proibições, às vezes em conexão com coisas um tanto sem importância. Contou-me que gastou anos lutando contra essas suas idéias, e desse modo perdera muito terreno no transcorrer de sua vida. Havia experimentado vários tratamentos, mas nenhum lhe valeu, com exceção de uma temporada de tratamento por hidroterapia num sanatório próximo; e isso, pensava ele, provavelmente fora possível apenas porque lá travara conhecimentos com alguém, o que o levara a manter relações sexuais regulares. Aqui ele não tinha oportunidades dessa espécie, e raramente tivera relações, apenas em intervalos irregulares. Sentia repulsa por prostitutas. Ao mesmo tempo, disse ele, sua vida sexual havia sido obstruída; a masturbação desempenhara apenas um pequeno papel nela, quando tinha dezesseis ou dezessete anos de idade. Sua potência era normal; a primeira vez que teve relações sexuais tinha vinte e seis anos.
Ele me deu a impressão de ser uma pessoa de mente clara e sagaz. Quando lhe perguntei sobre o que o fizera pôr ênfase em contar-me a respeito de sua vida sexual replicou ser isso o que ele sabia sobre as minhas teorias. Na realidade, porém, ele não lera nenhum de meus escritos, com exceção de pouco tempo antes ter folheado as páginas de um de meus livros, tendo encontrado a explicação de algumas curiosas associações verbais que lhe recordaram tanto alguns de seus próprios ‘esforços de pensamento’ em correlação com suas idéias, que decidira colocar-se sob meus cuidados.

(A) O INÍCIO DO TRATAMENTO

No dia seguinte, eu o fiz comprometer-se a submeter-se à única e exclusiva condição do tratamento, ou seja, dizer tudo que lhe viesse à cabeça, ainda que lhe fosse desagradável ou que lhe parecesse sem importância, irrelevante ou sem sentido. Então lhe dei permissão para iniciar suas comunicações com qualquer assunto que o contentasse, e assim ele começou.
Disse-me que tinha um amigo sobre o qual possuía uma opinião extraordinariamente elevada. Costumava procurá-lo sempre que estava atormentado por algum impulso criminoso, e perguntar-lhe se ele o desprezava, como se despreza um criminoso. Seu amigo costumava, então, dar-lhe apoio moral, assegurando-lhe que ele era um homem de conduta irrepreensível e que provavelmente tinha tido o hábito, a partir de sua juventude, de encarar obscuramente sua própria vida. Numa época anterior, prosseguiu, outra pessoa havia exercido uma influência semelhante sobre ele. Era um estudante de dezenove anos (ele próprio tinha quatorze ou quinze anos, naquele tempo) que passara a ter amizade por ele, e que levara sua auto-estima a um grau extraordinário, de tal forma que ele, para si mesmo, pareceu ser um gênio. Esse estudante, subseqüentemente, tornou-se seu professor, e de repente modificou seu comportamento e começou a tratá-lo como se fosse um idiota. Por fim, notou que o estudante estava interessado numa de suas irmãs, e compreendeu que ele o havia aceito apenas para conseguir admissão na casa. Este foi o primeiro grande golpe de sua vida.
Então, ele prosseguiu sem qualquer transição aparente:

(B) SEXUALIDADE INFANTIL.

‘Minha vida sexual começou muito cedo. Posso lembrar-me de uma cena durante meu quarto ou quinto ano de idade (dos seis anos em diante posso lembrar-me de tudo). Essa cena veio-me à cabeça um pouco distintamente, anos depois. Tínhamos uma governanta, muito jovem e bonita, chamada Fräulein Peter. Certa noite, ela estava deitada no sofá, ligeiramente vestida, lendo. Eu estava deitado ao seu lado e pedi-lhe para arrastar-me para debaixo de sua saia. Ela me disse que podia, desde que eu nada dissesse sobre isso a ninguém. Ela tinha muito pouca roupa por cima, e manipulei com os dedos seus genitais e a parte inferior do seu corpo, o que me chocou como algo muito extravagante. Depois disso, fiquei com uma curiosidade ardente e atormentadora de ver o corpo feminino. Ainda posso lembrar a intensa excitação com que eu, nos Banhos (aos quais ainda me permitiam ir com a governanta e com minhas irmãs), esperava a governanta despir-se e entrar na água. Posso lembrar-me de mais coisas a partir dos seis anos de idade. Àquela época tínhamos uma outra governanta, também jovem e de boa aparência. Ela tinha abcessos nas nádegas, os quais tinha hábito de espremer à noite. Eu costumava esperar avidamente por aquele momento, para apaziguar a minha curiosidade. Era a mesma coisa, como nos Banhos - embora Fräulein Lina fosse mais reservada que sua predecessora.’ (Em resposta a uma pergunta que fiz de permeio: ‘Via de regra’, o paciente contou-me, ‘eu não dormia no quarto dela, mas na maioria das vezes com meus pais.’) ‘Lembro-me de uma cena que deve ter-se passado quando eu tinha sete anos. Estávamos sentados, juntos, certa noite - a governanta, a cozinheira, outra criada, eu e meu irmão, dezoito meses mais novo que eu. As jovens estavam conversando e eu, de repente, me tornei cônscio do que Fräulein Lina dizia: “Poder-se-ia fazê-lo com o pequeno; mas Paul” (era eu) “é muito desajeitado, seguramente ele iria falhar.” Eu não entendia claramente o que estavam querendo dizer, contudo senti a desconsideração e comecei a chorar. Lina confortou-me e me contou com uma jovem que fizera algo daquele tipo com um menininho de que se encarregava fora presa por vários meses. Não acredito que ela realmente fez algo errado comigo, mas tomei muitas liberdades com ela. Quando subia na sua cama eu costumava descobri-la e tocá-la, e ela não fazia objeções. Ela não era muito inteligente e tinha claramente desejos sexuais, fortes e excessivos. Com vinte e três anos ela tivera um filho. Depois se casou com o pai deste, de modo que hoje é uma Frau Hofrat. Mesmo hoje, vejo-a com freqüência na rua.
‘Quando eu tinha seis anos, já sofria de ereções, e sei que, certa vez, fui até minha mãe queixar-me delas. Também sei que, assim fazendo, eu tinha alguns receios para superar, pois tinha um pressentimento de que havia alguma conexão entre esse assunto e minhas idéias e minhas indagações, e naquela época eu costumava ter uma idéia mórbida de que meus pais conheciam meus pensamentos; dei-me a explicação disso supondo que os havia revelado em voz alta, sem haver-me escutado fazê-lo. Encaro esse fato como o começo de minha doença. Havia determinadas pessoas, moças, que muito me agradavam, e eu tinha um forte desejo de vê-las despidas. Contudo, desejando isso, eu tinha um estranho sentimento, como se algo devesse acontecer se eu pensasse em tais coisas, e como se devesse fazer todo tipo de coisas para evitá-lo.’
(Em resposta a uma pergunta, ele me deu um exemplo desses seus temores: ‘Por exemplo, que meu pai deveria morrer.’) ‘Os pensamentos a respeito da morte de meu pai ocuparam minha mente desde uma idade muito precoce e por um longo período, deprimindo-me enormemente.’
Nesse ponto eu soube, com assombro, que o pai do paciente, com quem afinal seus temores obsessivos estavam agora ocupados [ver em [1]], falecera muitos anos antes.
Os eventos no seu sexto, ou sétimo, ano de idade, que o paciente descreveu na primeira sessão de seu tratamento, não eram puramente, como ele supunha, o começo de sua enfermidade, mas já eram a própria doença. Era uma neurose obsessiva completa, não faltando elemento essencial algum, e ao mesmo tempo o núcleo e o protótipo do distúrbio posterior - um organismo elementar, digamos, cujo estudo poderia, sozinho, capacitar-nos a obter um apanhado da complicada organização de sua subseqüente enfermidade. A criança, como vimos, estava sob o domínio de um componente do instinto sexual, o desejo de olhar [escopofilia]; como resultado deste, existia nele uma constante recorrência de um desejo muito intenso relacionado com pessoas do sexo feminino que o agradavam - ou seja, o desejo de vê-las nuas. Esse desejo corresponde à última idéia obsessiva ou compulsiva; e se a qualidade da compulsão ainda não estava presente no desejo, era porque o ego ainda não se havia posto em oposição a ele e ainda não o encarava como algo estranho a si próprio. Não obstante, a oposição a esse desejo a partir dessa ou daquela fonte já estava em atividade, de vez que sua ocorrência era regularmente acompanhada de um afeto aflitivo. Um conflito estava evidentemente progredindo na mente desse jovem libertino. Paralelamente ao desejo obsessivo, e com ele intimamente associado, havia um medo obsessivo; sempre que ele tinha um desejo desse tipo, não podia evitar de temer que algo terrível fosse acontecer. Essa coisa terrível já estava vestida de uma indefinição característica, que desde então deveria ser um aspecto invariável de toda manifestação da neurose. Contudo, numa criança não é difícil descobrir o que é que está oculto por trás de uma indefinição desse tipo. Se o paciente pode ser uma vez induzido a fornecer um exemplo particular, em lugar das vagas generalidades que caracterizam uma neurose obsessiva, pode-se confiantemente aceitar que o exemplo é a coisa original e real que tentou esconder-se por trás da generalização. Portanto, o medo obsessivo de nosso atual paciente, quando restabelecido seu significado original, seria como se segue: ‘Se tenho esse desejo de ver uma mulher despida, meu pai deverá fatalmente morrer.’ O afeto aflitivo estava distintamente colorido com um matiz de estranheza e superstição, e já estava começando a gerar impulsos para fazer algo a fim de evitar o mal iminente. Esses impulsos deveriam, subseqüentemente, desenvolver-se em medidas de proteção que o paciente adotava.
Em conseqüência, achamos o seguinte: um instinto erótico e uma revolta contra ele; um desejo que ainda não se tornou compulsivo e, lutando contra ele, um medo já compulsivo; um afeto aflitivo e uma impulsão em direção ao desempenho de atos defensivos. O inventário da neurose alcançou sua amostragem completa. Com efeito, alguma coisa mais está presente, ou seja, uma espécie de delírio ou delirium com o estranho conteúdo de que seus pais conheciam seus pensamentos, porque ele os expressava em voz alta, sem escutar a si próprio fazê-lo. Não nos extraviaremos tanto, se supusermos que, fazendo essa tentativa de uma explicação, a criança tinha alguma suspeita daqueles notáveis processos mentais que descrevemos como inconscientes e que não podemos tolerar, se é que devemos esclarecer cientificamente esse obscuro assunto. ‘Expresso em voz alta meus pensamentos, sem ouvi-los’ soa como uma projeção no mundo externo de nossa própria hipótese de que ele tinha pensamentos sem nada conhecer a respeito deles; soa como uma percepção endopsíquica daquilo que foi reprimido.
A situação é clara. A elementar neurose de infância já envolvia um problema e um aparente absurdo, como qualquer complicada neurose da maturidade. Qual pode ter sido o significado da idéia da criança de que, se ele tivesse esse lascivo desejo, seu pai estaria fadado a morrer? Era puro disparate? Ou existem meios de compreender as palavras e de percebê-las tal como uma conseqüência necessária de eventos e premissas anteriores?
Se aplicarmos algum conhecimento adquirido em outra parte a este caso de neurose infantil, não seremos capazes de evitar uma suspeita de que, neste exemplo, como em outros (isto é, antes de a criança haver chegado à idade de seis anos), houve conflitos e repressões que foram surpreendidos pela amnésia, mas que deixaram atrás de si, como um resíduo, o contexto particular desse medo obsessivo. Mais tarde, saberemos com que extensão nos será possível redescobrir aquelas experiências esquecidas ou reconstruí-las com algum grau de certeza. Nesse ínterim, pode-se enfatizar o fato (o qual é, provavelmente, mais do que uma mera coincidência) de que a amnésia infantil do paciente terminou exatamente com seu sexto ano de idade [ver em [1]].
Encontrar uma neurose obsessiva crônica que começa assim, na tenra infância, com desejos lascivos dessa espécie, correlacionados com estranhas apreensões e uma propensão ao desempenho de atos defensivos, não é nada de novo para mim. Tenho deparado isso em inúmeros outros casos. É absolutamente típico, embora provavelmente não seja o único tipo possível. Antes de passar aos eventos da segunda sessão, gostaria de acrescentar mais uma palavra a respeito das primeiras experiências sexuais do paciente. Dificilmente se porá em discussão o fato de que elas podem ser descritas como experiências que foram consideráveis, quer em si mesmas, quer nas conseqüências que tiveram. Contudo, foi o mesmo que aconteceu com os outros casos de neurose obsessiva que tive a oportunidade de analisar. Tais casos, distintamente daqueles de histeria, possuem invariavelmente a característica de uma atividade sexual prematura. As neuroses obsessivas, mais do do que as histerias, tornam óbvio que os fatores que formarão uma psiconeurose podem ser encontrados na vida sexual infantil do paciente, e não em sua vida atual. A vida sexual atual de um neurótico obsessivo pode, com freqüência, parecer perfeitamente normal a um observador superficial; com efeito, ela freqüentemente oferece aos olhos elementos e anormalidades patogênicas bem menos numerosas do que no exemplo que ora estamos considerando.

(C) O GRANDE MEDO OBSESSIVO

‘Acho que hoje começarei com a experiência que constituiu motivo imediato para eu vir visitá-lo. Foi em agosto, durante as manobras em ……… Eu antes estivera padecendo e me atormentando com todas as espécies de pensamentos obsessivos, mas eles passaram rapidamente durante as manobras. Eu estava a fim de mostrar aos oficiais regulares que pessoas como eu não só haviam aprendido bastante, mas também podiam agüentar bastante. Um dia, partimos de……… em marcha lenta. Durante uma parada, perdi meu pince-nez e, embora pudesse encontrá-lo facilmente, não queria atrasar nossa partida, de modo que o deixei para lá. Todavia, telegrafei aos meus oculistas em Viena para que me enviassem um par, pelo próximo correio. Durante aquela mesma parada sentei-me entre dois oficiais, um dos quais, um capitão de nome tcheco, não iria ter pequena importância para mim. Eu tinha certo terror dele, pois ele obviamente gostava de crueldade. Não digo que era um homem mau, mas no grupo de oficiais ele sempre havia defendido a introdução de castigo corporal, de modo que eu fora obrigado a discordar dele com veemência. Pois bem, durante a parada passamos a conversar, e o capitão contou-me que havia lido sobre um castigo particularmente horrível aplicado no Leste…’
Aqui o paciente interrompeu-se, levantou-se do divã e pediu-me que lhe poupasse a exposição dos detalhes. Assegurei-lhe que eu próprio não tinha gosto, qualquer que fosse, por crueldade, e certamente não tinha desejo algum de atormentá-lo; contudo, naturalmente não podia conceder-lhe algo que estava além de minhas forças. Ele podia, igualmente, pedir-me para lhe dar a lua. A superação das resistências era uma lei do tratamento, e de forma alguma poder-se-ia dispensá-la. (Expliquei a idéia de `resistência’ a ele, no começo da sessão, quando me contou que havia nele muita coisa que ele teria de superar, se tivesse de relatar essa sua experiência.) Continuei, dizendo que faria tudo que pudesse para, não obstante, adivinhar o pleno significado de quaisquer pistas que me fornecesse. Será que ele estava pensando em cerca de estacas? - `Não, isso não;… o criminoso foi amarrado…’ - expressou-se ele tão indistintamente, que não pude adivinhar logo em qual situação - `…um vaso foi virado sobre suas nádegas… alguns ratos foram colocados dentro dele… e eles…’ - de novo se levantou e mostrava todo sinal de horror e resistência - `cavaram caminho no…’ - Em seu ânus, ajudei-o a completar.
Em todos os momentos importantes, enquanto me contava sua história, sua face assumiu uma expressão muito estranha e variada. Eu só podia interpretá-la como uma face de horror ao prazer todo seu do qual ele mesmo não estava ciente. Prosseguiu com a maior dificuldade: `Naquele momento atravessou minha mente, como um relâmpago, a idéia de que isso estava acontecendo a uma pessoa que me era muito cara.’ Respondendo a uma pergunta direta, ele disse que não era ele mesmo quem estava infligindo o castigo, mas que este estava sendo aplicado como se fosse de forma impessoal. Após pequena insinuação, eu soube que a pessoa a quem essa sua `idéia’ se referia era a dama a quem ele admirava.
Interrompeu sua história para me assegurar de que esses pensamentos lhe eram totalmente alheios e repulsivos, e para contar-me que tudo que se tinha seguido, no curso deles, passara por sua cabeça com a mais extraordinária rapidez. Simultaneamente à idéia, sempre aparecia uma `sanção’, isto é, a medida defensiva que ele estava obrigado a adotar, a fim de evitar que a fantasia fosse realizada. Quando o capitão falara desse horrendo castigo, ele prosseguiu, e essas idéias lhe vieram à mente, empregando as suas fórmulas de praxe (um `mas’ acompanhado de um gesto de repúdio, e a frase `o que é que você está pensando’), ele acabara por conseguir evitar ambas. [Cf. em [1].]
Esse `ambas’ surpreendeu-me, e não há dúvida de que também confundiu o leitor. Isso porque, até aqui, ouvimos apenas uma idéia - de o castigo com rato ser aplicado à dama. Agora ele estava obrigado a admitir que uma segunda idéia lhe ocorrera simultaneamente, ou seja, a idéia do castigo sendo também aplicado a seu pai. Como seu pai havia falecido muitos anos antes, esse medo obsessivo era muito mais disparatado até mesmo do que o primeiro; e, em conseqüência, tentara evadir-se de ser confessado por mais algum tempo.

Naquela noite, prosseguiu, o mesmo capitão entregou-lhe um pacote, chegado pelo correio, e dissera: `O Tenente A. pagou as despesas para você. Você lhe deve reembolsar.’ O pacote continha o pince-nez pelo qual ele havia telegrafado. Naquele instante, contudo, uma `sanção’ tomara forma em sua mente, ou seja, ele não devia devolver em pagamento o dinheiro, ou aquilo iria acontecer (isto é, a fantasia sobre os ratos se realizaria em relação a seu pai e à dama). E imediatamente, conforme um tipo de procedimento que lhe era familiar, para combater essa sanção surgira uma ordem na forma de um juramento: `Você deve pagar de volta as 3.80 coroas ao Tenente A.’ Ele dissera essas palavras a si próprio quase em voz alta.
Dois dias depois, terminaram as manobras. Ele passara todo o tempo de entremeio fazendo esforços para reembolsar o Tenente A. com a pequena quantia em questão; entretanto, uma série de dificuldades, de natureza aparentemente externa, surgiu para impedi-lo. Primeiramente ele tentara efetuar o pagamento mediante um outro oficial que fora para a agência postal. Mas aliviara-se bastante, quando esse oficial lhe trouxe o dinheiro de volta, dizendo que não encontrara lá o Tenente A.; isso porque esse método de realizar seu juramento não lhe satisfizera, na medida em que não correspondia à expressão, que era a seguinte: `Você deve pagar de volta o dinheiro ao Tenente A.’ Finalmente, encontrara o Tenente A., a pessoa que ele estava procurando; mas esse oficial recusara-se a aceitar o dinheiro, declarando que ele nada havia pago para ele, e nada, seja o que fosse, tinha a ver com os correios, que era responsabilidade do Tenente B. Isso causou enorme perplexidade ao meu paciente, pois significava que era incapaz de manter seu juramento, uma vez que fora baseado em falsas premissas. Ele urdira um meio muito curioso de sair da sua dificuldade; ou seja, ele iria à agência postal com ambos os homens, A. e B., A. daria lá à jovem dama, as 3.80 coroas, a jovem dama as daria a B., e então ele mesmo devolveria em pagamento as 3.80 coroas a A., segundo as palavras de seu juramento.
Não me surpreenderia ouvir que, a essa altura, o leitor interrompesse sua capacidade de acompanhar essa exposição, pois mesmo o relato pormenorizado que o paciente me forneceu acerca dos eventos externos daqueles dias e de suas reações a eles estava pleno de contradições e soava desesperadamente confuso. Somente quando narrou a história pela terceira vez, pude fazê-lo compreender as obscuridades dela e pude pôr a nu os erros de memória e os deslocamentos nos quais ele ficara envolvido. Poupar-me-ei a dificuldade de reproduzir esses detalhes, cujos pontos essenciais eu, com facilidade, serei capaz de retomar mais tarde; apenas acrescentarei que, no final dessa segunda sessão, o paciente se comportou como se estivesse ofuscado e desnorteado. Repetidamente se dirigia a mim como `Capitão’, provavelmente porque no início da consulta eu lhe contara que eu próprio não gostava de crueldade, como o Capitão N., e que eu não tinha intenção de atormentá-lo sem necessidade.
A única parte restante de informação que dele consegui durante essa consulta foi que, a partir da primeira ocasião, em todas as ocasiões anteriores nas quais ele tivera medo de que algo aconteceria a pessoas a quem ele amava não menos do que no momento presente, ele referira as punições não apenas à nossa vida atual, mas também à eternidade - o outro mundo. Até esse décimo quarto ou décimo quinto ano fora religioso devoto, mas a partir dessa época evoluiu gradualmente para o livre-pensador que ele era hoje em dia. Reconciliou a contradição [entre suas crenças e suas obsessões], dizendo a si próprio: `O que pensa você sobre o próximo mundo? O que sabem os outros a esse respeito? Nada pode ser conhecido a respeito dele. Você nada está arriscando - faça-o então.’ Essa forma de argumentação parecia irrepreensível para um homem que, em outros aspectos, era particularmente lúcido; dessa forma ele explorou a incerteza da razão em face dessas perguntas, em benefício da atitude religiosa que ele tinha deixado que continuasse crescendo.
Na terceira sessão, completou sua história, deveras característica, de seus esforços para cumprir seu juramento obsessivo. Naquela noite, a última reunião de oficiais realizou-se antes do fim das manobras. Coube-lhe responder ao brinde de `O Cavalheiro da Reserva’. Ele falara bem, mas como se estivesse em um sonho, de vez que atrás de sua mente estava sendo incessantemente atormentado pelo seu juramento. Passou uma noite terrível. Argumentos e contra-argumentos debatiam-se entre si. O principal argumento fora, naturalmente, que a premissa na qual se baseava seu juramento - de que o Tenente A. lhe pagara o dinheiro - provou ser falsa. Entretanto, consolara-se com o pensamento de que o negócio ainda não estava concluído, pois A. estaria, na manhã seguinte, dirigindo-se com ele por parte do caminho até a estação ferroviária em P………, de modo que ele ainda teria tempo de lhe pedir um favor necessário. Na realidade, ele não o fizera e permitiu a A. sair sem ele; contudo, dera instruções a seu adjunto para fazer A. saber que ele tinha intenção de lhe fazer uma visita à tarde. Ele próprio alcançou a estação às nove e meia da manhã. Lá depositara a sua bagagem e providenciara várias coisas que tinha de fazer na cidadezinha, com a intenção de depois fazer a visita a A. A vila para onde A. fora nomeado distava cerca de uma hora de viagem da cidade de P ……… A viagem por trem até o lugar onde estava a agência postal [Z………] levaria três horas. Ele calculara, portanto, que a execução de seu complicado plano lhe daria tempo exato para apanhar o trem da noite, que partia de P……… para Viena. As idéias que lutavam dentro dele foram, de um lado, que ele estava simplesmente sendo covarde e obviamente apenas tentando escapar do desprazer de pedir a A. que fizesse o sacrifício em questão e de fazer uma figura idiota à frente dele, e isso é que explicava por que ele estava desrespeitando seu juramento. Por outro lado, era a idéia de que, pelo contrário, seria covardia sua realizar o seu juramento, de vez que só queria fazê-lo assim, a fim de que fosse deixado em paz por suas obsessões. Quando, no decurso de suas deliberações, acrescentou o paciente, ele achava os argumentos tão nitidamente equilibrados assim, era seu hábito permitir que seus atos fossem decididos por eventos casuais, embora pelas mãos de Deus. Por conseguinte, quando um carregador na estação se dirigiu a ele com as palavras `O trem das dez horas, senhor?’ ele respondeu `Sim’, e de fato fora no trem das dez horas. Desse modo, criou um fait accompli e se sentiu enormemente aliviado. Providenciara a reserva de um lugar para a refeição no carro-restaurante. Na primeira estação em que pararam, lembrou-se, de repente, de que ainda tinha tempo para sair, esperar pelo próximo trem que descia, viajar de volta nele até P……, dirigir-se até o lugar onde o Tenente A. estava aquartelado, de lá empreender a viagem de trem de três horas de percurso junto com ele até a agência postal, e assim por diante. Fora apenas a consideração de que reservara seu lugar para a refeição com o comissário do carro-restaurante que o impedira de realizar esse plano. Ele, contudo, não o abandonara; só deixara para sair numa próxima parada. Dessa maneira, ele se debatera com as idéias de estação a estação, até que alcançara uma, na qual lhe parecia impossível sair, porque tinha parentes que lá moravam. Determinara, pois, atravessar Viena, cumprimentar lá o seu amigo e lhe expor todo o assunto, e assim, depois que seu amigo tivesse tomado sua decisão, apanhar o trem noturno de volta a P……… Quando expus a dúvida quanto a saber se isso teria sido viável, assegurou-me que teria tido meia hora a poupar entre a chegada de um trem e a partida do outro. Entretanto, quando chegara a Viena, não conseguiu encontrar seu amigo no restaurante onde esperava encontrá-lo, nem encontrara a casa do seu amigo até as onze horas da noite. Ele lhe contou toda a história naquela mesma noite. Seu amigo mantivera suas mãos erguidas de assombro, por pensar que ele ainda podia duvidar se estava sofrendo de uma obsessão, e o acalmou naquela noite, de modo que ele pudesse dormir tranqüilo. Na manhã seguinte, foram juntos para a agência postal a fim de remeter as 3.80 coroas à agência postal [Z………], onde havia chegado o pacote contendo o pince-nez.
Foi essa última explicação que me forneceu um ponto de partida do qual pude começar a pôr em ordem as diversas distorções implicadas em sua história. Depois que seu amigo o trouxe ao seu perfeito juízo, ele não remetera a pequena quantia de dinheiro em questão, nem ao Tenente A. nem ao Tenente B., mas diretamente à agência postal. Ele, portanto, deve ter sabido que devia a importância das despesas com o pacote a mais ninguém senão ao oficial da agência postal, e deve ter sabido isso antes de iniciar sua viagem. Revelou-se que, com efeito, ele o soubera antes de o capitão fazer seu pedido e antes que ele próprio fizesse seu juramento; isso porque agora lembrava que poucas horas antes de encontrar o cruel capitão tivera ocasião de se apresentar a outro capitão, que lhe contara como estavam realmente as coisas. Esse oficial, ouvindo seu nome, lhe contara que estivera na agência postal pouco tempo antes e que aí a jovem dama lhe perguntou se ele conhecia o Tenente L., (que é o paciente), para quem chegara um pacote, a pagar contra-entrega. O oficial respondeu que não, mas a jovem dama fora de opinião que ela podia confiar no desconhecido tenente e dissera que, no meio tempo, ela própria pagaria as taxas. Fora assim que o paciente se apossou do pince-nez que havia encomendado. O cruel capitão cometera um equívoco quando, ao lhe entregar o pacote, lhe pediu para pagar a A., em reembolso, as 3.80 coroas, e o paciente deve ter sabido que foi um engano. Apesar disso, fizera um juramento fundado nesse equívoco, um juramento que estava fadado a ser um tormento para ele. Assim fazendo, suprimira para si próprio, justamente como suprimira para mim ao contar a história, o episódio do outro capitão e a existência da confiante jovem na agência postal. Devo admitir que, quando se fez essa correção, seu comportamento se tornou cada vez mais sem sentido e ininteligível do que antes.

Depois que deixou seu amigo e retornou à família, suas dúvidas mais uma vez o assaltaram. Os argumentos de seu amigo, via ele, não foram diferentes dos seus próprios argumentos, e ele não estava em delírio algum de que seu alívio temporário podia ser atribuído a alguma coisa mais além da influência pessoal do amigo. Sua determinação de consultar um médico configurou-se num delírio da seguinte forma engenhosa: Pensava que iria encontrar um médico que lhe desse certificação do fato de que, para recobrar a saúde, lhe era necessário realizar um ato tal como ele planejara com relação ao Tenente A.; e o tenente, sem dúvida, deixar-se-ia persuadir pela certificação a aceitar dele as 3.80 coroas. A oportunidade de um dos meus livros ter caído em suas mãos justamente naquele momento orientou a sua escolha para mim. Não era, contudo, questão de conseguir de mim um certificado; tudo quanto me pediu foi, fato muito razoável, ser libertado de suas obsessões. Muitos meses depois, quando sua resistência atingiu seu ápice, sentiu uma vez mais a tentação de viajar a P………, apesar de tudo, a fim de visitar o Tenente A. e realizar a farsa de lhe devolver o dinheiro.

(D) INICIAÇÃO NA NATUREZA DO TRATAMENTO

O leitor não deve esperar ouvir de imediato como tento esclarecer as estranhas e absurdas obsessões do paciente acerca dos ratos. A verdadeira técnica da psicanálise requer que o médico suprima sua curiosidade, e deixe ao paciente liberdade total para escolher a ordem na qual os tópicos sucederão um ao outro durante o tratamento. Na quarta consulta, conseqüentemente, recebi o paciente com a seguinte pergunta: `E como o senhor pretende prosseguir hoje?’
`Decidi contar-lhe algo que considero mais importante e que me atormentou desde o primeiro instante.’ Ele então me contou, com muitos detalhes, a história da última doença de seu pai, que morrera de enfisema, nove anos atrás. Certa noite, achando que se tratava de um estado que acarretaria uma crise, perguntara ao médico quando o perigo poderia ser considerado acabado. `Na noite depois de amanhã’, fora a resposta. Nunca havia imaginado que seu pai poderia não sobreviver além daquele limite. À noite, às onze e meia, deitara-se para descansar por uma hora. Despertara a uma hora, e soube por um amigo médico que seu pai havia morrido. Censurou-se por não ter estado presente à hora de sua morte; e a censura intensificara-se quando a enfermeira lhe contou que seu pai dissera seu nome uma vez nos últimos dias, e dissera a ela, ao aproximar-se do leito: `É o Paul?’ Ele pensara haver observado que sua mãe e suas irmãs estivessem propensas a se censurarem de uma forma parecida; elas, porém, jamais falaram a esse respeito. Contudo, no princípio, a censura não o atormentara. Por muito tempo não compreendia o fato de o pai haver morrido. Constantemente sucedia que ele, ao escutar uma boa piada, dissesse para si: `Preciso contar essa a papai.’ Também a sua imaginação estivera ocupada com o pai, de modo que, com freqüência, quando batiam à porta, ele iria pensar: `É papai que está chegando’, e quando ia para uma sala esperaria encontrar seu pai nela. E, embora jamais tivesse esquecido que seu pai estava morto, a probabilidade de ver uma aparição fantasmagórica desse tipo não encerrara terrores para ele; pelo contrário, ele desejara isso muitíssimo. Somente dezoito meses depois é que a recordação de sua negligência lhe veio e começou a atormentá-lo terrivelmente, de forma que passara a tratar a si próprio como um criminoso. A ocasião desse acontecimento fora a morte de uma tia emprestada, e uma visita de condolência paga em casa dela. A partir daquele tempo, ele ampliou a estrutura de seus pensamentos obsessivos de maneira a incluir o outro mundo. A conseqüência imediata dessa evolução fora ele ficar seriamente incapacitado de trabalhar. Ele me contou que a única coisa que o levava a continuar avante naquele tempo era o consolo que lhe dera o amigo, o qual sempre afastara as suas autocensuras, com base no fato de que elas eram totalmente exageradas. Ouvindo isso, aproveitei a oportunidade para lhe dar um primeiro vislumbre dos princípios básicos da terapia psicanalítica. Quando, assim iniciei, existe uma mésalliance entre um afeto e seu conteúdo ideativo (neste exemplo, entre a intensidade da autocensura e a oportunidade para ela manifestar-se), um leigo irá dizer que o afeto é demasiadamente grande para a ocasião - que isso é exagerado - e que, conseqüentemente, a inferência originária da autocensura (a inferência de que o paciente é um criminoso) é falsa. Pelo contrário, o médico [analista] diz: `Não. O afeto se justifica. O sentimento de culpa não está, em si, aberto a novas críticas. Mas pertence a algum outro contexto, o qual é desconhecido (inconsciente) e que exige ser buscado. O conteúdo ideativo conhecido só entrou em sua posição real graças a uma falsa conexão. Não estamos acostumados a sentir fortes afetos, sem que eles tenham algum conteúdo ideativo; e, portanto, se falta o conteúdo, apoderamo-nos, como um substituto, de algum outro conteúdo que seja, de uma ou de outra forma, apropriado, com a mesma intensidade com que a nossa polícia, não podendo agarrar o assassino certo, prende, em seu lugar, uma pessoa errada. Além disso, esse fato de existir uma falsa conexão é o único meio de se responder pela impotência dos processos lógicos para combater a idéia atormentadora.’ Concluí admitindo que esse novo meio de encarar o assunto deu origem imediatamente a alguns problemas difíceis; porque, como podia ele admitir ser justificada a sua autocensura de ser um criminoso com relação ao seu pai, quando precisa saber que, na realidade, jamais cometera crime algum contra ele?
Na sessão seguinte, o paciente mostrou grande interesse por aquilo que eu dissera, mas se arriscou, conforme me contou, a apresentar algumas dúvidas. - Como, perguntou, podia justificar-se a informação de que a autocensura, o sentimento de culpa, tenha um efeito terapêutico? - Expliquei que não era a informação que possuía esse efeito, mas sim a descoberta do conteúdo inconsciente ao qual a autocensura de fato estava ligada. - Sim, disse ele, este era o ponto exato ao qual fora dirigida a sua pergunta. - Fiz então algumas pequenas observações sobre as diferenças psicológicas entre o consciente e o inconsciente, e sobre o fato de que toda coisa consciente estava sujeita a um processo de desgaste, ao passo que aquilo que era inconsciente era relativamente imutável; e ilustrei meus comentários indicando as antiguidades que se encontravam ao redor, em minha sala. Era, com efeito, disse eu, apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento deles tinha sido o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava começando agora que ela fora desenterrada. - Havia alguma garantia de qual seria a atitude de alguém com relação ao que foi descoberto? Um homem, pensou ele, sem dúvida se comportaria de um modo tal a conseguir o melhor de sua autocensura; outro, porém, não o faria. - Não, disse eu, seguia da natureza das circunstâncias o fato de que, em todo caso, o afeto seria superado - na maior parte, durante o progresso do próprio trabalho. Foi feito todo esforço para preservar Pompéia, enquanto as pessoas estavam ansiosas por se livrarem de idéias atormentadoras como as suas. - Ele disse a si mesmo, prosseguiu, que uma autocensura só podia originar-se de um rompimento dos próprios princípios morais internos de uma pessoa e não do de quaisquer outros princípios externos. - Concordei, e disse que o homem que simplesmente rompe com uma lei externa muitas vezes se vê como um herói. - Uma ocorrência assim, continuou, era então possível apenas onde já estivesse presente uma desintegração da personalidade. Havia uma possibilidade de ele efetuar uma reintegração da sua personalidade? Caso isso pudesse realizar-se, ele achava que seria capaz de tornar a sua vida um êxito, talvez mais do que a maioria das pessoas. - Respondi que eu estava completamente de acordo com essa noção de uma divisão (splitting) da sua personalidade. Ele apenas tinha de assimilar esse novo contraste, entre um eu (self) moral e um eu (self) mau, com o contraste que eu já mencionara, entre o consciente e o inconsciente. O eu (self) moral era o consciente, o eu (self) mau era o inconsciente. Ele então disse, embora se considerasse uma pessoa moral, que podia lembrar-se, com bastante determinação, de haver feito coisas em sua infância que provinham do seu outro eu (self). - Observei que, aqui, ele havia incidentalmente atingido uma das principais características do inconsciente, ou seja, a relação deste com o infantil. O inconsciente, expliquei, era o infantil; era aquela parte do eu (self) que ficara apartada dele na infância, que não participara dos estádios posteriores do seu desenvolvimento e que, em conseqüência, se tornara reprimida. Os derivados desse inconsciente reprimido eram os responsáveis pelos pensamentos involuntários que constituíram a sua doença. Agora, acrescentei, ele podia ainda descobrir uma outra característica do inconsciente; era uma descoberta que eu gostaria de deixá-lo realizar por si próprio. - Ele nada mais achou para dizer nessa conexão imediata, mas, em lugar disso, expressou a dúvida quanto a saber se era possível desfazer modificações de uma longa duração dessas. O que, em particular, poderia ser feito contra sua idéia acerca do outro mundo de vez que não podia ser refutada pela lógica? Eu lhe disse que nem debateria a gravidade do seu caso nem a significação de suas construções patológicas; contudo, ao mesmo tempo a sua juventude estava muitíssimo a seu favor, bem como a integridade da sua personalidade. Nessa conexão eu disse uma ou duas palavras sobre a boa opinião que eu formara sobre ele, e isto lhe causou visível prazer.
Na sessão seguinte, ele começou por dizer que devia contar-me um evento de sua infância. A partir dos seus sete anos, conforme já me dissera [ver em [1]], havia tido um medo de que seus pais adivinhassem seus pensamentos, e esse medo, com efeito, persistira por toda a sua vida. Com doze anos de idade tinha gostado de uma menina, irmã de um amigo seu. (Respondendo a uma pergunta, ele disse que seu amor não fora sensual; não quisera vê-la nua porque ela era muito pequena.) Todavia, ela não lhe mostrara tanta afeição como ele havia desejado. E, conseqüentemente, viera-lhe a idéia de que ela lhe seria afável se alguma desgraça viesse a lhe acontecer; e, como exemplo dessa desgraça, a morte de seu pai insinuou-se forçadamente em sua mente. Ele logo rejeitava com energia a idéia. Mesmo agora não podia admitir a possibilidade de que aquilo, que se originara desse modo, poderia ter sido um `desejo’; não fora, claramente, outra coisa senão uma `corrente de pensamento’. - À guisa de objeção, perguntei-lhe por que, caso não tivesse sido um desejo, ele o repudiara. - Somente, replicou ele, em virtude do conteúdo da idéia, a noção de que seu pai poderia morrer. - Observei que ele estava tratando a frase como se esta envolvesse uma lèse-majesté; bem se sabia, naturalmente, que era igualmente passível de punição dizer `O imperador é um burro’, ou disfarçar as palavras proibidas, dizendo `Se alguém diz etc.,… então esse alguém me terá como um que concorde com isso.’ Acrescentei que eu poderia facilmente inserir a idéia, que ele repudiara tão energicamente, num contexto que excluiria a possibilidade de qualquer repúdio desse tipo; por exemplo, `Se meu pai morrer, eu me matarei sobre seu túmulo.’ - Ele estava abalado, mas não abandonou sua objeção. Portanto, interrompi o argumento, com a observação de que eu estava seguro de essa não ter sido a primeira ocorrência da sua idéia de seu pai morrer; evidentemente ela se originara numa data mais anterior, e algum dia haveríamos de seguir sua história. - Então prosseguiu, dizendo-me que um pensamento exatamente idêntico perpassara como um raio a sua mente uma segunda vez, seis meses antes da morte de seu pai. Naquela época, ele já estivera namorando essa dama, mas obstáculos financeiros impossibilitaram que pensasse numa aliança com ela. Ocorrera-lhe, então, a idéia de que a morte de seu pai poderia torná-lo rico o suficiente para desposá-la. Defendendo-se dessa idéia ele estivera a ponto de desejar que seu pai não lhe deixasse absolutamente nada, de modo que ele não pudesse ter compensação alguma pela sua terrível perda. A mesma idéia, ainda que de forma muito mais amena, lhe adviera pela terceira vez, no dia anterior à morte de seu pai. Ele pensara: `Agora posso estar perdendo o que mais amo’; e então viera a contradição: `Não, existe alguém mais, cuja perda seria bem mais penosa para você.’ Esses pensamentos surpreenderam-no muito, de vez que ele estava bem seguro de que a morte de seu pai jamais poderia ter sido objeto de seu desejo, mas apenas de seu medo. - Após essas palavras, que enunciou forçadamente, achei aconselhável trazer à sua observação um novo fragmento de teoria. Conforme a teoria psicanalítica, eu lhe disse, todo medo correspondia a um desejo primeiro, agora reprimido; por conseguinte, éramos obrigados a acreditar no exato contrário daquilo que ele afirmara. Isto também se ajustaria a uma outra exigência teórica, ou seja, a de que o inconsciente deve ser o exato contrário do consciente. - Ele estava muito agitado com isso, e muito incrédulo. Queria saber como lhe fora possível ter um desejo desses, considerando que ele amava seu pai mais do que amava qualquer outra pessoa no mundo; não podia haver dúvida de que ele teria renunciado a todas as suas próprias perspectivas de felicidade se, fazendo-o, pudesse ter salvo a vida de seu pai. - Respondi que exatamente um amor assim intenso era a precondição necessária do ódio reprimido. No caso de pessoas com que se sentia indiferente, ele podia, seguramente, não ter dificuldades de manter, lado a lado, propensões a um prazer moderado e a um desprazer igualmente moderado; por exemplo, supondo-se que ele fosse um oficial, ele poderia pensar que seu chefe era agradável como um superior, contudo ao mesmo tempo um velhaco como um advogado, e desumano com um juiz. (Shakespeare faz Brutus falar de Júlio César de um modo semelhante: `Como César me amou, eu choro por ele; como foi afortunado; eu me regozijo com isso; como foi valoroso, eu o honro; mas, como foi ambicioso, eu o matei.’ Mas essas palavras já nos atingem como um tanto estranhas e pelo verdadeiro fato de que havíamos imaginado o sentimento de Brutus por César como algo mais profundo.) No caso de alguém que fosse mais íntimo dele, sua esposa, por exemplo, ele desejaria que seus sentimentos fossem puros, e, em conseqüência, como era apenas humano, ele não notaria as faltas dela, já que estas poderiam fazê-lo desgostar dela - ele as ignoraria como se não as enxergasse. Assim, foi precisamente a intensidade de seu amor que não permitiu que seu ódio - embora dar este nome fosse caricaturar o sentimento - permanecesse consciente. Para confirmar, o ódio precisa ter uma fonte, e descobrir essa fonte era certamente um problema; suas próprias afirmações indicavam a época em que ele temia que seus pais adivinhassem seus pensamentos. Por outro lado, também se poderia perguntar por que esse seu amor intenso não lograra extinguir seu ódio, como de praxe acontecia quando não havia dois impulsos antagônicos. Apenas poderíamos presumir que o ódio deve fluir de alguma fonte, que deve estar relacionado com alguma causa particular que o tornasse indestrutível. Por um lado, então, alguma conexão dessa espécie deve estar mantendo vivo seu ódio pelo pai, ao passo que, por outro lado, o seu intenso amor o impedia de tornar-se consciente. Por conseguinte, nada restou para ele, a não ser existir no inconsciente, embora fosse, vez ou outra, capaz de irradiar-se, por instantes, para dentro da consciência.
Ele admitiu que tudo isso ressoava um tanto plausível, mas ele naturalmente não estava, em última análise, convencido pelo fato. Disse que não se arriscaria a indagar como uma idéia desse tipo poderia conter remissões, como poderia ela aparecer por um instante, quando ele tinha doze anos de idade, e depois, com vinte anos, e então mais uma vez, dois anos mais tarde, desta vez para sempre. Ele não podia acreditar que sua hostilidade fora extinguida nos intervalos, e, contudo, durante o curso destes, não houvera sinal algum de autocensuras. - Respondi que alguém, sempre que perguntava algo assim, já estava preparado com uma resposta; precisava ser encorajado a continuar falando. - Ele então prosseguiu, parecia que com alguma desconexão, dizendo que fora o melhor amigo de seu pai e que seu pai fora seu melhor amigo. Exceto em alguns tópicos nos quais pais e filhos comumente se mantinham separados uns dos outros - (Que queria ele dizer com isso?) -, houvera entre eles uma intimidade maior do que então existia entre ele e seu melhor amigo. No que concerne à dama, por cuja causa ele sacrificara seu pai com aquela sua idéia, era verdade que a amara muito mas jamais sentira realmente desejos sensuais por ela, como constantemente tivera em sua infância. Ao mesmo tempo, em sua infância os impulsos sensuais haviam sido muito mais intensos do que durante a puberdade. - Nesse ponto, disse-lhe que pensava que ele então fabricara a resposta que estávamos esperando e que, simultaneamente, havia descoberto a terceira grande característica do inconsciente [ver em [1]]. A fonte da qual sua hostilidade pelo pai tirava a sua indestrutibilidade era, evidentemente, algo da natureza de desejos sensuais, e nessa correlação ele deve ter sentido seu pai como uma interferência, de uma ou de outra forma. Acrescentei que um conflito dessa espécie entre a sensualidade e o amor infantil era totalmente típico. As remissões de que ele falara ocorreram porque a explosão prematura dos seus desejos sensuais havia sofrido, como conseqüência imediata, uma considerável diminuição da violência deles. Só quando ele foi novamente arrebatado por intensos desejos eróticos, foi que reapareceu sua hostilidade, de novo devido à revivescência da antiga situação. Então fiz com que ele concordasse que eu não o havia levado nem ao assunto da infância nem ao do sexo, mas que ele desespertara ambos por sua livre e espontânea vontade. - Então continuou, perguntando por que simplesmente não chegara a uma decisão, na época em que estava apaixonado pela dama, relativamente a saber se a interferência de seu pai naquele amor não poderia, por um momento que fosse, pesar contra seu amor pelo pai. - Repliquei que raramente é possível destruir uma pessoa in absentia. Tal decisão só teria sido possível se o desejo a que ele objetava tivesse aparecido pela primeira vez naquele tempo; ao passo que, de fato, era um desejo longamente reprimido, diante do qual ele não podia comportar-se de outra forma a não ser como fizera no princípio, e o qual, em conseqüência, estava imune à destruição. Esse desejo (de livrar-se de seu pai como uma interferência) deve ter-se originado numa época em que as circunstâncias foram muito diferentes - numa época, talvez, em que ele não amava seu pai mais do que amava a pessoa a quem ele desejava sensualmente, ou quando era incapaz de tomar uma decisão nítida. Deve ter sido, portanto, em sua primeira infância, antes de chegar aos seis anos de idade e antes do dia em que sua lembrança passou a ser contínua; e desde então as coisas devem ter permanecido nesse mesmo estado. - Com esse fragmento de interpretação, nossa discussão foi interrompida temporariamente. [Cf. em [1].]
Na sessão, seguinte, a sétima, retomou novamente o mesmo assunto. Ele não podia acreditar, disse ele, que tivesse alguma vez estado às voltas com um desejo desses contra seu pai. Lembrou-se de uma história de Sudermann, prosseguiu, que lhe causara profunda impressão. Nessa história havia uma mulher que, quando se sentava ao leito de sua irmã enferma, sentia desejo de que a irmã viesse a morrer, a fim de que ela pudesse casar-se com o marido da irmã. Então a mulher cometeu suicídio, pensando que ela não estava apta a viver depois de sentir-se culpada de tal baixeza. Ele podia compreender isto, disse ele, e só estaria direito se seus pensamentos fossem a sua morte, de vez que não merecia nada menor. - Observei que sabíamos muito bem que os pacientes derivavam alguma satisfação de seus sofrimentos, de modo que, na realidade, todos eles resistiam, em alguma extensão, à sua própria recuperação. Ele jamais deve abster-se do fato de que um tratamento como o nosso procedeu ao acompanhamento de uma resistência constante; eu estaria, repetidas vezes, lembrando-o desse fato.
Prosseguiu, então, dizendo que gostaria de falar de um ato criminoso, cujo autor não reconheceu como sendo ele próprio, embora bem nitidamente se lembrasse de havê-lo cometido. Citou um trecho de Nietszche: `“Eu o fiz”, diz minha Lembrança. “Eu não posso ter feito isto”, diz meu Orgulho, e permanece inexorável. No final… a Lembrança cede.’ `Bem’, ele continuou, `minha lembrança não cedeu nesse ponto.’ - `Isto porque, o senhor deriva o prazer de suas próprias autocensuras como um meio de autopunição.’ - `Meu irmão mais novo… eu agora realmente gosto muito dele, e ele, justamente agora, está-me causando bastante preocupação, pois quer fazer o que considero uma união fora de hora; antes pensei em sair e matar a pessoa envolvida, de modo a evitar que ele se casasse com ela - bem, meu irmão mais novo e eu costumávamos brigar um bocado quando éramos crianças. Gostávamos muito um do outro, ao mesmo tempo, e éramos inseparáveis; mas eu estava verdadeiramente cheio de ciúmes, uma vez que ele era o mais forte e de melhor aparência entre os dois, e conseqüentemente o favorito.’ - `Sim. O senhor já me fez a descrição de uma cena de ciúme relacionada com Fräulein Lina [ver em [1]].’ - `Então muito bem, em alguma ocasião dessas (foi seguramente antes de eu fazer oito anos, pois ainda não estava na escola, a qual passei a freqüentar quando tinha oito anos), em uma dessas ocasiões foi isto o que fiz. Nós dois tínhamos espingardas de brinquedo de fabricação comum. Carreguei a minha com a vareta e lhe disse que, se ele olhasse para o cilindro, veria alguma coisa. Aí, enquanto olhava dentro dele, puxei o gatilho. Ele foi atingido na testa, mas não se feriu; mas eu de fato tinha tido a intenção de feri-lo muito. A seguir fiquei recolhido em mim mesmo, atirei-me no chão e me interroguei como poderia ter feito uma coisa assim. Contudo, eu realmente fizera.’ - Aproveitei a oportunidade de encorajar meu caso. Se ele preservara a recordação de uma ação como esta, que lhe era tão estranha, ele não poderia, insisti, negar a possibilidade de algo semelhante, que agora esquecera por completo, ter acontecido, em uma idade ainda mais precoce, em relação a seu pai. - Então me contou que estava ciente de haver sentido outros impulsos vingativos, dessa vez voltados à dama a quem tanto admirava, de cujo caráter ele pintou uma ardente imagem. Podia ser verdade, disse ele, que ela não pudesse amar com facilidade; mas ela estava reservando todo o seu eu (self) para o homem a quem um dia pertenceria. Ela não o amava. Quando ele se tornara sabedor disso, uma fantasia consciente tomara forma em sua meta: de como ele viria a ficar muito rico e casar-se com outra, e então a levaria a visitar a dama, a fim de ferir os sentimentos dela. Entretanto, a essa altura a fantasia frustrara-se, de vez que ele fora obrigado a confessar a si mesmo que a outra mulher, sua esposa, lhe era completamente indiferente; logo, seus pensamentos ficaram confusos, até que lhe nasceu no pensamento a idéia de que essa outra mulher teria de morrer. Nessa fantasia, bem como em seu atentado ao irmão, reconheceu a qualidade de covardia que lhe era tão particularmente terrível. - No curso posterior de nossa conversa apontei-lhe que não tinha, logicamente, de se considerar de modo algum responsável por qualquer desses traços de seu caráter, por todos esses impulsos reprováveis oriundos de sua infância, e que eram apenas derivados de seu caráter infantil, sobreviventes em seu inconsciente; além disso ele precisa saber que responsabilidade moral não podia ser aplicada a crianças. Acrescentei que, apenas mediante um processo de desenvolvimento, um homem, com sua responsabilidade moral, procedia da soma de suas disposições infantis. Expressou, contudo, uma dúvida sobre se todos os seus maus impulsos se haviam originado daquela fonte. Prometi, porém, prová-lo para ele no decorrer do tratamento.
Prosseguiu, aduzindo o fato de sua doença haver ficado tão enormemente intensificada desde a morte de seu pai; e eu lhe disse que concordava com ele, desde que eu encarava seu sentimento pela morte do pai como a fonte principal da intensidade da sua doença. Digamos que seu sentimento encontrara uma expressão patológica em sua doença. Disse-lhe que, enquanto um período normal de luto duraria de um a dois anos, um período patológico como este duraria indefinidamente.

Isto é tudo quanto sou capaz de relatar do presente caso clínico, de forma detalhada e consecutiva. Coincide toscamente com a parte expositiva do tratamento; este durou, no todo, mais de onze meses.

(E) ALGUMAS IDÉIAS OBSESSIVAS E SUA EXPLICAÇÃO

As idéias obsessivas, como bem se sabe, têm uma aparência de não possuírem nem motivo nem significação, tal como os sonhos. O primeiro problema é saber como lhe dar um sentido e um status na vida mental do indivíduo, de modo a torná-las compreensíveis e, mesmo, óbvias. O problema de traduzi-las pode parecer insolúvel, mas jamais devemos deixar-nos ser mal orientados por essa ilusão. As idéias obsessivas mais rudimentares e mais excêntricas podem ser esclarecidas, se investigadas com suficiente profundidade. A solução se dá ao se levar as idéias obsessivas a uma relação temporal com as experiências do paciente, quer dizer, ao se indagar quando foi que uma idéia obsessiva particular fez sua primeira aparição e em que circunstâncias externas ela está apta para voltar a ocorrer. Como sucede com tanta freqüência, quando uma idéia obsessiva não logrou estabelecer-se permanentemente, a tarefa de esclarecê-la é correspondentemente simplificada. Podemos convencer-nos facilmente de que, uma vez descobertas as interconexões entre uma idéia obsessiva e as experiências do paciente, não haverá dificuldade de se obter acesso a algo mais, não importa o quê, que possa ser enigmático ou digno de conhecimento na estrutura patológica, com que estamos lidando - seu significado, o mecanismo de sua origem e sua derivação das forças motivadoras preponderantes da mente do paciente.
Para dar um exemplo sobremodo claro, iniciarei por um dos impulsos suicidas, que, em nosso paciente, ocorriam com tanta freqüência. Esse exemplo já quase se analisa por si próprio ao ser narrado. Ele me contou que, certa vez, perdeu algumas semanas de estudo em virtude da ausência da sua dama: ela havia partido para cuidar de sua avó, que estava seriamente enferma. No exato momento em que se encontrava em meio a uma dificílima parte de seu trabalho, ocorrera-lhe a seguinte idéia: `Se você recebesse a ordem de levar a cabo, na primeira oportunidade, a sua prova, você deveria tratar de obedecê-la. Mas, se lhe ordenassem cortar a garganta com uma lâmina, o que você faria?’ Imediatamente ficara ciente de que essa ordem já tinha sido dada, e já estava correndo até o aparador, para apanhar a lâmina, quando pensou: `Não, não é tão simples assim. Você tem que sair e matar a velha.’ Logo após, caíra no chão, com horror.
Nesse exemplo, a relação entre a idéia compulsiva e a vida do paciente está contida nas palavras iniciais de sua história. Sua dama estava ausente, enquanto ele trabalhava arduamente para um exame, de modo a conseguir mais cedo a possibilidade de estabelecer uma união com ela. Enquanto trabalhava foi acometido por um anseio pela dama ausente, e pensou na razão da ausência dela. Agora acabava de ser acometido por algo que seria provavelmente uma espécie de sentimento de aversão contra a avó de sua dama, caso ele tivesse sido um homem normal: `Por que a velha deveria ficar doente, justamente agora que anseio por ela, com tanto temor?’ Temos de supor que algo semelhante, contudo bem intenso, atravessou a mente de nosso paciente - um acometimento inconsciente de raiva que se coadunaria com seu anseio e poderia encontrar expressão na seguinte exclamação: `Como eu gostaria de sair e matar aquela velha mulher por haver-me roubado o meu amor!’ Ao que se seguiu a ordem de `Mate-se a si próprio, como punição dessas suas paixões selvagens e assassinas!’ Todo esse processo introduziu-se na consciência do obsessivo paciente, acompanhando-se do mais violento afeto e numa ordem inversa: em primeiro lugar veio a ordem de punição, e a seguir, enfim, a menção da culpa. Não me é possível achar que essa tentativa de explicação parecesse forçada, ou que envolvesse elementos hipotéticos vários.
Um outro impulso, que se pode descrever como indiretamente suicida, e de duração mais longa, não se podia explicar com tanta facilidade assim, de vez que a relação deste com as experiências do paciente conseguiu ocultar-se por trás de uma daquelas associações puramente externas, que parecem tão chocantes à nossa consciência. Certo dia, estando fora, em suas férias de verão, ocorreu-lhe de súbito a idéia de que ele era muito gordo [em alemão`dick‘], e de que ele teria de ficar mais magro. Começou, pois, a levantar-se da mesa antes de servirem a sobremesa e apressar-se pela rua, sem o chapéu, sob o calor ofuscante do sol de agosto; a seguir, também, subiu com pressa uma montanha, até parar, forçado e vencido, pela transpiração. Certa época, suas intenções suicidas de fato emergiram, sem disfarce, por detrás dessa mania de emagrecer: quando se encontrava à beira de um precipício profundo, recebeu a ordem de saltar, o que sem dúvida significaria sua morte. Nosso paciente não seria capaz de imaginar explicação alguma para esse comportamento obsessivo sem nenhum sentido, até que, de repente, ocorreu-lhe que, ao mesmo tempo, também a sua dama estava veraneando na companhia de um primo inglês, que era muito solícito para com ela, e de quem o paciente estava muito enciumado. O nome desse seu primo era Richard, e, conforme o uso coloquial na Inglaterra, tinha o apelido de Dick. Nosso paciente, então havia desejado matar o Dick; tinha estado muito mais enciumado e enraivecido em relação a ele do que podia admitir para si mesmo, e isso foi a razão por que se impusera esse emagrecimento mediante uma punição. Esse impulso obsessivo pode parecer bem diferente da ordem diretamente suicida acima discutida, mas ambos possuíam em comum um importante aspecto. Isso porque ambos emergiram como reações a um sentimento de raiva muito grande, inacessível à consciência do paciente, e dirigido contra alguém que surgira como uma interferência no curso de seu amor.
Outras obsessões do paciente, no entanto, apesar de também estarem centradas em sua dama, mostravam um mecanismo diverso e deviam sua origem a um instinto diferente. Além de sua mania de emagrecer, ele construiu toda uma série de outras atividades obsessivas, no período em que a dama veraneava, atividades essas ao menos em parte relacionadas diretamente com ela. Certo dia, passeando de barco em companhia dela, soprava um fortíssimo vento, e ele teve de obrigá-la a pôr o gorro dele, pois se formulara em sua mente a ordem que nada deveria acontecer a ela. Isto era uma espécie de obsessão de proteger, e teve outros efeitos além deste. Em outra ocasião, durante uma tempestade, enquanto estavam sentados juntos, ele ficou obcecado, e não era capaz de saber a razão, com a necessidade de contar até quarenta, ou cinqüenta, no intervalo entre um raio e o trovão que o seguisse. No dia em que ela devia partir, ele bateu com o pé numa pedra da estrada, e foi obrigado a afastá-la do caminho, pondo-a à beira da estrada, pois lhe veio a idéia de que o carro dela iria passar, dentro de poucas horas, pela mesma estrada e poderia acidentar-se nessa pedra. Contudo, minutos depois, pensou que era um absurdo, e foi obrigado a voltar e restituir a pedra à sua posição original, no meio da estrada. Depois que ela partiu, ele se viu presa de uma obsessão por compreensão, que o tornou uma praga para todos os seus amigos. Forçou-se a compreender o significado exato de cada sílaba que lhe dirigiam, como se, de outro modo, estivesse perdendo um precioso tesouro. Conseqüentemente, detinha-se interrogando: `O que você acabou de dizer?’, e após a frase ter sido repetida, ele não conseguia pensar que ela soara diferente ao ser dita pela primeira vez, e ele, assim, ficava insatisfeito.
Todos esses produtos de sua doença dependiam de uma determinada circunstância que, naquela época, regia as suas relações com a dama. Em Viena, ao despedir-se dela, antes das férias de verão, ela dissera algo que ele interpretou como um desejo, da parte dela, de rejeitá-lo pelo resto de sua presença; e isso deixou-o muito triste. Durante a permanência dela no balneário de verão, houvera oportunidade de debater a questão, e a dama fora capaz de provar-lhe que essas suas palavras, que ele interpretara mal, encerravam, pelo contrário, a intenção de poupá-lo de parecer uma pessoa ridícula. Isso fez com que ele se sentisse de novo muito feliz. A mais clara alusão a esse incidente estava encerrada em sua obsessão por compreensão. Foi elaborada como se ele estivesse dizendo a si mesmo: `Após uma experiência dessas, você jamais deverá interpretar mal de novo a quem quer que seja, se é que você deseja escapar a uma desnecessária aflição.’ Tal resolução não era meramente uma generalização de uma única ocasião, mas também estava deslocada - talvez em virtude da ausência da dama - de um indivíduo superestimado a todos os outros indivíduos inferiores. E a obsessão não pode ter emergido unicamente de sua insatisfação pela explicação que ela lhe dera; deve ter exprimido algo mais além disso, de vez que redundou em uma dúvida insatisfatória quanto a saber se aquilo que ele ouvira fora repetido corretamente.
As outras ordens compulsivas mencionadas nos deixam no rastro desse outro elemento. Sua obsessão de proteger só pode ter sido uma reação - como uma expressão de remorso e penitência - a um impulso contrário, ou seja, hostil, que ele deve ter sentido com relação a sua dama, antes do éclaircissement de ambos. Sua obsessão de contar, durante a tempestade, pode ser interpretada, com o auxílio de algum material fornecido por ele, como uma medida defensiva contra temores de que alguém estivesse em perigo de morte. A análise das obsessões que consideramos em primeiro lugar já nos aconselhou a encarar os impulsos hostis do nosso paciente como particularmente violentos e da natureza de uma raiva irracional; e agora achamos que, mesmo depois da reconciliação desses impulsos, sua raiva pela dama continuava a desempenhar um papel na formação de suas obsessões. Sua mania de dúvida com relação a saber se ele havia ouvido corretamente era expressão da dúvida que ainda espreitava em sua mente, se de fato ele dessa vez havia entendido corretamente a sua dama e se estava justificado por considerar as palavras dela como prova de sua afeição por ele. A dúvida contida em sua obsessão por compreensão era uma dúvida de seu (dela) amor. No peito do amante enfurecia-se a batalha entre amor e ódio, e o objeto desses dois sentimentos era a única e mesma pessoa. A batalha era representada numa forma plástica por seu ato compulsivo e simbólico de remover a pedra da estrada pela qual dama iria passar, desfazendo depois esse ato de amor mediante a restituição da pedra ao lugar onde estivera, de modo que o carro viesse a acidentar-se nela e a dama se ferisse. Não estaremos fazendo um julgamento correto dessa segunda parte do ato compulsivo se o encarássemos, à primeira vista, apenas como um repúdio crítico de uma ação patológica, embora seja uma parte que foi determinada por um motivo contrário àquele que produziu a primeira parte.
Atos compulsivos como este, em dois estádios sucessivos, quando o segundo neutraliza o primeiro, constituem uma típica ocorrência nas neuroses obsessivas. Naturalmente a consciência do paciente interpreta-os mal e formula um conjunto de motivações secundárias que os explica - em suma, que os racionaliza. (Cf. Jones, 1908.) Sua real significação, contudo, reside no fato de serem eles representação de um conflito entre dois impulsos opostos de força aproximadamente igual; e, até agora, tenho achado, invariavelmente, que esta se trata de uma oposição entre o amor e o ódio. Atos compulsivos dessa natureza têm, sob o ponto de vista teórico, um interesse peculiar, de vez que nos mostram uma nova modalidade de método de construção de sintomas. Na histeria o que ocorre normalmente é chegar-se a uma conciliação, que capacita ambas as tendências opostas a se expressarem simultaneamente - o que é como matar dois coelhos de uma só cajadada; ao passo que aqui cada uma das duas tendências opostas é satisfeita, isoladamente, primeiro uma e depois a outra, embora naturalmente se faça uma tentativa de estabelecer determinado tipo de conexão lógica (muitas vezes desafiando toda lógica) entre os antagonistas.

O conflito entre o amor e o ódio revelou-se em nosso paciente também por meio de outros sinais. Na ocasião em que revivesceu a sua piedade [ver em [1] e [2]], ele elaborou para si preces que exigiam cada vez mais tempo e que chegavam a durar hora e meia. A razão disso foi que ele achou, como um Balaam ao inverso, que alguma coisa invariavelmente se inseria em suas frases piedosas, vertendo-as ao seu sentido oposto. [Cf. em [1].] Por exemplo, se ele dizia `Deus o proteja’, um espírito mau imediatamente insinuaria um `não’. Numa dessas ocasiões ocorreu-lhe a idéia de, em vez disso, amaldiçoar, pois nesse caso, pensava, seguramente se insinuariam as palavras contrárias. Sua intenção original, que fora reprimida por sua prece, forçava uma saída através dessa sua última idéia. No final, encontrou saída para a sua dificuldade deixando de lado as preces e substituindo-as por uma pequena fórmula forjada pelas letras ou sílabas iniciais de diversas preces. Recitava então essa fórmula com tanta rapidez que nada poderia intrometer-se nela. [Ver em [1].]
Certa vez, trouxe-me um sonho que representava o mesmo conflito com relação a sua transferência para o médico. Sonhou que minha mãe havia morrido; ele estava ansioso por prestar-me suas condolências, mas tinha receio de que, se o fizesse, poderia ele irromper em uma risada inoportuna, como fizera repetidas vezes, no passado, em ocasiões idênticas. Por conseguinte, preferiu deixar um cartão para mim, onde se lia `p.c.’; mas ao escrevê-lo, as letras mudaram para `p.f.’
O mútuo antagonismo entre os seus sentimentos em relação a sua dama era forte demais para ter escapado completamente à sua percepção consciente, embora possamos concluir das obsessões nas quais o antagonismo se manifestara que ele não avaliava corretamente a profundidade de seus impulsos negativos. A dama havia recusado sua primeira proposta, dez anos atrás. Desde então, ele tinha conhecimento de que passara por períodos alternados em que ora ele acreditava que a amava intensamente, ora se sentia indiferente com relação a ela. No decorrer do tratamento, sempre que se deparava com a necessidade de dar algum passo que o aproximasse mais de um final bem-sucedido para seu namoro, habitualmente sua resistência começava a assumir a forma da convicção de que, afinal de contas, ele não ligava muito para ela - embora, em verdade, essa resistência costumasse ser logo vencida. Certa vez, estando ela acamada, com uma séria enfermidade, ficando ele extremamente preocupado com ela, perpassou-lhe pela mente, quando olhava para ela, um desejo de que ela continuasse deitada assim, para sempre. Explicou essa idéia mediante um sofisma bastante engenhoso: asseverando que apenas desejara que ela estivesse permanentemente doente, de modo que ele pudesse livrar-se de seu medo intolerável de que ela fosse acometida por uma repetida sucessão de crises! De vez em quando costumava povoar sua imaginação com devaneios, que ele próprio identificava como `fantasias de vingança’, e se sentia envergonhado com isso. Por exemplo, acreditando que a dama dava grande importância à posição social de um certo pretendente, ele construiu uma fantasia na qual ela estava casada com um homem daquela espécie, que ocupava um cargo público. Ele próprio entrava, então, no mesmo departamento, onde subiu de posição com muito mais rapidez do que seu marido, tornando-se este, enfim, seu subordinado. Um dia - dando-se prosseguimento a sua fantasia - esse homem cometia determinado ato desonesto. A dama atirava-se de joelhos a seus pés e lhe implorava que salvasse seu marido. Ele prometia fazê-lo, e lhe comunicava que fora apenas por amor a ela que havia assumido o cargo, de vez que havia previsto que um momento como este iria chegar; e agora, salvo o seu marido, estava cumprida sua missão e ele renunciaria ao seu posto.
Construiu outras fantasias nas quais prestou à dama um grande serviço, sem que ela soubesse que era ele quem o fazia. Nelas, ele reconhecia apenas a sua afeição, sem avaliar suficientemente a origem e a finalidade de sua magnanimidade, que visava a reprimir sua sede de vingança, segundo o modelo do Conde de Monte Cristo, de Dumas. Ademais, admitiu que por vezes era acometido por impulsos bem nítidos de causar algum agravo à dama a quem admirava. Esses impulsos, em sua maior parte, ficavam temporariamente inativos em presença da dama, e somente apareciam em sua ausência.

(F) A CAUSA PRECIPITADORA DA DOENÇA

Certo dia, o paciente mencionou, de passagem, um evento que eu não podia deixar de reconhecer como a causa que precipitou sua doença, ou, pelo menos, como o motivo imediato da crise iniciada há uns seis anos atrás, e que persistira até aquele dia. Ele próprio não tinha noção alguma de que havia apresentado algo muito importante; não era capaz de se lembrar de haver ligado, alguma vez, importância ao evento, do qual, ademais, jamais se esquecera. Tal atitude de sua parte requer alguma consideração teórica.
Na histeria, via de regra, as causas precipitadoras da doença cedem lugar à amnésia, como é também o caso das experiências infantis, com cujo auxílio as causas precipitadoras conseguem transformar em sintomas sua energia afetiva. E a amnésia, quando não pode ser completa, submete a causa precipitadora traumática recente a um processo de erosão e, ao menos, dela subtrai seus componentes mais importantes. Nessa amnésia percebemos a evidência da repressão que teve lugar. O caso é diferente nas neuroses obsessivas. As precondições infantis da neurose podem ser colhidas pela amnésia, embora esta, muitas vezes, seja parcial; mas, pelo contrário, os motivos imediatos da doença são retidos na memória. A repressão utiliza-se de outro mecanismo, que, na realidade, é mais simples. O trauma, em lugar de ser esquecido, é destituído de sua catexia afetiva, de modo que, na consciência, nada mais resta senão o seu conteúdo ideativo, o qual é inteiramente desinteressante e considerado sem importância. A distinção entre aquilo que ocorre na histeria e numa neurose obsessiva reside nos processos psicológicos que nos é possível reconstruir por trás dos fenômenos; o resultado é quase sempre o mesmo, de vez que o conteúdo mnêmico apagado raramente se reproduz e não desempenha papel algum na atividade mental do paciente. A fim de estabelecer uma diferenciação entre os dois tipos de repressão, temos, a princípio, num caso, que utilizar apenas a certeza do paciente de que ele tem a sensação de haver sempre conhecido essa coisa, e, no outro, de tê-la esquecido há muito tempo.

Por esse motivo, ocorre, com alguma regularidade, que os neuróticos obsessivos, perturbados com autocensuras, mas havendo ligado seus afetos com causas errôneas, contam também ao médico as causas verdadeiras, sem qualquer desconfiança de que as suas autocensuras ficaram simplesmente separadas delas. Ao relatarem um incidente desses, eles, às vezes, acrescentam, com assombro, ou mesmo com certo rasgo de orgulho: ‘Mas não é isso que eu penso.’ Tal aconteceu no primeiro caso de neurose obsessiva que me forneceu uma compreensão interna (insight), há anos atrás, da natureza do seu sofrimento. O paciente, que era funcionário público, estava conturbado por inúmeras dúvidas. Ele era aquele homem cujo ato compulsivo ligado ao galho, no parque de Schönbrunn, eu já havia mencionado [ver em [1]]. Surpreendeu-me o fato de as cédulas de florim com as quais pagou suas consultas estarem invariavelmente limpas e lisas. (Isto foi antes de haver na Áustria moedas de prata.) Certa vez fiz-lhe a observação de que sempre se podia reconhecer um funcionário do governo pelos florins novíssimos que ele retirava da Casa da Moeda, e então me informou que suas notas de florim não eram novas, em absoluto, mas as havia passado a ferro, em casa. Para ele, como explicou, era uma questão de consciência não passar às mãos de alguém cédulas sujas, de vez que nelas aderiam bactérias patogênicas de todos os tipos, que poderiam causar danos ao seu portador. Naquela época, eu já desconfiava vagamente da correlação entre as neuroses e a vida sexual, de modo que, numa outra ocasião, arrisquei-me a perguntar ao paciente qual era sua posição perante esse assunto. ‘Oh, quanto a isso, tudo bem!’, respondeu distraído, ‘não tenho problema algum a esse respeito. Desempenho o papel de um velho tio, estimado, em algumas famílias de respeito, e ora e outra valho-me de minha posição para convidar alguma jovem para sairmos juntos para um dia de passeio no campo. Então providencio para perdemos o trem, ao partirmos de lá, o que nos obriga a passar a noite fora da cidade. Sempre reservo dois quartos, faço as coisas com muito cavalheirismo; porém, quando a jovem já está na cama, chego até ela e a masturbo com os dedos.’- ‘Mas o senhor não receia causar-lhe algum dano, manipulando os genitais dela com sua mão suja?’ - Ao que exclamou, perplexo: ‘Dano? Como, que dano lhe causaria? Isso jamais causou dano a nenhuma delas, até agora, e todas apreciaram. Algumas já estão casadas, e não sofreram absolutamente dano algum.’ - Ele levou a mal minha repreensão, e jamais retornou à consulta. Eu, contudo, só poderia encontrar explicação do contraste entre suas preocupações com as cédulas de florim e sua falta de escrúpulos por abusar das jovens que se lhe confiavam supondo que o afeto repleto de autocensura se tornara deslocado. O objetivo desse deslocamento era bastante óbvio: se as suas autocensuras se permitissem permanecer no lugar pertinente a elas, ele teria de abandonar determinada forma de gratificação sexual à qual provavelmente fosse compelido por alguns determinantes infantis muito fortes. Portanto, o deslocamento lhe favorecia derivar de sua doença uma boa vantagem.
Mas devo agora retomar um exame mais detalhado da causa precipitadora da doença de nosso paciente. Sua mãe foi educada numa família saudável com a qual ela se relacionava com certa distância. Essa família administrava uma grande empresa industrial. Seu pai, quando de seu casamento, entrou nesse negócio e, com seu casamento, adquiriu uma posição relativamente confortável. O paciente soube, numa vez que houvera uma zanga entre seus pais (cujo casamento foi extremamente feliz), que seu pai, pouco antes de conhecer sua mãe, cortejara uma humilde jovem sem recursos. Isto, como introdução. Após a morte de seu pai, a mãe do paciente, um dia, lhe contou que havia discutido com ricos parentes sobre o futuro dele, e que um dos primos seus prontificou-se a permitir-lhe que, ao completar a sua educação, ele se casasse com uma de suas filhas; uma relação de negócios com a firma oferecer-lhe-ia brilhantes perspectivas na profissão. Esse plano familiar desencadeou nele um conflito relacionado a saber se ele permaneceria fiel à sua amada, a despeito de sua pobreza, ou se seguiria os passos de seu pai e casaria com a linda, rica e bem relacionada jovem que lhe haviam predestinado. E resolveu esse conflito, que de fato existia entre seu amor e a persistente influência dos desejos de seu pai, ficando doente; ou melhor, caindo doente evitava a tarefa de resolvê-lo na vida real.

A comprovação de que esse ponto de vista era correto reside no fato de que a conseqüência principal de sua doença foi uma obstinada incapacidade para o trabalho, permitindo-lhe adiar por anos a conclusão de sua educação. Entretanto, os resultados de uma doença dessa natureza nunca são involuntários; na realidade, o que parece ser a conseqüência da doença é a causa ou motivo de ficar doente.
Conforme era de esperar, a princípio o paciente não aceitou meu esclarecimento do fato. Ele não era capaz de imaginar, segundo disse, que o plano de casamento pudesse tido um resultado desses; não exercera nele, na época, a mínima impressão. No curso posterior do tratamento, porém, ele foi levado forçosamente a acreditar na verdade de minha suspeita, e isso de uma forma bastante singular. Com o auxílio de uma fantasia de transferência, vivenciou, como se fosse um fato novo e atual, o próprio episódio passado, do qual se havia esquecido ou que apenas lhe passara inconscientemente pela mente. Adveio, então, no tratamento, um período obscuro e difícil. Finalmente, aconteceu que ele encontrou, certa vez, uma menina nas escadas de minha casa e imediatamente imaginou que fosse minha filha. Ela lhe agradou, e ele imaginou que a única razão por que eu era agradável e incrivelmente paciente com ele estava no fato de que eu desejava torná-lo meu genro. Ao mesmo tempo, elevava a riqueza e a posição de minha família a um nível que coadunava com o modelo que tinha em mente. Contudo, seu inextinguível amor pela dama lutava contra essa tentação. Após atravessarmos uma série das mais severas resistências e das mais amargas injúrias de sua parte, ele não podia mais permanecer cego ao efeito esmagador da perfeita analogia entre a fantasia de transferência e o estado atual de acontecimentos passados. Repetirei um dos sonhos que ele teve nesse período, para fornecer um exemplo de sua maneira de tratar o assunto. Sonhou que ele via minha filha à sua frente; ela tinha dois pedaços de estrume em lugar dos olhos. Qualquer um que compreende a linguagem dos sonhos não encontrará muita dificuldade para traduzir esse sonho; seu significado era: ele se casava com minha filha, não por causa de seus ‘beaux yeux’, mas sim pelo seu dinheiro.

(G) O COMPLEXO PATERNO E A SOLUÇÃO DA IDÉIA DO RATO

Partindo da causa precipitadora da doença do paciente em sua idade adulta, existe um fio que reconduz à sua infância. Encontrara-se numa situação semelhante àquela na qual, conforme sabia ou desconfiava, seu pai estivera antes de seu casamento; e assim fora capaz de identificar-se com seu pai. Mas seu falecido pai estava envolvido em sua recente crise, ainda de uma forma diferente. O conflito nas raízes de sua doença era, em essência, uma luta entre a persistente influência dos desejos de seu pai e suas próprias inclinações amorosas. Se levarmos em consideração aquilo que o paciente relatou no decorrer das primeiras horas de seu tratamento, não poderemos evitar a suspeita de que essa luta era realmente uma luta antiga e se originara há mais tempo, na infância do paciente.
Segundo todas as informações dadas, o pai de nosso paciente era um homem de excelentes qualidades. Antes de seu casamento, fora um suboficial e, como lembrança desse período de sua vida, havia mantido uma atitude militar escorreita e um penchant por usar uma linguagem categórica. Ademais dessas virtudes, celebradas, como o são, nas lápides dos mortos, ele se distinguia por um cordial senso de humor e amável tolerância para com seus companheiros. O fato de que ele pudesse ser uma pessoa impetuosa e violenta certamente não estava em desacordo com outras qualidades suas; era, antes, um complemento necessário dessas últimas; contudo, ocasionalmente, castigava severamente os filhos, quando estes eram novos e travessos. Quando ficaram crescidos, porém, distinguia-se dos outros pais em não procurar enaltecer-se com uma sacrossanta autoridade, mas sim compartilhando com eles um conhecimento das pequenas falhas e infortúnios de sua vida com afável sinceridade. Seu filho sem dúvida não exagerava ao declarar que eles haviam vivido junto como dois bons amigos, à exceção de um único aspecto (ver em [1]). E, em relação a esse mesmo aspecto, não há dúvida de que pensamentos a respeito da morte de seu pai ocuparam sua mente, com uma intensidade inabitual e indevida, quando ele era menino (ver em [2]), e que tais pensamentos surgiram na trama das idéias obsessivas de sua infância. Ademais, só pode ter sido nessa mesma correlação que ele se tornou capaz de desejar a morte de seu pai, a fim de despertar simpatia em determinada menina e fazer com que ela se comportasse de modo mais amável para com ele (ver em [3]).
Não pode haver dúvida de que existia algo, no âmbito da sexualidade, que permanecia entre pai e filho, e de que o pai assumira alguma espécie de oposição à vida erótica do filho, prematuramente desenvolvida. Muitos anos depois da morte de seu pai, na primeira vez que experimentou as prazerosas sensações da cópula, irrompeu em sua mente uma idéia: ‘Que maravilha! Por uma coisa assim alguém é até capaz de matar o pai!’ Isto foi, ao mesmo tempo, um eco e uma elucidação das idéias obsessivas de sua infância. Ademais disso, pouco antes de sua morte, seu pai se opôs diretamente àquilo que, mais tarde, se tornou a paixão dominante de nosso paciente. Ele observara que seu filho estava sempre na companhia da dama, e o aconselhou a manter-se distante dela, dizendo ser imprudente de sua parte e que isso só iria fazê-lo de tolo.
A esse inatacável acervo de provas, seremos capazes de acrescentar novos elementos, se voltarmos à história do lado masturbatório das atividades sexuais do nosso paciente. Existe um conflito entre as opiniões de médicos e de pacientes a respeito desse assunto, o qual até agora não tem sido adequadamente avaliado. Os pacientes são todos unânimes na crença de que a masturbação, querem dizer masturbação durante a puberdade, é a raiz e origem de todas as perturbações. Os médicos, em geral, são incapazes de decidir que linha de pensamento devem seguir; contudo, influenciados pelo conhecimento de que não apenas os neuróticos, mas a maioria das pessoas normais, atravessam por um período de masturbação durante sua puberdade, em sua maioria tendem a repudiar as asserções dos pacientes, achando-as muito exageradas. Em minha opinião, os pacientes mais uma vez estão mais próximos de uma visão correta do que os médicos; pois os pacientes possuem uma vaga noção da verdade, ao passo que os médicos correm o risco de negligenciar um ponto essencial. A tese sustentada pelos pacientes certamente não corresponde aos fatos, no sentido em que eles próprios a interpretam, ou seja, de que a masturbação na puberdade (que se pode descrever, aproximadamente, como uma ocorrência típica) é responsável por todos os distúrbios neuróticos. Sua tese requer uma interpretação. A masturbação da puberdade, na realidade, nada mais é do que um revivescimento da masturbação da tenra infância, um assunto que até hoje tem sido invariavelmente desprezado. A masturbação infantil atinge uma espécie de clímax, via de regra, entre as idades de três e quatro ou cinco anos; e constitui a mais evidente expressão da constituição sexual de uma criança, na qual se deve buscar a etiologia das neuroses subseqüentes. Logo, sob esse disfarce, os pacientes ficam atribuindo a culpa por suas doenças à sua sexualidade infantil, e têm toda razão de fazê-lo. Por outro lado, o problema da masturbação torna-se insolúvel se tentarmos tratá-lo como uma unidade clínica e esquecermos que pode representar a descarga de toda a variedade de componente sexual e de toda espécie de fantasia à qual tais componentes possam dar origem. Os efeitos prejudiciais da masturbação são autônomos - ou seja, determinados por sua própria natureza - apenas em um bem pequeno grau. São, em sua essência, meramente parte e parcela da significação patogênica da vida sexual, como um todo, do indivíduo. O fato de muitas pessoas poderem tolerar a masturbação - ou seja, determinada porção desse ato - sem prejuízo, mostra apenas que a sua constituição sexual e o curso de evolução de sua vida sexual foram de tal forma a permitir-lhes exercer a função sexual dentro dos limites daquilo que é culturalmente permissível; ao passo que outras pessoas, de vez que sua constituição sexual foi menos favorável, ou perturbado o seu desenvolvimento, caem doentes em conseqüência de sua sexualidade - isto é, elas não conseguem alcançar a necessária supressão ou sublimação de seus componentes sexuais sem recorrerem a inibições ou substituições.
O comportamento desse nosso paciente, no que concerne a masturbação, foi realmente fora do comum. Ele não a praticava durante a puberdade [digno de menção, em todos os sentidos (ver em [1])], e, portanto, de conformidade com determinadas perspectivas, poderia-se esperar que ele ficasse livre de neurose. Por outro lado, um impulso em direção a atividades masturbatórias acometeu-lhe quando tinha vinte e um anos de idade, pouco depois da morte de seu pai. Sentia-se muitíssimo envergonhado de si mesmo cada vez que se gratificava com esse ato, e logo abjurava do hábito. A partir daquela época este somente reaparecia em ocasiões raras e extraordinárias. Contou-me que era provocado quando vivia momentos de especial beleza ou quando lia belíssimas passagens. Por exemplo, certa vez ocorreu numa adorável tarde de verão, quando, estando no centro de Viena, ouvia um postilhão tocando corneta maravilhosamente, até que um policial o impediu, porque tocar corneta no centro da cidade era proibido. Noutra ocasião, aconteceu quando ele lia em Dichtung und Wahrheit [III, 11] como o jovem Goethe se libertara, numa explosão de ternura dos efeitos de uma maldição que uma amante ciumenta havia conjurado contra a próxima mulher que lhe beijasse nos lábios, depois dela; por muito tempo sofrera, quase de modo supersticioso, a maldição que o mantinha à distância; porém, agora, acabava de romper os grilhões e beijava repetidamente seu amor com alegria.

Ao paciente não parecia nada estranho que ele fosse impelido a masturbar-se exatamente em belas e enaltecedoras ocasiões como estas. Contudo, eu não podia deixar de apontar que essas duas ocasiões tinham algo em comum: uma proibição e o desafio a uma ordem.
Precisamos considerar também, nessa mesma conexão, seu curioso comportamento numa vez em que ele estudava para um exame e brincava com sua fantasia favorita de que seu pai ainda estava vivo e a qualquer momento poderia reaparecer [ver em [1]]. Costumava fazer com que suas horas de estudo fossem tão tardias quanto possível, à noite. Entre a meia-noite e uma hora ele interromperia o seu estudo e abriria a porta da frente do apartamento, como se seu pai estivesse do lado de fora; em seguida, regressando ao hall, ele tiraria para fora o seu pênis e olharia para ele no espelho. Esse comportamento maluco torna-se inteligível se presumirmos que ele agia como se esperasse uma visita de seu pai à hora em que os fantasmas estão circulando. Em geral tinha sido preguiçoso com seus estudos quando seu pai vivia, e isto constituíra, com freqüência, uma causa de aborrecimento para seu pai. Agora que ele retornava como um fantasma, devia ficar muito contente ao encontrar seu filho estudando arduamente. Mas era impossível que seu pai gostasse da outra parte do seu comportamento; nisto, portanto, estava desafiando-o. Assim, com um singular e ininteligível ato obsessivo, expressava os dois lados de sua relação com seu pai, de modo idêntico ao que fez, subseqüentemente, com respeito a sua dama por meio de seu ato obsessivo com a pedra [ver em [1]].
Partindo dessas indicações e de outros dados de natureza semelhante, arrisquei-me a apresentar uma construção segundo a qual ele, quando criança de menos de seis anos, fora culpado por alguma má conduta relacionada com a masturbação, tendo sido duramente castigado por seu pai, por isso. Essa punição, consoante minha hipótese, pusera, era verdade, um fim em sua masturbação; contudo, por outro lado, deixara atrás de si um rancor inextinguível pelo seu pai e o fixara para sempre em seu papel de perturbador do gozo sexual do paciente. Para minha grande surpresa, o paciente então me comunicou que sua mãe repetidamente lhe descrevera um acontecimento dessa natureza, que datava de sua tenra infância e que, evidentemente, não fugira à lembrança de sua mãe em virtude de suas surpreendentes conseqüências. Ele próprio, contudo, não tinha recordação de que coisa era. Segue-se a narrativa. Quando ele era muito pequeno (foi possível estabelecer a data com maior exatidão, devido à sua coincidência com a doença fatal de uma irmã mais velha [ver em [1]]), ele praticara uma travessura, pela qual seu pai lhe batera. O pequeno foi tomado de terrível raiva e xingara seu pai ainda enquanto apanhava. Entretanto, como não conhecia impropérios, chamara-o de todos os nomes de objetos comuns que lhe vinham à cabeça e gritara: ‘Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato!’, e assim por diante. Seu pai, abalado com uma tal explosão de fúria natural, parou de lhe bater, e exclamara: ‘O menino ou vai ser um grande homem, ou um grande criminoso!’ O paciente acreditava que a cena causara uma impressão permanente tanto em si próprio como em seu pai. Ele disse que seu pai jamais bateu nele de novo; e também atribuiu a essa experiência parte da mudança que ocorreu em seu próprio caráter. A partir daquela época, tornou-se um covarde [ver em [1]], por medo da violência de sua própria raiva. Aliás, por toda a sua vida, teve terrível medo de pancadas, e costumava agachar-se e esconder-se, cheio de terror e indignação, quando um de seus irmãos ou irmãs era espancado.
Subseqüentemente, o paciente indagou de novo sua mãe a esse respeito. Ela confirmou a história, acrescentando que, na época, ele tinha entre três e quatro anos de idade e que lhe haviam dado o castigo porque ele havia mordido alguém. Ela não era capaz de se lembrar de mais detalhes, exceto uma vaga idéia de que a pessoa a quem o pequeno havia ferido talvez tivesse sido a sua babá. No relato de sua mãe não se cogitava de que sua ação má fosse de natureza sexual.

Uma discussão a respeito dessa cena da infância encontra-se na nota de rodapé, e aqui anotarei apenas que a emergência dela abalou, pela primeira vez, o paciente em sua recusa a acreditar que em algum período pré-histórico de sua infância tivesse sido tomado de fúria (que, a seguir, se tornara latente) contra o pai, a quem amava tanto. Devo confessar minha expectativa de que isso tivesse causado maior efeito, de vez que o incidente lhe fora tantas vezes descrito - até mesmo pelo próprio pai -, que não poderia haver dúvidas quanto à sua realidade objetiva. Entretanto, com aquela capacidade de ser ilógico que jamais deixa de desnortear uma dentre essas pessoas tão sumamente inteligentes, como o são os neuróticos obsessivos, ele continuou insistindo, contra o valor comprobatório dessa história, no fato de que ele mesmo não conseguia lembrar da cena. Assim, somente pelo caminho doloroso da transferência é que foi capaz de se convencer de que sua relação com o pai realmente carecia da postulação desse complemento inconsciente. As coisas atingiram um ponto em que, em seus sonhos, em suas fantasias despertas e em suas associações, ele começou a acumular os mais grosseiros e indecorosos impropérios contra mim e minha família embora em suas ações deliberadas jamais me tratasse de outra forma senão com o maior respeito. Seu comportamento, enquanto me repetia esses insultos, era de um homem em desespero. ‘Como pode um cavalheiro como o senhor’, ele costumava perguntar, ‘deixar-se xingar desse modo por um sujeito baixo e à-toa como eu? O senhor devia é me enxotar, é o que mereço.’ Enquanto assim falava, costumava levantar-se do divã e circular pela sala - um hábito que a princípio explicou como sendo devido a uma questão de ética: ele não podia chegar, como disse, a proferir coisas tão horríveis estando ali deitado, tão comodamente. Logo, porém, ele próprio encontrou uma explicação mais plausível, ou seja, que estava evitando a minha proximidade por medo de que eu lhe desse uma bofetada. Se ficava no divã, comportava-se como alguém em desesperado terror que tentasse se salvar de castigos terrivelmente violentos; costumava enterrar a cabeça nas mãos, cobrir o rosto com o braço, saltar de repente e correr, com o semblante desfigurado de dor etc. Recordou que seu pai tivera um temperamento passional e, às vezes, em seu caráter violento, não soubera quando parar. Assim, paulatinamente, nessa escola de sofrimento, o paciente logrou o sentimento de convicção que lhe faltava - embora a uma pessoa de fora a verdade fosse evidente quase por si mesma.
Agora estava aberto o caminho para a solução de sua idéia do rato. O tratamento atingiu seu ponto crítico, e boa quantidade de informações materiais, retidas até então, tornou-se disponível, ficando assim possível reconstruir a concatenação completa dos eventos.
Em minha descrição, irei, como já disse, contentar-me com o resumo mais sucinto possível das circunstâncias. Obviamente, o primeiro problema a resolver era saber por que as duas falas do capitão tcheco - sua história do rato [ver em [1]] e seu pedido ao paciente para que ele pagasse ao Tenente A. [ver em [2]] - tinham exercido um tal efeito de agitação sobre ele e provocado reações tão violentamente patológicas. A suposição era que se tratava de uma questão de ‘sensibilidade complexiva’ e que as falas tivessem um efeito desagradável em determinados pontos hiperestáticos em seu inconsciente. E o fato confirmou-se. Como sempre acontecia com o paciente, no que concernia a assuntos militares, ele estivera em um estado de identificação inconsciente com seu pai, que enfrentara um serviço militar de muitos anos [ver em [1]] e retivera muitas histórias do seu tempo de soldado. Agora, acontecia, por casualidade - pois a casualidade pode desempenhar um papel na formação de um sintoma, do mesmo modo como o fraseado pode ajudar na formação de um chiste -, que uma das pequenas aventuras de seu pai tinha um importante elemento em comum com o pedido do capitão. Seu pai, na qualidade de suboficial, controlava uma pequena soma de dinheiro, e, certa ocasião, perdera-o num jogo de cartas. (Portanto, ele fora um ‘Spielratte‘.) Teria ficado em má situação se um de seus camaradas não lhe tivesse adiantado a importância. Depois que deixou o exército e estando em boa situação financeira, tentara encontrar esse amigo em necessidade, de modo a reembolsar-lhe o dinheiro, mas não o conseguira localizar. O paciente estava inseguro quanto a saber se ele, alguma vez, conseguira devolver o dinheiro. A recordação desse pecado da juventude de seu pai era-lhe penosa, pois, malgrado as aparências, seu inconsciente estava repleto de críticas hostis ao caráter de seu pai. As palavras do capitão, ‘Você deverá reembolsar ao Tenente A. os 3.80 kronen‘, soaram ao seus ouvidos como uma alusão a essa dívida não liquidada de seu pai.
Entretanto, a informação de que a jovem dama da agência postal de Z……… havia, ela mesma, pago as taxas pelo pacote, com uma observação lisonjeira a respeito dele próprio [ver em [1]], intensificara sua identificação com seu pai em sua direção relativamente diferente. Nesse estádio da análise, ele apresentou algumas informações novas, como a de que o senhorio da hospedaria na pequena localidade onde ficava a agência postal tinha uma linda filha. Ela estivera positivamente encorajando o jovem oficial, de modo que ele pensou em voltar lá depois de terminadas as manobras, e tentar sua sorte com ela. Agora, todavia, tinha ela uma rival na figura da jovem dama da agência postal. Como seu pai, na narrativa feita de seu casamento [ver em [1]], ele agora podia permitir-se hesitar quanto a qual das duas ele concederia seus favores, após concluído seu serviço militar. Podemos imediatamente verificar que sua insólita indecisão quanto a saber se viajaria a Viena ou regressaria ao lugar onde estava a agência postal, bem como a constante tentação que sentia de voltar enquanto viajava (ver em [1]), não eram assim tão disparatadas, como nos pareciam em princípio. Para sua mente consciente, a atração exercida sobre ele por Z………, o lugar onde ficava a agência postal, explicava-se pela necessidade de ver o Tenente A. e de cumprir o juramento com sua ajuda. Na realidade, contudo, o que o estava atraindo era a jovem da agência postal, e o tenente era simplesmente um bom substituto para ela, de vez que havia morado na mesma localidade e se havia incumbido do serviço postal militar. Subseqüentemente, ouvindo que não era o Tenente A., mas sim outro oficial, B., quem estivera a serviço na agência postal naquele dia [ver em [1]], também o incluiu em sua associação. E assim foi capaz de reproduzir em seus delírios com relação aos dois oficiais a hesitação que sentia entre as duas jovens tão amavelmente inclinadas para ele.

Figura 5
Na elucidação dos efeitos produzidos pela história do rato, narrada pelo capitão, é preciso acompanhar mais de perto o curso da análise. O paciente começou a elaborar grande volume de material associativo, o qual, contudo, não esclareceu as circunstâncias nas quais se havia dado a formação de sua obsessão. A idéia da punição realizada por meio de ratos atuara como estímulo a muitos de seus instintos e evocara um conjunto de recordações; de sorte que, no curto intervalo entre a história do capitão e seu pedido para reembolsar o dinheiro, os ratos tomaram uma série de significados simbólicos aos quais outros, recentes, se foram acrescentando, durante o período que se seguiu.
 Devo confessar que posso apenas fornecer um relato muito incompleto de toda a situação. Aquilo que a punição com ratos nele incitou, mais do que qualquer outra coisa, foi o seu erotismo anal, que desempenhara importante papel em sua infância e se mantivera ativo, por muitos anos, por via de uma constante irritação sentida por vermes. Desse modo, os ratos passaram a adquirir o significado de ‘dinheiro’. O paciente deu uma indicação dessa conexão reagindo à palavra ‘Ratten‘ [‘ratos’] com a associação ‘Raten‘ [‘prestações’]. Em seus delírios obsessivos ele inventou uma espécie de dinheiro regular como moeda-rato. Por exemplo, ao responder a uma pergunta, disse-lhe o valor de meu honorário por uma hora de tratamento; ele disse para si próprio (segundo eu soube, seis meses mais tarde): ‘Tantos florins, tantos ratos’. Paulatinamente traduziu para a sua língua o complexo inteiro de juros monetários centrados em torno do legado que lhe daria o pai; isso quer dizer que todas as suas idéias correlacionadas com aquele assunto se reportavam, por intermédio da ponte verbal ‘Raten-Ratten‘, à sua vida obsessiva e caíam sob o domínio de seu inconsciente. Ademais, o pedido que lhe fizera o capitão, para reembolsar as despesas relativas ao pacote, serviu para fortalecer a significação monetária de ratos, mediante outra ponte verbal, ‘Spielratte‘, que reconduziu à dívida contraída por seu pai no jogo [ver em [1]].
O paciente, todavia, estava também familiarizado com o fato de que os ratos são portadores de perigosas doenças contagiosas; portanto, ele podia empregá-los como símbolos de seu pavor (bastante justificável, no exército) de uma infecção sifilítica. Esse pavor ocultava todas as espécies de dúvidas relativamente ao tipo de vida que seu pai levara durante o tempo de seu serviço militar. Por outro lado, em um sentido diferente, o próprio pênis é um portador de infecção sifilítica; dessa forma, ele podia considerar o rato como um órgão sexual masculino. Havia uma outra designação a ser encarada desse modo, de vez que um pênis (mormente o pênis de uma criança) pode ser facilmente comparado com um verme, e a história do capitão fora a respeito de ratos que se enfiavam no ânus de alguém exatamente como as grandes lombrigas lhe fizeram quando era criança. Assim, a significação de ratos como pênis baseava-se, uma vez mais, em erotismo anal. E, além disso, o rato é um bicho sujo, que come excremento e vive em esgotos. Talvez seja desnecessário mostrar em que escala uma extensão do delírio de ratos se tornou possível em virtude desse novo significado. Por exemplo, ‘Tantos ratos, tantos florins’ poderia valer como uma caracterização excelente de determinada profissão feminina que ele detestava em particular. Por outro lado, certamente não há que encarar com indiferença o fato de que a substituição de um pênis por um rato, na história do capitão, resultasse numa situação de relação sexual per anum, que não podia deixar de ser para ele particularmente revoltante quando em conexão com seu pai e com a mulher que ele amava. E quando consideramos que a mesma situação foi reproduzida na ameaça compulsiva formada em sua mente, depois de o capitão haver feito o seu pedido [ver em [1]], forçosamente nos lembraremos de algumas maldições em uso entre os eslavos do sul. Ademais disso, todo esse material (e outros mais) foi entretecido nas discussões sobre ratos por trás da associação encobridora ‘heiraten‘ [‘casar’].
A história da punição com ratos, conforme nos mostrou o próprio relato do paciente acerca do assunto e sua expressão fisionômica quando me repetia a história, inflamara todos os seus impulsos, precocemente suprimidos, de crueldade, tanto egoísta como sexual. Contudo, malgrado todo esse rico material, não ficou esclarecido o significado dessa idéia obsessiva, até que, um dia, emergiu na análise a Mulher-Rato de O Pequeno Eyolf, de Ibsen, e foi impossível evitar a inferência de que em muitas das formas assumidas pelos seus delírios obsessivos os ratos tinham ainda outro significado, ou seja, o de crianças. Investigando acerca da origem desse novo significado, imediatamente deparei com algumas das suas raízes mais primitivas e importantes. Certa vez, visitando o túmulo de seu pai, o paciente vira um grande bicho, que ele imaginou ser um rato, passando em carreira pelo túmulo. Ele supôs que o bicho tivesse, na realidade, saído do túmulo de seu pai, e tinha acabado de devorar uma parte de seu cadáver. A noção a respeito de um rato está inseparavelmente comprometida com o fato de que este possui dentes afiados, com os quais rói e morde. Os ratos, contudo, não podem ter dentes tão afiados, ser devoradores e sujos impunemente: são cruelmente perseguidos e impiedosamente mortos pelos homens, como o paciente muitas vezes observara com grande terror. Com freqüência havia-se apiedado das pobres criaturas. Ele próprio, porém, tinha sido um sujeitinho asqueroso e sujo, sempre pronto a morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-lo feito [ver em [1]]. É bem verdade que ele podia ver no rato ‘uma imagem viva de si mesmo’. Foi quase como se o próprio destino, quando o capitão lhe contou a sua história, o estivesse submetendo a um teste de associação: o destino lhe apresentara, em desafio, uma ‘palavra-estímulo complexa’ [ver em [2]], e ele reagira com sua idéia obsessiva.
Assim, de acordo com as suas mais remotas e importantes experiências, os ratos eram as crianças. E, a essa altura, apresentou uma informação que ele havia mantido longe de seu contexto por bastante tempo, mas que agora explicava plenamente o interesse que ele estava fadado a ter por crianças. A dama, de quem ele fora admirador por tantos anos, mas com quem não fora capaz de decidir a casar-se, estava condenada à esterilidade em virtude de uma operação ginecológica que envolvera a extirpação dos ovários. De fato isto fora, de vez que ele gostava extraordinariamente de crianças, o motivo principal de sua hesitação.
Somente então é que se tornou possível compreender o inexplicável processo pelo qual a sua idéia obsessiva se formara. Com o auxílio de nosso conhecimento acerca das teorias sexuais da infância e do simbolismo (adquirido, como o foi, a partir de interpretação de sonhos) tudo pode ser traduzido e adquirir um significado. Na parada que fizeram à tarde (durante a qual ele perdera o seu pince-nez), quando o capitão lhe contara sobre a punição com ratos, o paciente, a princípio, apenas se chocara com a crueldade e lascividade, combinadas, da situação que estava sendo descrita. Contudo, logo após verificou-se uma conexão com a cena, oriunda de sua infância, na qual ele havia mordido alguém. O capitão - homem que poderia defender esse tipo de punição - tornou-se um substituto de seu pai, e, por conseguinte, atraíra sobre si parte dessa vívida repulsa que explodira, na ocasião, contra seu cruel pai. A idéia que lhe veio por um instante à consciência, com relação ao fato de que algo dessa natureza podia acontecer a alguém de quem ele gostava, pode, provavelmente, ser traduzida como um desejo parecido com ‘É preciso que lhe façam também a mesma coisa!’, dirigido àquele que narrou a história, e através dele, a seu pai. Um dia e meio mais tarde, quando o capitão lhe entregara o pacote pelo qual as taxas eram devidas, pedindo para reembolsar os 3.80 kronen ao Tenente A. [ver em [1]], ele já se fizera ciente de que seu ‘cruel superior’ estava equivocado, e de que a única pessoa a quem devia algo era à jovem dama da agência postal. Por conseguinte, podia facilmente lhe haver ocorrido pensar em alguma resposta irônica, tal como ‘Você acha mesmo que eu vou pagar?’ ou ‘Pago coisa nenhuma!’, ou então ‘Claro! Pode deixar que eu vou pagar a ele!’ - respostas que não estariam sujeitas a nenhuma força compulsiva. Contudo, em vez disso, nascida das agitações de seu complexo paterno e de sua lembrança da cena oriunda de sua infância, formou-se em sua mente uma resposta parecida com ‘Está bem. Reembolsarei o dinheiro ao Tenente A. quando meu pai e a dama tiverem filhos!’, ou ‘Tão certo quanto meu pai e a dama possam ter filhos, eu lhe pagarei!’ Em suma, uma afirmação ridícula ligada a uma absurda condição que jamais se satisfaria.
Agora, porém, o crime fora cometido; ele insultara as duas pessoas que lhe eram mais caras: seu pai e a sua dama. Esse feito clamava por punição, e a pena consistia em ele se comprometer com um juramento que lhe fosse impossível cumprir e que impunha total obediência à injustificada exigência de seu superior. O juramento era o seguinte: ‘Agora você deverá realmente reembolsar o dinheiro a A.’ Em sua convulsiva obediência ele reprimira seu melhor conhecimento de que o pedido do capitão se tinha baseado em premissas erradas: ‘Sim, você precisa reembolsar o dinheiro a A., conforme o exigiu o substituto de seu pai. Seu pai não pode estar equivocado; e se ele investe um de seus súditos de um título que não lhe pertence, o súdito passará a trazer sempre esse mesmo título.‘
Apenas uma vaga noção desses eventos foi assimilada pela consciência do paciente. Mas a sua revolta contra a ordem do capitão e a súbita transformação daquela revolta em seu oposto estavam, ambas, aqui representadas. Em primeiro lugar, adveio a idéia de que ele não tinha de reembolsar o dinheiro, ou então aquilo (isto é, a punição com ratos) iria acontecer; e a seguir adveio a transformação dessa idéia em um juramento de efeito contrário, como punição por sua revolta [ver em [1]].
Dando prosseguimento ao fato, imaginemos as condições gerais sob as quais ocorreu a formação da grande idéia obsessiva do paciente. Sua libido tinha sido aumentada por um longo período de abstinência acoplado com a amável receptividade com a qual um jovem oficial pode contar quando está entre mulheres. Ademais disso, na época em que ele estava iniciando as manobras se instalara entre ele e a dama uma certa frieza nas relações. A intensificação de sua libido levou-o a renovar sua luta antiga contra a autoridade de seu pai, e ele ousara pensar em manter relações sexuais com outras mulheres. Sua lealdade à lembrança que guardava de seu pai fora-se debilitando, e aumentaram suas dúvidas a respeito dos méritos de sua dama; com essa disposição de espírito ele se deixou arrebatar a um perjúrio contra os dois, e assim se punira por havê-lo feito. Com esse ato, copiara, pois, um antigo modelo. E quando, no final das manobras, hesitara por tanto tempo para saber se viajaria a Viena ou se ficaria e cumpriria seu juramento, representara num só quadro os dois conflitos que desde o princípio o haviam afetado: se deveria, ou não, manter obediência a seu pai, e se deveria, ou não, manter-se fiel a sua amada.
Posso acrescentar uma observação acerca da interpretação daquela ‘sanção’ que, como se há de lembrar, consistia em que ‘de outra forma, a punição com ratos será infligida a ambos’. Baseava-se na influência das duas teorias sexuais da infância, que abordei em outro lugar. A primeira dessas teorias é que os bebês nascem do ânus; e a segunda, que decorre logicamente da primeira, que os homens também podem ter bebês, como as mulheres. Em conformidade com as regras técnicas de interpretação de sonhos, a noção de vir para fora do reto pode ser representada pela noção oposta de mover-se para dentro do reto (como na punição com ratos), e vice-versa.
Não nos cabe justificativa alguma por esperarmos que idéias obsessivas severas como as que estavam presentes nesse caso sejam esclarecidas por um método mais simples, ou por quaisquer outros meios. Quando achamos a solução descrita acima, o delírio que o paciente sofria sobre os ratos desapareceu.

II - CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

(A) ALGUMAS CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS ESTRUTURAS OBSESSIVAS

No ano de 1896, defini as idéias obsessivas como `autocensuras transformadas que reemergiram da repressão e que invariavelmente se referem a algum ato sexual praticado com prazer na infância’. [Freud 1896b (no início da Seção II).] Essa definição agora me parece exposta às críticas sobre seus fundamentos formais, embora seus elementos componentes sejam irrepreensíveis. Ela visava demais a uma unificação e tomou por modelo a prática dos próprios neuróticos obsessivos, quando, em vista de sua característica de serem propensos à indefinição, eles aglomeram sob a designação de `idéias obsessivas’ as mais heterogêneas estruturas psíquicas. Com efeito, seria mais correto falar de `pensar obsessivo’, e esclarecer que as estruturas obsessivas podem corresponder a toda sorte de ato psíquico. Elas podem ser classificadas como desejos, tentações, impulsos, reflexões, dúvidas, ordens ou proibições. Os pacientes esforçam-se, geralmente, por amenizar tais distinções e encarar aquilo que fica desses atos psíquicos após terem sido destituídos de seu contexto afetivo simplesmente como `idéias obsessivas’. O paciente do presente caso forneceu um exemplo desse tipo de comportamento numa de suas primeiras consultas, ao tentar reduzir um desejo ao nível de uma mera `corrente de pensamento’ (ver em [1]).

Ademais, é preciso admitir que mesmo a fenomenologia do pensar obsessivo ainda não desfrutou de suficiente atenção. Durante a luta defensiva secundária, que o paciente empreende contra as `idéias obsessivas’ que tentaram penetrar em sua consciência, revelam-se estruturas psíquicas que merecem receber uma designação especial. (Tais foram, por exemplo, as seqüências de pensamentos que se apossaram da mente de nosso paciente, em sua viagem de volta das manobras.) Não se trata de considerações puramente racionais levantadas em oposição aos pensamentos obsessivos, mas sim, como o eram, de híbridos das duas espécies do pensar; elas assumem determinadas premissas da obsessão que combatem; e, portanto, usando as armas da razão, se estabelecem numa base de pensamento patológico. Acho que estruturas como estas merecem ser denominadas de `delírios‘. A fim de esclarecer a diferença, fornecerei um exemplo, que devia ser inserido em seu adequado contexto no caso clínico do paciente. Já descrevi a disparatada conduta que ele assumiu certa vez, quando se preparava para um exame - como, após estudar até tarde da noite, costumava ir abrir a porta da frente para o fantasma de seu pai, e então olhar para as suas partes genitais pelo espelho (ver em [1]). Ele tentava se orientar indagando-se sobre o que diria seu pai diante disso tudo se ainda estivesse vivo. Porém o argumento não surtiu efeito enquanto desenvolvido dessa forma racional. O espectro só desapareceu quando ele transformou a mesma idéia em uma ameaça `delírica’ de que, enquanto continuasse cometendo esse absurdo, alguma coisa maligna aconteceria a seu pai no outro mundo.
A distinção entre uma luta defensiva primária e uma secundária estava, indubitavelmente, bem estabelecida, mas achamos seu valor inesperadamente diminuído ao descobrirmos que os próprios pacientes não conhecem o contexto verbal de suas próprias idéias obsessivas. Isto pode parecer paradoxal, mas é perfeitamente admissível. Durante o processo de uma psicanálise, não é apenas o paciente que ganha coragem, mas também sua doença; esta se atreve o suficiente para falar com maior clareza do que antes. Deixando de lado essa metáfora, o que acontece é o paciente, que até então abstinha-se, horrorizado, de encarar suas próprias produções patológicas, começar a dar-lhes atenção e conseguir uma opinião mais nítida e detalhada a respeito delas. [Cf. em [1].]

Além disso, existem dois modos especiais pelos quais se pode obter um conhecimento mais preciso das estruturas obsessivas. Em primeiro lugar, a experiência mostra que uma ordem obsessiva (ou seja lá o que for), conhecida na vida desperta apenas de forma truncada ou deformada, como uma mensagem telegráfica mutilada, pode ter o seu texto real esclarecido num sonho. Tais textos aparecem, nos sonhos, em forma de conversas e constituem, pois, uma exceção à regra de que os diálogos, em sonhos, derivam de conversas na vida real. Em segundo lugar, no decorrer do exame analítico de um caso clínico, fica-se convencido de que se inúmeras obsessões se sucedem uma a outra, elas, com freqüência, são, em última análise, a mesma e única obsessão - ainda que seu teor não seja idêntico. A obsessão pode ter sido resolvida com êxito em sua primeira aparição; contudo, retorna de forma distorcida e irreconhecível, sendo então capaz de, na luta defensiva, afirmar-se com mais eficácia exatamente em virtude de sua deformação. Mas a forma correta é a original, e muitas vezes exibe seu significado abertamente. Quando, com grande dificuldade, elucidamos uma idéia obsessiva ininteligível, quase sempre acontece informar-nos o paciente de que exatamente essa noção, desejo ou tentação, como o que elaboramos, realmente surgiu um momento antes que a idéia obsessiva brotasse, mas não persistiu. Infelizmente ver-nos-íamos envolvidos numa digressão muito longa caso tivéssemos de fornecer exemplos disto extraídos da história desse nosso paciente.
Aquilo que se descreve oficialmente como uma `idéia obsessiva’ mostra, por conseguinte, em sua deformação a partir de seu teor original; vestígios da luta defensiva primária. Sua deformação possibilita que esta persista, de vez que o pensamento consciente é, pois, impelido a compreendê-la mal, como se fosse um sonho; isso porque também os sonhos são um produto da conciliação e da deformação, e são mal compreendidos pelo pensamento desperto.

Essa má compreensão por parte da consciência pode ser vista atuando não apenas com relação às próprias idéias obsessivas, mas também com referência aos produtos da luta defensiva secundária tais como, por exemplo, as fórmulas de proteção. Posso dar dois bons exemplos disso. Nosso paciente costumava utilizar, como uma fórmula defensiva, um `aber‘ [`mas’] pronunciado rapidamente, acompanhado de um gesto de repúdio. Contou-me certa ocasião, que essa fórmula recentemente se modificara; já não mais dizia `áber‘, mas sim `abér‘. Indagado pela razão desse novo processo, declarou que o `e‘ mudo da segunda sílaba não lhe dava qualquer sentimento de segurança contra a intrusão, que tanto havia temido, de algum elemento estranho e contraditório, e que, por conseguinte, decidira acentuar o `e‘. Essa explicação (uma excelente amostra do estilo neurótico obsessivo) era, contudo, nitidamente inapropriada; no máximo, ela só podia ser uma racionalização. A verdade era que `abér‘, representava uma aproximação à palavra de pronúncia semelhante: `Abwehr‘ (`defesa’], um vocábulo que ele havia aprendido durante nossos debates teóricos de psicanálise. Ele havia, portanto, consignado o tratamento a um uso ilegítimo e `delírico’, a fim de fortalecer uma fórmula defensiva. Noutra ocasião, falou-me a respeito de sua principal palavra mágica, um apotropéico contra qualquer mal; ele a compusera a partir das letras iniciais da mais poderosamente benéfica de suas preces e colocara imediatamente um `amém’ no final. Não posso reproduzir essa palavra, por motivos que logo se tornarão claros. Porque, quando ele me falou, eu não podia deixar de notar que a palavra era, de fato, um anagrama do nome de sua dama. Seu nome continha um `s‘, e ele pôs este por último, isto é, imediatamente antes do `amém’, no final. Portanto, podemos dizer que mediante esse processo ele pusera o seu `Samen‘ [`sêmen’] em contato com a mulher que amava; digamos, pois, que em sua imaginação ele se havia masturbado com ela. Contudo, ele próprio jamais notara essa conexão tão óbvia, as suas forças defensivas permitiram-se enganar pelas forças reprimidas. Este, também, é um bom exemplo da regra de que com o tempo a coisa que se pretendia afastar encontra meio de expressão no mesmo recurso que está sendo utilizado para afastá-la.
Já afirmei que os pensamentos obsessivos sofrem uma deformação semelhante àquela pela qual os pensamentos oníricos passam antes de se tornarem o conteúdo manifesto de um sonho. A técnica dessa deformação pode, por conseguinte, interessar-nos, e nada nos impediria de mostrar suas várias modalidades mediante uma série de obsessões que foram traduzidas e esclarecidas. Mas, aqui, de novo as condições que regem a publicação deste caso me impossibilitam fornecer mais exemplos. Nem todas as obsessões do paciente foram assim tão complicadas nas suas estruturas e tão difíceis de resolver, como a grande idéia do rato. Em algumas outras, foi utilizada uma técnica muito simples, ou seja, a de deformação por omissão ou elipse. Essa técnica aplica-se preferentemente a chistes, mas também no presente caso ela funcionou bem, como um meio de evitar que as coisas fossem compreendidas.
Por exemplo, uma das mais antigas e preferidas obsessões do paciente (correspondente a uma advertência ou admoestação) tinha o seguinte contexto: `Se eu casar com a dama, a meu pai ocorrerá algum infortúnio (no outro mundo).’ Introduzindo os elementos intermediários, que foram omitidos mas que conhecemos da análise, obtemos a seguinte corrente de pensamento: `Se meu pai estivesse vivo, ele estaria tão furioso com minha intenção de casar-me com a dama como esteve na cena de minha infância; de modo que eu teria outra explosão de raiva contra ele, desejando-lhe todo mal possível; e graças à onipotência de meus desejos esses males acabariam inevitavelmente por incidir sobre ele.’
Eis um outro exemplo no qual se pode chegar a uma solução completando-se uma elipse, e que, novamente, corresponde a uma advertência ou uma proibição asceta. Tinha o paciente uma encantadora sobrinha, menina ainda, de quem ele gostava muito. Certo dia, passou-lhe pela cabeça a seguinte idéia: `Se você se permitir uma relação sexual, alguma coisa irá acontecer a Ella (isto é, ela morrerá).’ Preenchendo-se as omissões, temos: `Sempre que você copular, ainda que com uma desconhecida, você não será capaz de escapar à reflexão de que em sua vida de casado as relações sexuais jamais lhe darão um filho (em conseqüência da esterilidade da dama). Isto lhe afligirá tanto que você terá inveja de sua irmã por causa da pequena Ella. Tais impulsos de inveja inexoravelmente acarretarão a morte da criança.’

A técnica de deformação por elipse parece ser característica das neuroses obsessivas; tenho notado isso também nos pensamentos obsessivos de outros pacientes. Um exemplo, particularmente claro, interessa-nos de modo todo especial em virtude de certa semelhança estrutural com a idéia do rato. Trata-se de um caso de dúvida ocorrido com uma dama que sofria principalmente de atos obsessivos. Essa dama saiu a passeio com seu marido, em Nuremberg, e fê-lo levá-la a uma loja onde ela comprou diversos artigos para seu filho, entre estes um pente. Seu marido, achando que fazer compras era um negócio muito demorado para o seu gosto, disse que havia visto, no meio do caminho, algumas moedas num antiquário que ele desejava muito adquirir e acrescentou que, depois dessas compras, voltaria à loja para buscá-la. Mas ela achou que ele estava demorando muito. Quando ele voltou, ela então lhe perguntou por onde havia estado. `Ora’, respondeu ele, `na loja de antiguidades, como eu te disse.’ No mesmo instante invadiu-lhe a dúvida sobre se ela já não possuía de fato o pente que acabava de comprar para o filho. Naturalmente ela era incapaz de descobrir o elo mental aqui presente. Nada nos resta senão considerar que a dúvida foi deslocada e reconstruir toda a cadeia de pensamentos inconscientes da seguinte forma: `Se é verdade que você só esteve na loja de antiguidades, se devo realmente acreditar nisso, então também posso acreditar que esse pente que acabo de comprar esteve em minhas mãos durante anos.’ Por conseguinte, a dama aqui fazia um paralelo derrisório e irônico, tal como quando o nosso paciente pensou [ver em [1]]: `Ah sim, tão certo como aqueles dois (seu pai e a dama) terão filhos, eu irei reembolsar o dinheiro a A.’ No caso da dama, a dúvida dependia de seu ciúme inconsciente, que a levou a supor que seu marido, enquanto esteve ausente, passou o tempo visitando alguém a quem fazia a corte.
Neste artigo não empreenderei qualquer discussão sobre a significação psicológica do pensar obsessivo. Uma tal discussão seria, por seus resultados, de um valor extraordinário e contribuiria mais para esclarecer nossas idéias a respeito da natureza do consciente e do inconsciente do que qualquer estudo sobre a histeria ou sobre os fenômenos da hipnose. Seria preferível se os filósofos e psicólogos, que desenvolvem brilhantes pontos de vista teóricos acerca do inconsciente na base de um conhecimento adquirido por ouvir dizer ou a partir de suas próprias definições convencionais, se submetessem, de início, às impressões convincentes que se podem adquirir a partir de um estudo direto dos fenômenos do pensar obsessivo. Poderíamos até mesmo chegar a exigi-lo deles, se essa tarefa não fosse tão mais árdua do que os métodos de trabalho a que estão acostumados. Apenas acrescentarei que, nas neuroses obsessivas, os processos mentais inconscientes às vezes irrompem na consciência em sua forma pura e indeformada; que tais incursões se podem dar em todo e qualquer estádio do processo inconsciente de pensamento; e que, no momento dessas incursões, as idéias obsessivas podem, na maioria, ser reconhecidas como formações de muito longa duração. Isto explica a surpreendente circunstância de o paciente, ao tentar o analista, com a ajuda dele, descobrir a data da primeira ocorrência de uma idéia obsessiva, ser obrigado a retrocedê-la sempre mais à medida que prossegue a análise, e estar constantemente encontrando `primeiras’ ocasiões do surgimento da obsessão.

(B) ALGUMAS PECULIARIDADES PSICOLÓGICAS DOS NEURÓTICOS OBSESSIVOS: SUA ATITUDE PERANTE A REALIDADE, A SUPERSTIÇÃO E A MORTE

Nesta seção pretendo lidar com algumas características mentais dos neuróticos obsessivos que, embora não pareçam importantes em si, estão no meio do caminho para uma compreensão de aspectos mais importantes. Essas características foram profundamente marcantes em nosso atual paciente; sei, contudo, que não se é capaz de atribuí-las ao seu caráter individual, mas sim ao seu distúrbio, e que não podem ser encontradas tão tipicamente em outros pacientes obsessivos.
Nosso paciente era altamente supersticioso, embora fosse um homem bastante instruído e esclarecido, e muito perspicaz, e embora fosse capaz, às vezes, de me assegurar que não acreditava numa palavra sequer dessas bobagens todas. Portanto, era ao mesmo tempo supersticioso e não supersticioso; ademais, existia uma nítida diferença entre a sua atitude e a superstição de pessoas incultas que se sentem inseparáveis de sua crença. Ele parecia entender que sua superstição dependia do seu modo de pensar obsessivo, embora, vez e outra, se deixasse dominar completamente. O significado desse comportamento inconsistente e vacilante pode ser apreendido com a maior facilidade se for encarado à luz de uma hipótese a que agora passarei a fazer menção. Não hesitei em aceitar a idéia de que não era verdade que o paciente ainda tivesse a mente esclarecida a esse respeito, mas que possuía duas convicções separadas e contraditórias acerca do assunto. Sua oscilação entre esses dois pontos de vista dependia, obviamente, de sua atitude momentânea perante o seu distúrbio obsessivo. Logo que se refazia de uma dessas obsessões, costumava sorrir, com um ar superior, para a sua própria credulidade, e nada acontecia que pudesse abalar suas convicções; não obstante, no momento em que caiu em poder de uma outra obsessão que ainda não tinha sido elucidada - ou, o que dá no mesmo, de uma resistência -, as mais estranhas coincidências iriam acontecer, para apoiá-lo em sua crédula convicção.
Sua superstição, contudo, era de um homem culto, e ele escapava de preconceitos vulgares, tais como temer a sexta-feira ou o número treze, e outros mais. Acreditava, porém, em premonições e em sonhos proféticos; constantemente iria encontrar a mesma pessoa em que, por alguma razão inexplicável, acabava de pensar; ou então receberia uma carta de alguém que, de repente, lhe vinha à lembrança, depois de esquecido durante anos. Era ao mesmo tempo suficientemente honesto - ou antes suficientemente leal à sua convicção oficial - para não se esquecer de casos em que os mais estranhos pressentimentos deram em nada. Numa ocasião, por exemplo, quando saiu de férias, no verão, sentira-se moralmente certo de que jamais regressaria vivo a Viena. Também admitiu que a grande maioria de suas premonições se referia a coisas que não continham importância especial para ele, e que, quando encontrava um conhecido em que, até poucos instantes antes, não tinha pensado durante longo tempo atrás, mais nada ocorria entre ele mesmo e a milagrosa aparição. Ademais, naturalmente não podia negar que todos os eventos importantes de sua vida ocorreram sem ele haver tido premonição dos mesmos, e que, por exemplo, a morte de seu pai o apanhara de surpresa. Argumentos como estes, porém, não modificaram em nada a discrepância de suas convicções; serviram, puramente, para provar a natureza obsessiva de suas superstições, e isto já se podia inferir do modo como elas vinham e iam com o aumento e a diminuição de sua resistência.
Obviamente eu não tinha condições de fornecer uma explicação racional de todas as histórias milagrosas de seu passado mais remoto. Mas, no que concerne às coisas semelhantes que ocorreram durante o seu tratamento, fui capaz de provar-lhe que ele mesmo invariavelmente havia ajudado na fabricação desses milagres, e fui capaz de indicar para ele os métodos que utilizou. Ele agia por meio de visão e leitura periféricas, esquecimento e, sobretudo, erros de memória. No final, ele usava a si mesmo para ajudar-me a descobrir os pequenos truques de prestidigitação pelos quais se executavam essas mágicas. Posso fazer menção a uma interessante raiz infantil de sua crença de que pressentimentos e premonições se realizam, que foi trazida à luz por sua recordação de que, com muita freqüência, ao se fixar a data para qualquer coisa, sua mãe costumava dizer: `Em tal e tal dia não vou poder; vou ter de ficar de cama, nesse dia.’ E, com efeito, chegando o referido dia, ela invariavelmente ficava de cama!
Não pode haver dúvida de que o paciente sentia uma necessidade de encontrar experiências desse tipo, que atuassem como esteios de suas superstições, e de que foi em virtude disso que ele tanto se ocupou em observar as inexplicáveis coincidências da vida quotidiana com as quais estamos todos familiarizados, utilizando sua própria atividade inconsciente quando estas não bastavam. Já deparei com uma idêntica necessidade em muitos outros pacientes obsessivos, suspeitando-a também em muitos outros mais além desses. Parece-me facilmente explicável, em face das características psicológicas da neurose obsessiva. Nesse distúrbio, conforme já expliquei (ver em [1]), a repressão não se efetua por meio da amnésia, mas sim mediante a ruptura de conexões causais devidas a uma retirada de afeto. Essas conexões reprimidas parecem persistir em algum tipo de configuração muito vaga (que eu, em outro lugar, comparei a uma percepção endopsíquica), sendo, por um processo de projeção, assim transferidas para o mundo externo, onde dão testemunho daquilo que foi apagado da consciência.
Uma outra necessidade mental, também compartilhada pelos neuróticos obsessivos e que, em alguns aspectos, tem parentesco com aquela que se acaba de mencionar, é a necessidade de incerteza em suas vidas, ou de dúvida. Pesquisando essa característica, vemo-nos aprofundados na investigação do instinto. A criação da incerteza é um dos métodos utilizados pela neurose a fim de atrair o paciente para fora da realidade e isolá-lo do mundo - o que é uma das tendências de qualquer distúrbio psiconeurótico. De novo, o óbvio são apenas os esforços que os próprios pacientes empreendem a fim de poderem evitar a certeza e ficarem em dúvida. De fato, alguns deles dão uma vívida expressão a essa tendência, numa aversão por relógios (de vez que estes, em última análise, dão a certeza da hora do dia), como também nos pequenos artifícios inconscientes de que se utilizam para tornar inócuos esses instrumentos que extinguem as dúvidas. Esse nosso paciente desenvolvera um especial talento para evitar um conhecimento de quaisquer fatos que o teriam auxiliado a chegar a uma decisão sobre o seu conflito. Por conseguinte, mantinha-se em ignorância a respeito daqueles assuntos relacionados com a sua dama que encerravam a máxima importância diante da questão de seu casamento: ele era ostensivamente incapaz de dizer quem a havia influenciado e se essa atuação tinha sido unilateral ou recíproca. Ele tinha de ser obrigado a lembrar o que havia esquecido, e a descobrir aquilo que ele havia deixado de conhecer.
A predileção dos neuróticos obsessivos pela incerteza e pela dúvida leva-os a orientar seus pensamentos de preferência para aqueles temas perante os quais toda a humanidade está incerta e nossos conhecimentos e julgamentos necessariamente expostos a dúvida. Os principais temas dessa natureza são paternidade, duração da vida, vida após a morte e memória - na qual todos nós costumamos acreditar, sem possuirmos a menor garantia de sua fidedignidade.
Nas neuroses obsessivas, a incerteza da memória é utilizada em toda a sua extensão como auxiliar na formação de sintomas; e conheceremos diretamente o papel desempenhado no conteúdo real dos pensamentos do paciente pelas questões sobre a duração da vida e a vida depois da morte. Contudo, como uma transição mais adequada, considerarei em primeiro lugar um vestígio particular de superstição em nosso paciente, ao qual já aludi (ver em [1]), e que, sem dúvida, terá confundido a mais de um de meus leitores.
Estou-me referindo à onipotência que ele atribuía aos seus pensamentos e sentimentos, e aos seus desejos, quer os bons quer os maus. Devo admitir ser decididamente tentador declarar que essa idéia era um delírio e que ela ultrapassa os limites da neurose obsessiva. Não obstante, tenho deparado com essa mesma convicção em outro paciente obsessivo; e há muito tempo que recuperou a saúde e vive uma vida normal. De fato, todos os neuróticos obsessivos comportam-se como se compartilhassem dessa convicção. Será nossa incumbência esclarecer, de algum modo, a superestimação com que os pacientes revestem as suas forças. Admitindo, sem mais delongas, que essa crença seja um reconhecimento sincero de uma lembrança da antiga megalomania da tenra infância, prosseguiremos indagando nosso paciente acerca dos fundamentos de sua convicção. Em resposta, ele evoca duas experiências suas. Ao regressar para uma segunda visita ao estabelecimento hidropático onde seu distúrbio se havia atenuado pela primeira e única vez [ver em [1]], ele pediu que lhe dessem seu antigo quarto, de vez que a localização deste favorecera suas relações com uma das enfermeiras. Disseram-lhe que o quarto já estava reservado e foi ocupado por um velho professor. Essa notícia diminuiu consideravelmente as suas expectativas de um tratamento bem-sucedido, e ele reagiu com o seguinte mau pensamento: `Desejo que ele caia morto por isso!’ Duas semanas depois foi despertado de seu sonho pela perturbadora idéia de um cadáver; e, de manhã, ouviu que o professor havia realmente sofrido um ataque e que fora levado para seu quarto quase no mesmo instante em que ele despertara. A segunda experiência referia-se a uma mulher solteira, já não jovem, malgrado seu grande desejo de ser amada, que lhe dera muita atenção e certa vez lhe perguntara, sem rodeios, se ele não a poderia amar. Ele lhe dera uma resposta evasiva. Poucos dias depois, ele soube que ela se havia atirado de uma janela. Começou então a censurar-se e disse consigo mesmo que poderia ter salvo sua vida concedendo-lhe seu amor. Assim, ficou convencido da onipotência de seu amor e de seu ódio. Sem negar a onipotência do amor, podemos mostrar que esses dois exemplos tinham conexão com a morte, e admitir a explicação lógica de que nosso paciente, tal como outros neuróticos obsessivos, era compelido a superestimar os efeitos de seus sentimentos hostis sobre o mundo externo, porque uma vasta parcela de seus efeitos internos e mentais escapou ao seu conhecimento consciente. Seu amor - ou, antes, seu ódio - era, em verdade, subjugador; foram precisamente eles que criaram os pensamentos obsessivos, cuja origem ele não era capaz se compreender e contra os quais lutou em vão para se defender.

Nosso paciente tinha uma atitude bastante peculiar perante a questão da morte. Mostrava a mais profunda simpatia sempre que alguém falecia, e acompanhava, religiosamente, o funeral; desse modo, ganhou entre seus irmãos e irmãs o apelido de `abutre’. Também em sua imaginação constantemente matava as pessoas, de modo a mostrar sua cordial simpatia para com seus desolados parentes. A morte de uma irmã mais velha, ocorrida quando ele tinha entre três e quatro anos de idade [ver em [1]], desempenhou importante papel em suas fantasias e foi intimamente correlacionada com suas travessuras infantis durante o mesmo período. Ademais, sabemos em que idade precoce os pensamentos acerca da morte de seu pai se haviam apoderado de sua mente; e podemos encarar a sua doença propriamente como uma reação àquele evento, pelo qual sentira um desejo obsessivo quinze anos antes. A estranha extensão de seus medos obsessivos até o `outro mundo’ nada mais era do que uma compensação por esses desejos de morte que sentira contra seu pai. Fora introduzida dezoito meses após a morte de seu pai, numa ocasião em que houvera um revivescimento de seu lamento pela perda, e estava destinada - em desafio à realidade e em deferência ao desejo que anteriormente se vinha revelando em fantasias de todo tipo - a anular o fato de seu pai haver morrido. Em várias passagens (ver em [1] e [2]) já tivemos oportunidade de traduzir a expressão `no outro mundo’ com as palavras `se meu pai ainda fosse vivo’.
O comportamento de outros neuróticos obsessivos, contudo, não difere tanto assim daquele de nosso paciente, muito embora não lhes tenha sido destinado encarar o fenômeno da morte numa idade tão precoce. Os seus pensamentos ocupam-se incessantemente com a duração da vida e possibilidade da morte de outras pessoas. As suas inclinações para a superstição não tiveram outro conteúdo em primeiro lugar, e talvez não tenham qualquer outra fonte possível. Mas esses neuróticos carecem do auxílio da possibilidade da morte, sobretudo a fim de que ela possa servir de solução dos conflitos que eles não resolveram. A sua característica essencial reside no fato de eles serem incapazes de chegar a uma decisão, especialmente em matéria de amor; esforçam-se por protelar qualquer decisão e, na dúvida de saberem por qual pessoa vão se decidir ou que medidas adotarão contra alguma pessoa, obrigam-se a eleger como modelo o velho tribunal de justiça alemão, no qual os processos se encerravam, de praxe, antes de serem julgados, com a morte das partes em litígio. Assim, em todo conflito que se introduz em suas vidas, ficam à espreita de que ocorra a morte de alguém que lhes é importante, em geral de alguém a quem amam - como um de seus pais, um rival, ou um dos objetos de seu amor entre os quais hesitam as suas inclinações. Todavia, a essa altura nossa discussão a respeito do complexo da morte nas neuroses obsessivas tangencia o problema da vida instintual dos neuróticos obsessivos. E agora havemos de nos ocupar desse problema.




(C) A VIDA INSTINTUAL DOS NEURÓTICOS OBSESSIVOS E AS ORIGENS DA COMPULSÃO E DA DÚVIDA

Caso desejemos adquirir uma compreensão das forças psíquicas cuja interação formou essa neurose, precisaremos retornar àquilo que aprendemos do paciente a respeito das causas precipitadoras de seu ficar doente enquanto adulto e quando criança. Ele adoeceu na idade de vinte anos, ou um pouco mais, ao deparar com a tentação de casar-se com uma outra mulher em vez daquela a quem amava há tanto tempo; e afastou-se de chegar a uma decisão a respeito desse conflito adiando todos os atos preliminares necessários. Os meios para tanto foram-lhe fornecidos pela sua neurose. Sua hesitação entre a dama a quem amava e a outra jovem pode ser reduzida a um conflito entre a influência de seu pai e o amor que sentia pela sua dama, ou então, em outras palavras, a uma escolha conflitiva entre seu pai e seu objeto sexual, tal como já havia subsistido (julgando-se a partir de suas recordações e idéias obsessivas) em sua remota infância. Ademais disso, em toda a sua vida fora ele, inequivocamente, vítima de um conflito entre amor e ódio, tanto em relação a sua dama como em relação a seu pai. As suas fantasias de vingança e fenômenos obsessivos como sua obsessão por compreensão e a proeza que realizou com a pedra na estrada [ver em [1]] confirmam seus sentimentos divididos; e, numa certa medida, elas eram compreensíveis e normais, pois a dama, com sua primeira recusa [ver em [2]] e, a seguir, com sua frieza, lhe dera um pretexto para sua hostilidade. Contudo, as suas relações com seu pai eram dominadas por uma idêntica divisão de sentimento, conforme vimos a partir da tradução de seus pensamentos obsessivos; e seu pai também deve ter dado motivo para hostilidade em sua infância, como de fato fomos capazes de constatar com uma certeza quase completa. Sua atitude perante a dama - uma combinação de ternura e hostilidade - em sua maior parte era da alçada de seu conhecimento consciente; no máximo ele se equivocou quanto ao grau e à violência de seus sentimentos negativos. Mas a sua hostilidade com seu pai, pelo contrário, embora tenha estado uma vez profundamente consciente da existência dela, há muito tempo que já se havia desaparecido de seu campo visual, e apenas nas garras da mais violenta resistência é que ela poderia ser levada de volta à sua consciência. Podemos considerar a repressão de seu ódio infantil contra o pai como o evento que colocou todo o seu modo de vida subseqüente sob o domínio da neurose.
Os conflitos de sentimentos em nosso paciente, os quais aqui enumeramos separadamente, não eram independentes um do outro, mas coligados em pares. Seu ódio pela dama estava inevitavelmente ligado a seu afeiçoamento ao pai, e, de modo inverso, seu ódio pelo pai com seu afeiçoamento à dama. Contudo, ambos os conflitos de sentimento resultantes dessa simplificação - ou seja, a oposição entre sua relação com seu pai e com sua dama, e a contradição entre seu amor e seu ódio dentro de cada uma dessas relações - não possuíam a mínima conexão entre si, quer em seu conteúdo quer em sua origem. O primeiro desses dois conflitos corresponde à vacilação normal entre macho e fêmea que caracteriza a escolha de um objeto de amor, que qualquer pessoa faz. Este conflito inicialmente é levado à observação da criança quando alguém lhe faz a inevitável pergunta: `De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?’, e a acompanha por toda a sua vida, não importa qual possa ser a intensidade relativa de seus sentimentos em relação aos dois sexos, ou qual possa ser o objetivo sexual ao qual afinal se fixe. Normalmente, porém, essa oposição perde logo o caráter de uma aguda contradição, de um inexorável `ou isso… ou aquilo’. Há espaço para a satisfação das desiguais exigências de ambos os lados, embora mesmo numa pessoa normal uma valorização maior de um sexo sempre é ressaltada mediante uma depreciação do outro sexo.
O outro conflito, entre o amor e o ódio, atinge-nos com uma estranheza maior. Sabemos que o amor incipiente com freqüência é percebido como o próprio ódio, e que o amor, se se lhe nega satisfação, pode, com facilidade, ser parcialmente convertido em ódio; os poetas nos dizem que nos mais tempestuosos estádios do amor os dois sentimentos opostos podem subsistir lado a lado, por algum tempo, ainda que em rivalidade recíproca. Mas a coexistência crônica de amor e ódio, ambos dirigidos para a mesma pessoa e ambos com o mesmo elevadíssimo grau de intensidade, não pode deixar de assombrar-nos. Seria de esperar que o amor apaixonado tivesse, há muito tempo atrás, conquistado o ódio ou por ele sido absorvido. E, com efeito, uma tal sobrevivência protelada dos dois opostos só é possível sob condições psicológicas bastante peculiares e com a cooperação do estado de coisas presentes no inconsciente. O amor não conseguiu extinguir o ódio, mas apenas reprimi-lo no inconsciente; e no inconsciente o ódio, protegido do perigo de ser destruído pelas operações do consciente, é capaz de persistir e, até mesmo, de crescer. Em tais circunstâncias, o amor consciente alcança, via de regra, mediante uma reação, um sobremodo elevado grau de intensidade, de maneira a ficar suficientemente forte para a eterna tarefa de manter sob repressão o seu oponente. A condição necessária para a ocorrência de um estado de coisas tão estranho na vida erótica de uma pessoa parece ser que, numa idade realmente precoce, em algum lugar no período pré-histórico de sua infância, ambos os opostos ter-se-iam separado e um deles, habitualmente o ódio, teria sido reprimido.
Se considerarmos algumas análises de neuróticos obsessivos, acharemos impossível evitar a impressão de que uma relação entre o amor e o ódio, tal como vimos nesse nosso paciente, conta-se entre as características mais freqüentes, mais marcantes e, provavelmente, mais importantes da neurose obsessiva. Contudo, ainda que seja tentador pôr o problema da `escolha da neurose’ em conexão com a vida instintual, existem razões suficientes para sair desse caminho. Porque é preciso lembrarmos que, em toda neurose, deparamos com os mesmos instintos reprimidos por trás dos sintomas. O ódio, sobretudo, conservando-se suprimido no inconsciente por ação do amor, desempenha um grande papel na patogênese da histeria e da paranóia. Conhecemos muito pouco a natureza do amor para sermos capazes de chegar, aqui, a alguma conclusão definitiva; ademais, particularmente, a relação entre o fator negativo no amor e os componentes sádicos da libido permanece inteiramente obscura. O que vem a seguir deve, por conseguinte, ser visto como nada mais além de uma explicação de caráter provisório. Podemos supor, então, que nos casos de ódio inconsciente com os quais nos preocupamos agora os componentes sádicos do amor têm sido, partindo das causas constitucionais, desenvolvidos de modo excepcionalmente intenso, e, em conseqüência disso, sofrido uma supressão prematura e profundamente radical, e que os fenômenos neuróticos que observamos se originam, de um lado, dos sentimentos conscientes de afeição que ficaram exacerbados como se fossem uma reação, e, por outro lado, do sadismo que persiste no inconsciente sob a forma de ódio.
Não obstante, sem ligar para o modo como essa notável relação entre o amor e o ódio deva ser explicada, seu aparecimento é estabelecido, sem sombra de dúvida, pelas observações feitas no atual caso; ademais, é gratificante descobrir com que facilidade podemos, agora, acompanhar os enigmáticos processos de uma neurose obsessiva fazendo-os relacionarem-se com esse fator. Se a um amor intenso se opõe um ódio de força quase equivalente e que, ao mesmo tempo, esteja inseparavelmente vinculado a ele, as conseqüências imediatas serão certamente uma paralisia parcial da vontade e uma incapacidade de se chegar a uma decisão a respeito de qualquer uma das ações para as quais o amor deve suprir a força motivadora. Essa indecisão, todavia, não se restringirá, por tanto tempo, a um mero grupo de ações. Isto porque, em primeiro lugar, que atos de um amante não estão relacionados com o seu único motivo principal? Em segundo lugar, a atitude de um homem nos assuntos sexuais tem a força de um modelo ao qual suas demais reações se inclinam a amoldar-se. E, em terceiro lugar, é característica intrínseca, dentro da psicologia de um neurótico obsessivo, fazer a mais plena utilização possível do mecanismo do deslocamento. Destarte, a paralisia de seus poderes de decisão vai-se gradualmente estendendo por todo o terreno do comportamento do paciente.
Temos, então, aqui, a dominação da compulsão e da dúvida, tal qual com ela deparamos na vida mental dos neuróticos obsessivos.
A dúvida corresponde à percepção interna que tem o paciente de sua própria indecisão, a qual, em conseqüência da inibição de seu amor através de seu ódio, dele se apossa diante de qualquer ação intencionada. A dúvida é, na realidade, uma dúvida de seu próprio amor - que devia ser a coisa mais exata em sua mente como um todo; e ela se difunde por tudo o mais, sendo mormente capaz de ser deslocada para aquilo que é mais insignificante e sem valor. Um homem que duvida de seu próprio amor permite-se, ou, antes, tem de duvidar de alguma coisa de menor valor.
É essa mesma dúvida que leva o paciente à incerteza com respeito a suas medidas protetoras, bem como à sua contínua repetição delas com o fito de expulsar a incerteza; ademais, é, também, essa dúvida que enfim estabelece o fato de os próprios atos protetores do paciente serem impossíveis de se realizarem, tanto quanto a sua original decisão inibida em relação ao seu amor. No início de minhas investigações, fui levado a presumir uma outra origem, mais geral, para a incerteza dos neuróticos obsessivos, uma origem que parecia aproximar-se mais do normal. Por exemplo, se eu estou escrevendo uma carta e alguém me interrompe com perguntas, sinto uma incerteza relativamente justificável com relação àquilo que eu escrevi sob a ação da interrupção e, para ter certeza, sou obrigado a reler a carta após havê-la terminado. Do mesmo modo, eu poderia admitir que a incerteza dos neuróticos obsessivos quando estão orando, por exemplo, se deve a fantasias inconscientes que intervêm com suas preces, perturbando-as. Essa hipótese é correta, mas pode ser facilmente reconciliada com aquilo que acabamos de dizer. É verdade que a certeza do paciente, de haver concretizado uma medida protetora é devida ao efeito perturbador das fantasias inconscientes; contudo, o conteúdo dessas fantasias é precisamente o impulso contrário - cujo desvio constituía o real objetivo da prece. Esse aspecto evidenciou-se claramente, em nosso paciente, em certa ocasião, pois o elemento perturbador não continuou inconsciente, surgindo, porém, abertamente. As palavras que ele desejava usar em sua prece eram `Que Deus a proteja‘; contudo, um hostil `não‘ despencou, subitamente, de seu inconsciente e se inseriu na frase; e ele compreendeu que isto constituía uma tentativa de rogar uma praga (ver em [1]). Se o `não’ ficasse mudo, ele se teria encontrado em estado de incerteza e teria ficado indefinidamente prolongando as suas preces. Mas, uma vez articulado, finalmente deixou de rezar. Antes de fazê-lo, porém, ele, como outros pacientes obsessivos, experimentou todo tipo de método para evitar que o sentimento oposto se insinuasse. Abreviou, por exemplo, as suas preces ou as proferia com maior rapidez. E, de forma idêntica, outros pacientes esforçar-se-ão para `isolar‘ todos os atos protetores, dessa natureza, das outras coisas. Todavia, nenhum desses procedimentos técnicos é útil a longo prazo. Se o impulso de amor logra algum sucesso, deslocando-se para algum ato trivial, o impulso de hostilidade cedo haverá de também acompanhá-lo em seu novo terreno, e passará a anular tudo que ele realizou.
E quando o paciente obsessivo toca o ponto fraco na segurança de nossa vida mental - a falta de confiabilidade da nossa memória -, a descoberta o capacita a estender sua dúvida por sobre tudo, até mesmo sobre ações que já foram executadas e que, até então, não tiveram conexão alguma com o complexo amor-ódio, bem como por sobre o passado inteiro. Posso recordar o exemplo da mulher que havia acabado de comprar um pente para seu filhinho, numa loja, e que, ficando desconfiada de seu marido, começou a duvidar se de fato já não possuía o pente por muito tempo [ver em [1]]. Não estava ela dizendo, sem rodeios: `Se posso duvidar de seu amor’ (e isto era apenas projeção de sua dúvida sobre o próprio amor que sentia por ele), `então também posso duvidar disto, posso então duvidar de tudo’ - revelando-nos, portanto, o significado oculto da dúvida neurótica?
A compulsão é, por outro lado, uma tentativa para alguma compensação pela dúvida e para uma correção das intoleráveis condições de inibição das quais a dúvida apresenta testemunho. Se o paciente, auxiliado pelo deslocamento, enfim consegue decidir acerca de uma de suas intenções inibidas, a intenção deve ser efetivada. É verdade que esta não é a sua intenção original, mas a energia represada nessa última não pode deixar escapar a oportunidade de encontrar um escoamento para a sua descarga, no ato substituto. Portanto, essa energia se faz sentir ora em ordens, ora em proibições, na medida em que o impulso de afeto ou impulso hostil exerce o controle da senda que conduz à descarga. Se sucede que uma ordem compulsiva não pode ser obedecida, a tensão fica intolerável e é percebida pelo paciente sob a forma de uma ansiedade extrema. Contudo, a senda que conduz a um ato substituto, mesmo onde o deslocamento tenha continuado a se exercer para algo muito pequeno, é tão ardentemente contestada que um semelhante ato pode, via de regra, ser desempenhado apenas sob a forma de uma medida protetora intimamente associada com o impulso que deve ser evitado.
Ademais, mediante uma espécie de regressão, atos preparatórios ficam substituídos pela decisão final, o pensar substitui o agir, e, em lugar do ato substitutivo, algum pensamento que se lhe antecipa persevera com a força total da compulsão. Na medida em que essa regressão a partir do agir para o pensar fica mais marcada ou menos marcada, um caso de neurose obsessiva irá expor as características do pensar obsessivo (isto é, de idéias obsessivas), ou então do agir obsessivo no sentido mais estrito da palavra. Atos obsessivos verdadeiros, como estes, todavia só se tornam possíveis porque constituem uma espécie de reconciliação, na forma de um acordo, entre os dois impulsos antagônicos. Pois os atos obsessivos tendem a se aproximar cada vez mais - e quanto mais tempo persistir o distúrbio, mais evidente este se torna - dos atos sexuais infantis de caráter masturbatório. Por conseguinte, nessa forma da neurose, os atos de amor são executados a despeito do que quer que seja e apenas com o auxílio de um novo tipo de regressão; porque tais atos já não mais se referem a uma outra pessoa, o objeto de amor e ódio, mas são atos auto-eróticos tais como ocorrem na tenra infância.
O primeiro tipo de regressão, aquela que parte do agir para o pensar, é favorecido por um outro fator de interesse no quadro de produção da neurose. As histórias de pacientes obsessivos revelam quase que invariavelmente um precoce desenvolvimento e uma repressão prematura do instinto sexual de olhar e conhecer [o instinto escopofílico e o instinto epistemofílico]; ademais, como sabemos, uma parte da atividade sexual infantil desse nosso paciente era governada por aquele instinto [pág. 144 e segs].
Já mencionamos o importante papel desempenhado pelos componentes instintuais sádicos na gênese das neuroses obsessivas. Ali onde o instinto epistemofílico constitui um aspecto preponderante na constituição de um paciente obsessivo, a cisma se torna o sintoma principal da neurose. O processo de pensamento torna-se sexualizado, pois o prazer sexual que está normalmente ligado ao conteúdo do pensamento vê-se aplicado ao próprio ato de pensar, e a satisfação derivada do fato de se alcançar a conclusão de uma linha de pensamento é sentida como uma satisfação sexual. Nas variadas formas de neurose obsessiva nas quais o instinto epistemofílico desempenha determinado papel, a sua relação com os processos de pensamento torna-o particularmente bem adaptado para atrair a energia que se esforça em vão por abrir caminho até a ação, e desviá-la para dentro da esfera do pensamento, onde existe uma possibilidade de obter satisfação prazerosa de uma outra natureza. Dessa forma, com o auxílio do instinto epistemofílico, o ato substituto pode, por seu lado, ser substituído por atos preparatórios do pensamento. Entretanto, uma protelação na ação logo é substituída por um persistir sobre pensamentos, e, finalmente, o processo inteiro, juntamente com todas as suas peculiaridades é transferido para a nova esfera, do mesmo modo como, na América, pode-se, às vezes, remover uma casa inteira, de um local para outro.
Posso, agora, fundado no debate precedente, arriscar-me a determinar a característica psicológica, há tanto tempo buscada, que empresta aos produtos de uma neurose obsessiva a sua qualidade `obsessiva’ ou compulsiva. Um processo de pensamento é obsessivo ou compulsivo quando, em conseqüência de uma inibição (devida a um conflito entre impulsos oponentes) na extremidade motora do sistema psíquico, ele é levado a cabo com um dispêndio de energia que (no que concerne tanto à qualidade quanto à quantidade) está normalmente reservado unicamente para as ações; ou então, com outras palavras, um pensamento obsessivo ou compulsivo é aquele cuja função está em representar um ato regressivamente. Penso que ninguém questionará a minha suposição de que os processos do pensamento são de ordinário conduzidos (por motivos de economia) com menores deslocamentos de energia, provavelmente a um nível mais elevado [de catexia], do que os atos com que se pretende realizar a descarga ou modificar o mundo externo.
O pensamento obsessivo que forçou caminho através da consciência com tão excessiva violência precisa, agora, de ser garantido contra os esforços que o pensamento consciente fez para resolvê-lo. Conforme já sabemos, essa proteção é alcançada mediante a deformação sofrida pelo pensamento obsessivo antes de se tornar consciente. Isto, porém, não é o único meio utilizado. Além disso, cada idéia obsessiva é quase sempre removida da situação na qual ela se originou e na qual, a despeito de sua deformação, ela seria capaz de ser compreendida com maior facilidade. Tendo em mira essa finalidade, em primeiro lugar um intervalo de tempo é inserido entre a situação patogênica e a obsessão que dela emerge, de modo a desnortear toda investigação consciente de suas conexões casuais, e, em segundo lugar, o conteúdo da obsessão é deduzido de suas relações referenciais particulares mediante uma generalização dele. A `obsessão por compreender’, de nosso paciente, é um exemplo desse caso (ver em [1]). Contudo, talvez um exemplo melhor nos seja fornecido por um outro paciente. Trata-se de uma mulher que se proibiu de usar qualquer tipo de adorno pessoal, embora a causa excitadora da proibição só se referisse a um único objeto particular de joalheria: sentia inveja de sua mãe por possuí-lo e tivera esperanças de que um dia ela o herdaria. Finalmente, se nos damos o cuidado de distinguir a deformação verbal da deformação do conteúdo, existe, contudo, um outro meio com que a obsessão é protegida das tentativas conscientes para uma solução. E esta é a escolha de um fraseado indefinido ou ambíguo. Após ser mal compreendido, o fraseado poderá penetrar nos `delírios’ do paciente, e, indiferentemente a quais sejam os demais processos de desenvolvimento ou substituição que sofre a sua obsessão, estes se basearão então numa compreensão errada, e não no sentido apropriado, do texto. Contudo, a observação mostrará que os delírios tendem constantemente a formar novas conexões com aquela parte da matéria e do teor da obsessão que não está presente na consciência.
Gostaria de novamente retornar à vida instintual dos neuróticos obsessivos e acrescentar mais uma observação a seu respeito. Revelou-se que nosso paciente, ademais de todas as outras características suas, era um renifleur. Conforme ele próprio relatou, quando criança reconhecia cada pessoa pelo seu cheiro, como o faz um cachorro; e mesmo quando adulto era mais suscetível às sensações olfativas do que a maioria das pessoas. Deparei com essa mesma característica em outros neuróticos, tanto em pacientes histéricos como em pacientes obsessivos, e cheguei a reconhecer que uma tendência para tirar prazer do cheiro que se extinguiu desde a infância, pode desempenhar algum papel na gênese da neurose. Ademais, gostaria aqui de levantar a questão geral de saber se a atrofia do sentido do olfato (que foi um resultado inevitável da postura erecta do homem, como se presume) e a conseqüente repressão orgânica de seu prazer no cheiro não podem ter constituído uma considerável parcela da origem de sua suscetibilidade ao distúrbio nervoso. Esse fato fornecer-nos-ia a explicação da razão por que, com o progresso da civilização, é exatamente a vida sexual que tem de cair vítima da repressão. Isso porque há muito conhecemos a íntima conexão, na organização animal, entre o instinto sexual e a função do órgão olfativo.
Na conclusão deste artigo, quero expressar a esperança de que, malgrado seja incompleta a minha comunicação, em todos os sentidos, possa ela, ao menos, estimular outros estudiosos para que forneçam mais esclarecimentos sobre a neurose obsessiva, com uma investigação mais profunda do assunto. Aquilo que é característico dessa neurose - o que a distingue da histeria - não pode, segundo é minha opinião, ser verificado na vida instintual, mas sim no campo psicológico. Não posso deixar meu paciente sem registrar com palavras a minha impressão de que ele tinha como que se desintegrado em três personalidades: em uma personalidade inconsciente e em duas pré-conscientes, entre as quais pudesse oscilar a sua consciência. O seu inconsciente abrangia aqueles seus impulsos que tinham sido suprimidos a uma idade precoce e que se podia descrever como impulsos apaixonados e impulsos maus. Em seu estado normal, ele era amável, animado e sensível - um tipo de pessoa esclarecida e inteligente -, ao passo que em sua terceira organização psicológica se curvava ante a superstição e o asceticismo. Ele, portanto, era capaz de ter dois credos diferentes e duas diferentes cosmovisões a respeito da vida. Essa segunda personalidade pré-consciente abrangia mormente as formações reativas contra seus desejos reprimidos, e era fácil prever que ela teria consumido com a personalidade normal, se a doença tivesse persistido por muito mais tempo. Tenho, no momento, uma oportunidade de estudar uma senhora que padece seriamente de atos obsessivos. Ela, de modo semelhante, se viu desintegrada em uma personalidade tolerante e alegre e em uma personalidade excessivamente melancólica e asceta. Estabeleceu a primeira delas como seu ego oficial, ao passo que, na realidade, era dominada pela segunda. Essas duas organizações psíquicas têm acesso à sua consciência; contudo, por trás de sua personalidade asceta pode-se discernir a parte inconsciente de seu ser - consideravelmente desconhecida para ela e composta de antigos impulsos plenos de desejo há muito tempo reprimidos.








































ADDENDUM:  REGISTRO ORIGINAL DO CASO

NOTA DO EDITOR INGLÊS

Foi hábito de Freud, por toda a sua vida, destruir, após haver sido impresso um de seus trabalhos, todo o material no qual se baseava a publicação. É fato conseqüente que bem poucos manuscritos originais de seus trabalhos sobreviveram, e menos ainda as notas e registros preliminares dos quais aqueles derivaram. O presente registro constitui uma inexplicável exceção a essa regra, tendo sido encontrado em Londres, entre os artigos de Freud, depois de sua morte. Esse fato é mencionado pelos editores das Gesammelte Werke, em seu Prefácio ao Vol. XVII, o qual continha alguns escritos póstumos. Essas notas, contudo, não foram incluídas naquele volume, e ainda (1954) não tinham sido publicadas em alemão. Surgem agora, pela primeira vez, em inglês, em tradução feita por Alix e James Strachey.
Escritos, como era seu feitio, em grandes folhas de papel almaço, sempre preferido por Freud, esses manuscritos contêm, naturalmente, as anotações referidas em [1] como tendo sido `feitas na noite do dia do tratamento’. Via de regra, eram essas notas escritas cada dia; contudo, vez e outra saltam alguns dias, e os apontamentos incompletos eram feitos logo a seguir. Às margens das páginas, aparecem, às vezes, palavras isoladas, grafadas na vertical. Presume-se que essas palavras - tais como `sonho’, `transferências’, `fantasias de masturbação’ - constituem resumos do material particular em discussão. É evidente que foram inseridas numa data um tanto posterior, talvez enquanto Freud preparava uma ou outra das apresentações do caso. Não se julgou necessário incluí-las aqui. O registro interrompe-se por algum motivo explícito após o apontamento que traz a data de 20 de janeiro (1908), quando o tratamento contava com quase quatro meses.
O original alemão está, em sua maior parte, escrito em estilo telegráfico, com numerosas abreviações e com a omissão de pronomes e outras palavras de valor secundário. Existem, todavia, apenas bem raros lugares nos quais não se pôde decifrar com precisão o significado. A fim de tornar o material mais inteligível e legível, as elipses verificadas no original foram, na maioria, completadas na tradução. Por conseguinte, apesar da coerência formal dessa versão, o leitor deve constantemente se lembrar de que aquilo que vem adiante não é de fato, outra coisa senão lembretes feitos sem qualquer intenção, fosse qual fosse, de publicação em forma não editada. Os nomes próprios que, em sua grande maioria, ocorrem no registro, foram aqui substituídos por outros ou por letras iniciais arbitrariamente escolhidas. Os pseudônimos usados pelo próprio Freud no caso clínico publicado foram, naturalmente, mantidos no texto.
Quase toda a primeira terça parte do registro original foi reproduzida por Freud quase verbatim na versão publicada. Abrange a entrevista preliminar de 1º de outubro de 1907 e as sete primeiras consultas - ou seja, até 9 de outubro, inclusive (ao final do Capítulo I (D), em [1]). As alterações empreendidas por Freud foram quase que exclusivamente verbais ou estilísticas. Na versão publicada, Freud acrescentou determinado volume de comentários, mas a principal modificação consistiu em ele tornar a história das manobras menos confusa do que era à medida que vinha emergindo no registro diário. Na íntegra, as diferenças entre as duas versões não parecem ter importância suficiente para justificar a publicação dessa primeira parte do registro. Pode, entretanto, ser interessante fornecer a versão original da primeira entrevista de Freud com o paciente, que fornecerá alguma idéia a respeito da natureza das modificações, já que elas são maiores aqui do que em qualquer outra parte das primeiras consultas.
`1º de out., 07. - O Dr. Lorenz, 29 anos e meio de idade, disse que sofria de obsessões, de forma particularmente intensa a partir de 1903, mas que remontavam à sua infância. Seu aspecto principal eram medos de que alguma coisa acontecesse a duas pessoas de quem ele tanto gostava, seu pai e uma dama a quem ele admirava. Além disso, havia impulsos compulsivos, como, por exemplo, o de cortar a garganta com uma lâmina, e proibições, às vezes com relação a coisas de bem pouca importância. Perdeu anos de seus estudos, conforme me contou, combatendo essas suas idéias; e, conseqüentemente, só agora é que passava em seus exames finais de direito. Suas idéias afetavam o seu trabalho profissional apenas no que concernia ao direito criminal. Sofria também de um impulso para causar algum dano à dama que ele admirava. Esse impulso normalmente se calava na presença da dama, mas se mostrava quando ela estava ausente dele. Contudo, estar longe dela - ela mora em Viena - sempre lhe havia causado um bem. Dos vários tratamentos que tentara, nenhum fora de qualquer utilidade para ele, salvo um ou outro tratamento hidroterapêutico em Munique; e, pensava ele, só foi bom para ele porque havia travado certo conhecimento, lá, que o levou a ter relações sexuais regulares. Aqui não tinha quaisquer oportunidades dessa natureza e ele raramente tinha relações sexuais, e apenas irregularmente, quando se oferecia a ocasião. Sentia repulsa por prostitutas. Disse que sua vida sexual se havia involuído; a masturbação só desempenhou um pequeno papel, entre os 16 e 17 anos de idade. A primeira vez que tivera relações sexuais tinha ele 26 anos.
`Ele me deu a impressão de ser uma pessoa esclarecida e sagaz. Após dizer-lhe as minhas condições, contou-me que ele precisava consultar sua mãe a respeito. No dia seguinte, voltou, e aceitou-as.’
Os dois terços restantes do registro de Freud encontram-se, aqui, traduzidos na íntegra. Encontrar-se-á, em seu conteúdo, alguma matéria que Freud inseriu no caso clínico publicado; porém, grandes parcelas abarcam um terreno novo. Caso existam discrepâncias eventuais entre o registro e o caso clínico publicado, é mister lembrar que o caso continuou por muitos meses após terminado o registro e que, portanto, existiam muitas oportunidades para o paciente corrigir os seus relatos anteriores e para o próprio Freud obter uma visão mais nítida dos pormenores. O registro é notável pelo fato de fornecer a única imagem que temos do tipo de matéria-prima na qual se assentava o trabalho total de Freud e pelo modo paulatino com que esse material vinha à luz. Finalmente, ele nos dá uma oportunidade única de observar a detalhada elaboração da técnica de Freud na época dessa análise.
A fim de proporcionar ao leitor algum auxílio em seu acompanhamento da história, à medida que ela vem à tona, acha-se apenas uma lista, de caráter intrinsecamente experimental, de alguns dados cronológicos às vezes inconsistentes oriundos desse registro e do caso clínico publicado, juntamente com alguns fatos tabelados relativos à família do paciente.

DADOS CRONOLÓGICOS
1878   Nascimento do paciente.
1881   (Idade: 3)       Raiva contra o pai.
1882   (Idade: 4)       Cena com Fräulein Peter. Morte de
1883   (Idade: 6)       Katherine. Pássaro empalhado
1884   (Idade: 5)       .Ereções. Idéias de que os pais liam seus pensamento.
1885   (Idade: 7)       Cena com Fräulein Lina. Atirou no irmão.
1886   (Idade: 8)       Passou a freqüentar a escola. Conheceu Gisela.
1887   (Idade: 9)       Morte do pai de Gisela.
1888   (Idade: 10)     Verme nas fezes do primo.
1889   (Idade: 11)     Esclarecimento sexual. `Porco sujo.’
1890   (Idade: 12)     Apaixonado por uma menina. Obsessão sobre a morte do pai. Arrotos da mãe.
1891 (Idade: 13) Exibiu-se a Fräulein Lina.
1892   (Idade: 14)
1893   (Idade: 15)     Religioso até essa data.
1894   (Idade: 16)
1895   (Idade: 17)     Masturbação ocasionalmente.
1898   (Idade: 20)     Apaixonou-se por Gisela. Obsessão sobre a morte do pai. Suicídio da costureira.
1899   (Idade: 21)     Operação de Gisela. Morte do pai. Início da masturbação. Serviço militar.
1900   (Idade: 22)     Juramento contra masturbação. - (Dez.) Rejeição da parte de Gisela.
1901   (Idade: 23)     Doença da avó de Gisela. Retorno da masturbação.
1902   (Idade: 24)     (Maio) Morte da tia e irrupção da neurose obsessiva. (Verão) Gmunden. - (Out.) Exame.
1903   (Idade: 25)     (Jan.) Exame. Morte de um tio apático. Projeto de casamento. Exacerbação da neurose obsessiva. - (Julho) Exame. Segunda rejeição da parte da Gisela. Verão em Unterach. Idéia de suicídio.
1904   (Idade: 26)     Primeira cópula (Trieste).
1906   (Idade: 28)     Em Salzburg. Apotropéicos `iniciais’.
Sonho das espadas japonesas.
1907   (Idade: 29)     (Ago.) Manobras na Galícia. - (Out.) Começo da análise.

NOTA SOBRE ALGUNS IRMÃOS E IRMÃS DO PACIENTE
Hilde, irmã mais velha, casada.
Katherine, quatro ou cinco anos mais velha que o paciente.
Morreu aos quatro anos de idade.
Gerda.
Constanze.
Irmão, um ano e meio mais novo que o paciente (? Hans.)
Julie, três anos mais nova que o paciente. Casada com Bob St.




REGISTRO ORIGINAL DO CASO

Com respeito às consultas que se seguem, farei anotação apenas de uns poucos fatos essenciais, sem reproduzir o curso da análise.
10 de out. - Anunciou que queria conversar sobre o começo das suas idéias obsessivas. Verificou-se que ele queria, com isso, dizer o começo de suas ordens. [Elas começaram] quando ele estudava para as provas de concurso público. Estavam ligadas à dama, iniciando-se por pequenas ordens sem sentido (por exemplo, contar até certo número, no espaço entre o trovão e o relâmpago; sair correndo da sala em determinado exato minuto etc.) Em conexão com a sua intenção de emagrecer, foi impelido por uma ordem em seus passeios em Gmunden [ver em [1]] (no verão de 1902), a andar sob o calor do meio-dia. Tinha uma ordem de fazer os exames em julho, mas se opôs à idéia aconselhado por seu amigo; contudo, mais tarde recebeu ordem de fazê-los na primeira oportunidade, em outubro, à qual obedeceu. Animou-se em seus estudos com a fantasia de que deveria apressar-se de modo a fazer-se capaz de casar com a dama. Essa fantasia era como que a motivação para sua ordem. Parece que atribuiu essas ordens a seu pai. Uma vez perdeu várias semanas devido à ausência da dama, que se afastara em virtude da doença de sua avó, uma mulher muito idosa. Ele se ofereceu para visitá-la, mas ela recusou. (`Abutre’ [ver em [1]].) Precisamente ao se achar atento em seu estudo, aconteceu pensar o seguinte: `Você devia providenciar para obedecer à ordem de fazer suas provas no primeiro momento, em outubro. Mas se você recebesse uma ordem para cortar a sua garganta, como é que seria?’ Imediatamente cientificou-se de que essa ordem já tinha sido dada, e já corria até o aparador para apanhar a sua lâmina, quando pensou: `Não, não é tão simples assim. Você tem de sair e matar a velha.’ Logo após, caiu no chão, invadido de horror. - Quem foi que lhe deu essa ordem?
A dama ainda permanece em grande mistério. Juramentos que ele esqueceu. Sua luta defensiva contra eles, explícita porém esquecida também.
11 de out. - Luta violenta, um mau dia. Resistência, porque ontem lhe pedi para trazer consigo um retrato da dama - quer dizer, para deixar de lado a sua reticência com respeito a ela. Conflito relativo a saber se ele abandonaria o tratamento ou cederia os seus segredos. Seu Cs. estava longe de ter controlado seus pensamentos oscilantes. Ele descreveu o modo como procura rechaçar idéias obsessivas. Durante o seu período religioso, ele compôs, para si mesmo, preces, que tomavam cada vez mais tempo, durando por vezes uma hora e meia - e a razão disso, é que sempre se inseria alguma coisa nas frases simples e as revertia em seu sentido contrário, por exemplo: `Que Deus - não - o proteja!’ (Um Balaam às avessas.) Expliquei a incerteza fundamental de todas as medidas de confiança readquirida, de vez que aquilo contra o que se tem lutado vai-se gradualmente inserindo neles. Ele o confirmou. Numa dessas ocasiões, ocorreu-lhe a noção de amaldiçoar: isto certamente não se transformaria em uma idéia obsessiva. (Era este o significado original daquilo que tinha sido reprimido.) Ele havia de repente deixado tudo isso de lado, há dezoito meses atrás; isto é, ele formara uma palavra com as iniciais de algumas de suas preces - algo como `Hapeltsamen’ (preciso pedir mais pormenores a esse respeito) [cf. em [1]] - e a dizia com tanta rapidez que nada poderia se insinuar para dentro dela. Tudo isso era fortalecido com determinada dose de superstição, um traço de onipotência, como se seus desejos maus possuíssem poder, e isto se confirmava por experiências reais. A título de exemplo: na primeira vez que esteve no Sanatório de Munique [ver em [1]], ocupava um quarto junto ao da jovem com que ele teve relações sexuais. Ao lá retornar pela segunda vez, ele hesitou quanto a tomar novamente o mesmo quarto, de vez que este era muito grande e caro. Quando, finalmente, ele disse à jovem que havia decidido ocupá-lo, ela lhe falou que o Professor já o havia tomado. `Que ele caia morto por isso!’, pensou. Quinze dias depois, foi perturbado, em seu sono, pela idéia de um cadáver. Ele a baniu de sua mente; porém, de manhã, ele escutou que o Professor de fato sofrera um derrame, tendo sido levado para seu quarto mais ou menos naquela mesma hora. Ele também possui, diz ele, o dom de ter sonhos proféticos. Contou-me o primeiro desses sonhos.
12 de out. - Ele não me contou o segundo, mas me falou de como havia passado o dia. Seu ânimo estava melhor e ele foi ao teatro. Ao chegar em casa, topou com a oportunidade de encontrar com sua criada, que não é nem jovem nem bonita, mas que durante algum tempo lhe vinha dando atenção. Ele não é capaz de saber por que, mas aconteceu que, de repente, lhe deu um beijo e a agarrou. Embora ela, sem dúvida, lhe fizesse apenas uma mostra de resistência, ele recobrou o juízo e fugiu para o seu quarto. Com ele ocorria sempre a mesma coisa: os seus momentos agradáveis e felizes eram estragados por algo sórdido. Orientei a sua atenção para a analogia entre esse fato e homicídios instigados por agents provocateurs.
Continuou com esse fluxo de pensamento e chegou ao assunto da masturbação que em seu caso encerrava uma estranha história. Começara a se masturbar quando tinha cerca de 21 anos - depois da morte de seu pai, como consegui que confirmasse - porque ouviu falar e sentiu certa curiosidade. Ele praticava isso raramente, e sempre se sentia muito envergonhado depois. Certo dia, sem qualquer provocação, pensou o seguinte: `Juro, pela salvação de minha alma, deixar de masturbar-me!’ Embora não ligasse valor algum a esse voto e risse dele em face de seu peculiar ar solene, abandonou-o por algum tempo. Alguns anos depois, na época em que faleceu a avó de sua dama e ele então quis encontrar-se com ela, sua mãe lhe disse: `Pela salvação de minha própria alma, você não irá!’ A semelhança desse juramento com o outro o impressionou, e ele se censurou por colocar em perigo a salvação da alma de sua mãe. Disse a si mesmo para não ser com relação a si próprio mais covarde do que com relação a outras pessoas e, se persistisse em sua intenção de acompanhar a dama, que começaria a masturbar-se de novo. Subseqüentemente, abandonou a idéia de ir, porque tinha uma carta que lhe dizia para não o fazer. A partir daquele momento a masturbação ressurgia de tempos em tempos. Era provocada quando ele vivia momentos especialmente agradáveis ou quando lia belas passagens. Por exemplo, uma vez ocorreu um desses momentos, numa tarde agradável, quando ele escutou um postilhão que tocava sua corneta na Teinfaltstrasse [no centro de Viena] - até que isto foi proibido por um oficial de polícia, provavelmente em virtude de algum decreto da Corte que proibia tocar corneta na cidade. E ocorreu noutra oportunidade, quando lia em Wahrheit und Dichtung; como Goethe se havia livrado, numa irrupção de ternura, dos efeitos de uma maldição que uma amante conjurara sobre qualquer pessoa que beijasse nos lábios dele; vinha sofrendo há algum tempo, de forma quase supersticiosa, da maldição que o mantinha sem ação; mas, agora, ele acabava de romper com essa prisão, e euforicamente cobria seu amor de beijos. (Lilli Schoenemann?) E nesse ponto ele se masturbou, conforme me contou com admiração.

Havia, ademais, em Salzburg uma criada que o atraía e com quem ele, mais tarde, também se envolveu. Isso o levou a masturbar-se. Contou-me a esse respeito fazendo alusão ao fato de que essa masturbação havia frustrado uma pequena viagem até Viena pela qual ele vinha ansiando.
Forneceu-me mais alguns dados particulares a respeito de sua vida sexual. Relações sexuais com puellae desagradam-no. Uma vez, estando com uma, ele impôs como condição que ela se despisse e, exigindo ela, em troca, 50 por cento a mais, ele lhe pagou e foi embora, muitíssimo revoltado com tudo. Nas poucas ocasiões em que tivera relações sexuais com jovens (em Salzburg e, mais tarde, em Munique, com a amante), ele jamais se sentia censurando a si mesmo. Quão exalté tinha ele ficado, quando a copeira lhe contou a comovente história de seu primeiro amor e como tinha sido chamada ao leito de morte de seu amor. Ele lamentou ter combinado passar a noite com ela, e foi apenas a escrupulosidade dela que o compeliu a enganar o morto. Ele sempre buscava fazer uma rigorosa distinção entre relações que consistiam somente na cópula e tudo aquilo que era denominado de amor; e a idéia de que ela tinha sido amada tão profundamente fê-la, aos olhos dele, um objeto inadequado para a sua sensualidade.
Eu não poderia evitar, aqui, de elaborar o material à nossa disposição dentro de um evento: como antes da idade de seis anos, ele cultivara o hábito de se masturbar, e como seu pai o havia proibido, usando, como ameaça, a frase `Você vai morrer se fizer isso’, e, talvez, também ameaçando cortar-lhe o pênis. Isto explicaria o seu ato de masturbar-se em conexão com a libertação da maldição, as ordens e proibições em seu inconsciente e a ameaça de morte que acabava de se retransferir para seu pai. Suas idéias suicidas iniciais corresponderiam a uma autocensura de ser ele um assassino. Isto, disse ele no fim da consulta, gerou em sua mente um grande número de idéias.
Addenda - Contou-me que eram sérias as suas intenções de cometer suicídio, e só foi detido por duas considerações. Uma delas consistia em que ele não podia aturar a idéia de sua mãe encontrar seus restos mortais cobertos de sangue. Contudo, era capaz de evitá-lo mediante a fantasia de executar a façanha no Semmering, deixando uma carta com o pedido de que fosse seu cunhado o primeiro a ser informado. (Da segunda consideração eu me esqueci, fato bastante curioso.)
Não mencionei de consultas anteriores três lembranças inter-relacionadas, que datam de seu quarto ano de idade, as quais ele apresenta como sendo as mais remotas, e que se referem à morte de sua irmã mais velha, Katherine. A primeira lembrança era a irmã sendo levada para cama. A segunda, de ele perguntar `Onde está Katherine?’, entrar no quarto e encontrar seu pai sentado na poltrona, chorando. A terceira, tratava-se de seu pai curvando-se por sobre sua mãe em prantos. (Curioso é que não estou seguro quanto a saber se essas lembranças são dele ou de Ph.)
14 de out. - Minha incerteza e meu esquecimento a respeito desses dois últimos pontos parecem estar intimamente ligados. As lembranças eram realmente dele, e a consideração que eu havia esquecido foi que, certa vez, quando muito jovem, ele e a irmã conversavam sobre a morte, e esta dissera: `Juro pela minha salvação que se você morrer eu me matarei.’ De modo que, em ambos os casos, tratava-se da morte de sua irmã. (Foram esquecidas devido aos meus próprios complexos.) Ademais disso, essas mais remotas recordações, quando ele tinha 3 anos e meio e seu irmão oito anos, se ajustam à minha construção. A noção da morte o envolveu muito de perto, e ele realmente acreditava que morreria se se masturbasse.
As idéias geradas em sua mente [no final da consulta anterior] foram as seguintes. A idéia de seu pênis ser cortado fora atormentou-o a um grau extraordinário, e isto havia acontecido quando ele se encontrava na parte mais séria de seus estudos. A única razão que ele poderia achar era que, naquela época, padecia do desejo de masturbar-se. Em segundo lugar, e isto lhe parecia ter muito mais importância, por duas vezes em sua vida, na ocasião de sua primeira cópula (em Trieste) e em Munique - e tinha ele dúvidas quanto à primeira delas, embora seja plausível no plano interno -, essa idéia ocorreu-lhe a seguir: `Que sensação maravilhosa! A gente faria tudo por isto; por exemplo, até assassinar o pai de alguém!’ Isto não fazia sentido, em seu caso, de vez que seu pai já estava morto. Em terceiro lugar, descreveu uma cena sobre a qual outras pessoas muitas vezes lhe contaram, inclusive seu pai, mas de que ele mesmo não tinha recordação, em absoluto. Por toda a sua vida teve ele um medo terrível de bofetões, e é muito grato a seu pai por jamais havê-lo espancado (até onde se lembre). Quando outras crianças eram espancadas, ele costumava afastar-se de mansinho e se esconder, transido de terror. Contudo, quando bem pequeno (3 anos de idade), parece que fez uma travessura, em virtude da qual seu pai lhe batera. O menino então se tomou de uma raiva terrível e passou a proferir impropérios contra o pai. Mas como desconhecia a linguagem dos xingamentos, ele o chamava de todos os nomes de objetos triviais que lhe vinham à cabeça: `Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato!’, e outros mais. Parece que seu pai exclamou `Ou o menino vai ser um grande homem ou um grande criminoso!’ Essa história, como admitiu o paciente, era evidência da raiva e da vingança datadas de um passado remoto.
Expliquei para ele o princípio do Adige, em Verona, o qual ele achou bastante ilustrativo. Contou-me mais alguma coisa relacionada com sua sede de vingança. Certa vez, quando seu irmão estava em Viena, pensou que tinha motivos para acreditar que a dama o preferia. Ficou tão furiosamente ciumento com esse fato, que receou vir a cometer alguma ofensa contra o irmão. Pediu ao irmão que brigasse com ele e não se sentiu de fato pacificado até que ele próprio fosse derrotado.
Contou-me sobre uma outra fantasia de vingança referente à dama, da qual ele não tinha necessidade de se envergonhar. Ele acha que ela dá valor à posição social. Por conseguinte, elaborou a fantasia de que ela havia casado com um homem de nível social, que ocupava um cargo público. Ele então entrou para o mesmo departamento e subiu profissionalmente com mais rapidez do que o marido dela. Um dia, esse homem cometeu um ato desonesto. A dama atirou-se a seus pés e lhe implorou que salvasse o marido. Ele prometeu fazê-lo e lhe comunicou que fora apenas por amor a ela que havia assumido o cargo, de vez que havia previsto que esse momento iria ocorrer. Agora estava cumprida a sua missão, seu marido estava salvo e ele se retiraria de seu posto. Mais tarde, ele foi ainda mais adiante e achou que preferiria ser o benfeitor da dama e que lhe prestaria qualquer favor de porte sem ela saber ser ele quem o estava fazendo. Em sua fantasia ele via apenas a evidência de seu amor e não a magnanimidade à la Monte Cristo destinada a reprimir sua vingança.
18 de out. - Apontamentos incompletos.
Começou confessando um ato desonesto que cometeu, já em idade adulta. Jogava vingt-et-un e já havia ganho bastante no jogo. Anunciou que iria apostar tudo na rodada seguinte e, então, pararia de jogar. Subiu até 19 e refletiu por um momento se continuaria um pouco mais; a seguir, baralhou o maço de cartas, com algum alheamento, e viu que a carta seguinte era, de fato, um dois, de modo que, ao ser virada, ele conseguiu de fato fazer vinte e um. Seguiu-se uma lembrança da infância, de seu pai havê-lo instigado a tirar do bolso de sua mãe a carteira dela e daí retirar alguns kreuzer.
Falou a respeito de sua conscienciosidade a partir daquela época, e de seu cuidado com dinheiro. Ele não se apossou de sua herança, mas a deixou com sua mãe, que lhe concede uma quantia bem pequena de dinheiro para pequenos gastos. Desse modo, ele começa a comportar-se como um sovina, embora não tenha nenhuma propensão para isto. Também encontrou dificuldade de dar um subsídio a seu amigo. Não era sequer capaz de vir a extraviar qualquer objeto que havia pertencido a seu pai ou à dama.
No dia seguinte, dando continuidade às suas associações, falou a respeito de sua atitude com relação a uma tal de `Reserl’, que está para se casar mais é evidente que está muito ligada a ele; de como a beijou e, ao mesmo tempo, teve uma aflitiva idéia compulsiva de que algo desagradável estava acontecendo com sua dama - algo parecido com a fantasia ligada ao Capitão Novak [o `cruel’ capitão]. Seu sonho, durante a noite, dizia com muito mais clareza o que tinha sido tocado de leve, quando ele estava acordado:
(I) Reserl estava hospedada conosco. Ela se levantou como se hipnotizada, aproximou-se por trás de minha cadeira, com um semblante de palidez, e colocou seus braços ao meu redor. Parecia que eu tentava me livrar de seu abraço, como se cada vez que ela afagasse minha cabeça alguma desgraça iria ocorrer à dama - também alguma desgraça no outro mundo. Acontecia automaticamente - como se a desgraça adviesse no exato momento do afago.
(O sonho não foi interpretado; na realidade, ele é apenas uma versão mais clara da idéia obsessiva da qual não ousava ter conhecimento durante o dia.)
Estava profundamente abalado com o sonho de hoje, pois ele dá muito valor a sonhos e estes desempenharam um grande papel em sua história, havendo-lhe até provocado crises.
(II) Em outubro de 1906 - possivelmente após masturbar-se pelo momento em que lia a passagem de Wahrheit und Dichtung [ver em [1]].

A dama estava num certo tipo de cárcere. Ele tomava das duas espadas japonesas e a libertava. Agarrou-as com força e apressou-se até o lugar onde suspeitava que ela se encontrava. Ele sabia que as espadas significavam `casamento’ e `cópula’. Ambas as coisas agora se concretizavam. Encontrou-a encostada numa parede, com instrumentos de tortura para apertar os seus polegares. O sonho parecia-lhe, agora, ficar ambíguo. Ou ele a libertava dessa situação por intermédio das suas duas espadas, `casamento’ e `cópula’, ou a outra idéia era que apenas por causa delas é que ela caíra nessa situação. (Era patente que ele próprio não compreendia essa alternativa, embora suas palavras provavelmente não pudessem encerrar qualquer outro significado.)
As espadas japonesas existem realmente. Estão penduradas à cabeceira de sua cama e são feitas de inúmeras moedas japonesas. Foram um presente de sua irmã mais velha, em Trieste, que (segundo me contou, respondendo a uma indagação) é muito feliz no casamento. É possível que a criada, habituada a espanar o seu quarto enquanto ele ainda está dormindo, tenha tocado nas moedas, fazendo assim um barulho que penetrou em seu sono.
(III) Ele se lembrou, com muita satisfação, desse terceiro sonho, como se fosse seu mais precioso tesouro.
Dez-jan. de 1907. Eu estava num bosque, em grande melancolia. A dama veio encontrar-se comigo, e parecia muito pálida. `Paul, venha comigo antes que seja tarde demais. Sei que nós dois somos pessoas que sofrem.’ Colocou seu braço no meu e me arrastou para longe, com forte ímpeto. Lutei com ela, mas sua força era enorme. Chegamos junto a um largo rio e ela lá ficou, parada. Eu estava vestido com uns miseráveis trapos que caíram na corrente, sendo levados para longe. Tentei nadar atrás deles, ela porém me deteve: `Deixe os seus trapos para lá!’ Lá fiquei, em trajes deslumbrantes.
Ele sabia que os trapos significavam a sua doença e que o sonho inteiro lhe prometia saúde através da dama. Ele estava muito feliz, naquela ocasião… até que vieram outros sonhos que o tornaram uma pessoa extremamente desgraçada.
Ele não podia abster-se de acreditar no poder premonitório dos sonhos, de vez que tivera, para prová-lo, inúmeras experiências notáveis. Conscientemente ele, com efeito, não acredita nesse poder. (Os dois pontos de vista correm paralelos, mas o ponto de vista crítico é estéril.)
(IV) No verão de 1901, escrevera a um de seus colegas para que lhe enviasse 3 kronen de fumo para cachimbo. Passaram-se três semanas sem qualquer resposta e sem o fumo. Certa manhã, despertou e disse que havia sonhado com fumo. Não terá o carteiro, por acaso, trazido um embrulho para ele? Não. - Dez minutos depois, soou a campainha da porta: o carteiro trouxera o fumo para ele.
(V) Durante o verão de 1903, quando estudava para a terceira prova do concurso público.
Sonhou que, na prova, lhe pediram para explicar a diferença entre um `Bevollmächtigter‘ e um `Staatsorgan‘. Alguns meses depois, nas provas finais, essa pergunta lhe foi feita, de fato. Ele tem muita certeza com relação a esse sonho; contudo, não existe prova de ele haver falado sobre o sonho nesse intervalo [entre o sonho e a sua realização].
Tentou explicar o sonho anterior através do fato de que seu amigo não tinha dinheiro, e que ele próprio talvez possa ter sabido a data na qual ele ia dispor de algum. Não foi possível fixar datas precisas.
(VI) Sua irmã mais velha possui dentes muito bonitos. Mas há três anos, eles começaram a doer, e foi preciso extraí-los. O dentista do lugar onde ela mora (um amigo) disse: `Você vai perder todos os seus dentes.’ Certo dia, ele [o paciente] subitamente pensou: `Que será que está acontecendo com os dentes de Hilde?’ É provável que ele mesmo possa ter estado sofrendo de dor de dente. Naquele dia, masturbara-se novamente, e ao ir dormir viu, numa aparição do entre-sono, sua irmã incomodada com os dentes. Três dias depois, dizia-lhe numa carta que um outro dente dela começava a afligir; e, a seguir, ela o perdeu.
Ele ficou espantado quando lhe expliquei que sua masturbação era responsável por isto.
(VII) Um sonho, quando ele estava com Marie Steiner. Já o havia contado, mas agora acrescentou alguns detalhes. Ela é uma espécie de sua namoradinha da infância. Aos 14 ou 15 anos de idade, teve uma paixão sentimental por ela. Ele insiste em referir a imaginação estreita que tinha ela. Em setembro de 1903, ele a visitou e viu seu irmão de sete anos, que era idiota, e lhe causou uma terrível impressão. Em dezembro, teve um sonho no qual ia ao enterro dele. Pela mesma época, a criança morreu. Não foi possível fixar as ocasiões com mais precisão. No sonho ele estava parado ao lado de Marie Steiner e a encorajava a não desanimar. (`Abutre’ [ver em [1]], como sua irmã mais velha o chamava. Ele constantemente estava matando as pessoas, de maneira a poder, depois, conseguir cair nas boas graças de alguém.) O contraste entre o amor idólatra da mãe pelo filho idiota e seu comportamento antes de seu nascimento. Parece que ela foi responsável pela enfermidade da criança, mantendo-a presa demais a si, porque se envergonhava de ganhar um bebê tão tarde assim em sua vida.
Durante sua estada em Salzburg, era ele constantemente perseguido por premonições, que admiravelmente se concretizavam. Por exemplo, havia um homem a quem ouviu conversar com a copeira, no hotel, a respeito de roubos - isto ele interpretou como um augúrio de que iria, em seguida, ver o homem como um criminoso. E, com efeito, tal aconteceu, poucos meses depois, ao ser transferido para o Departamento Criminal. - Em Salzburg, do mesmo modo, costumava encontrar-se, na ponte, com pessoas em quem um instante antes estivera pensando. (Sua irmã já o havia explicado como um fato elucidável mediante uma visão indireta [periférica].) - Aliás, ocorreu-lhe pensar numa cena em Trieste, quando estava na Biblioteca Pública, com sua irmã. Um homem passou a conversar com eles, falando de maneira imbecil, e lhe disse: `Você está ainda na fase dos Flegeljahre [`Anos de Adolescência’], de Jean Paul. Uma hora depois [após pensar nesse episódio], ele estava na biblioteca de Salzburg, que emprestava livros, e o Flegeljahre foi um dos primeiros livros que apanhou. (Contudo, não o primeiro. Uma hora antes criara o propósito de ir até a biblioteca, e foi isto que o recordou da cena em Trieste.)
Em Salzburg, ele se via como um vidente. As coincidências, todavia, jamais tinham importância e nunca se referiam a coisas que ele esperava, mas sim a trivialidades apenas.
(A história sobre Marie Steiner interpolava-se entre duas histórias sobre suas irmãs. A falta de clareza de suas idéias obsessivas é digna de nota; em seus sonhos elas são mais claras.)
18 de out. - Dois sonhos, ligados apenas a crises [ver em [1]]. Em outra ocasião, tivera a idéia de não mais se lavar. Adveio-lhe na forma costumeira, com as suas proibições: `Que sacrifício estou preparado para fazer, a fim de…?’ Imediatamente, porém rejeitou-a. Respondendo a minhas perguntas, contou-me que até a sua puberdade ele fora sempre um porquinho. Depois, tornou-se propenso à idéia de uma superlimpeza e, ao desencadear-se sua doença, passou a ser uma pessoa fanaticamente asseada etc. (isto em conexão com suas ordens). Mais recentemente, certo dia saiu a passear com a dama - estava sob a impressão de que aquilo que me contava carecia de qualquer importância. A dama cumprimentou um homem (um médico), ela foi muito amável com ele, amável demais - o paciente admitiu que ficara com ciúme e, de fato, falou a esse respeito. Em casa da dama, jogaram baralho; ficou melancólico, à noite; na manhã seguinte, teve o seguinte sonho:
(VIII) Estava com a dama. Ela se mostrava muito afetuosa com ele, e ele lhe contou a sua idéia e proibição compulsivas com relação às espadas japonesas - cujo significado consistia em não poder casar com ele nem ter com ela relações sexuais. Mas isto é um disparate, disse ele, da mesma forma eu poderia ter uma proibição no sentido de nunca mais me lavar. Ela sorriu e assentiu com a cabeça. No sonho, ele achou que isto significava que ela concordava com ele em que as duas coisas eram absurdas. Contudo, ao despertar, ocorreu-lhe a idéia de que ela queria dizer não haver para ele mais necessidade de se lavar. Ele ficou num violento estado de emoção e bateu com a cabeça na cabeceira da cama. Sentiu como que uma massa informe de sangue em sua cabeça. Em semelhantes ocasiões ele já tivera a idéia de fazer um buraco afunilado em sua cabeça, para deixar sair aquilo que estava doente em seu cérebro; a perda seria compensada de algum modo. Ele não compreende o seu estado. Expliquei: O funil de Nuremberg - sobre o qual seu pai, de fato, costumava falar com freqüência. E [prosseguiu o paciente] seu pai costumava quase sempre dizer `algum dia você vai meter coisas dentro de sua cabeça’. Interpretei isto como: raiva, vingança contra a dama, oriunda do ciúme, a conexão com a causa provocadora [do sonho], o incidente durante o passeio - a qual ele considerava algo tão banal. Confirmou a raiva que sentiu pelo médico. Ele não compreendia o conflito de saber se deveria, ou não, casar-se com ela. No sonho, ele possuía um sentimento de liberação - liberação a partir dela, completei.
Protelou a ordem de não mais se lavar e não a cumpriu. A idéia foi substituída por inúmeras outras idéias, sobretudo a de cortar sua garganta.
27 de out. - Assentamentos incompletos. Enquanto ele colocar dificuldades em fornecer-me o nome da dama, seu relato será incoerente. Incidentes à parte:

Certa noite, em junho de 1907, ele visitava seu amigo Braun, cuja irmã, Adela, jogava com os dois. Ela lhe mostrou muitíssima atenção. Ele se sentira muito oprimido e pensara bastante a respeito do sonho das espadas japonesas - o pensamento de casar com a dama, caso não fosse com outra jovem.
Sonho, de noite: - Sua irmã Gerda estava muito doente. Ele foi até a cama onde ela estava. Braun veio em direção dele. `Você só poderá salvar sua irmã se renunciar a todos os prazeres sexuais’, ao que ele respondeu, cheio de assombro (para vergonha sua), `todos os prazeres’.
Braun está interessado em sua irmã. Há alguns meses, ele a trouxe uma vez para casa quando ela não estava se sentindo bem. A idéia só pode ter significado que, se ele casasse com Adela, o casamento de Gerda com Braun também seria provável. Assim, ele se estava sacrificando por ela. No sonho, colocava-se em uma situação compulsiva de modo a ser obrigado a casar. Sua oposição à sua dama e sua inclinação à infidelidade são evidentes. Aos 14 anos, ele teve relações homossexuais com Braun - cada qual olhando o pênis do outro.
Em Salzburg, em 1906, teve a seguinte idéia, durante o dia todo: Supondo que a dama lhe dissesse `você não deve ter nenhum prazer sexual até estar casado comigo’, será que ele faria um juramento nesse sentido? Uma voz dentro dele disse `sim’. (Voto de abstinência em seu Ics.) Naquela noite sonhou que estava noivo da dama, e, enquanto passeava de braço dado com ela, ele disse, em regozijo: `Eu jamais teria imaginado que isto pudesse se realizar tão cedo.’ (Referia-se isto à sua abstinência compulsiva. Isto era realmente digno de nota, e correto; e confirmava o meu ponto de vista acima.) Naquele momento viu a dama fazendo uma cara como se não estivesse interessada no noivado. A felicidade dele ficou, com isto, bastante prejudicada. Disse para si: `Você está comprometido e, contudo, não está feliz. Você finge estar um pouquinho feliz, de modo a convencer-se de que você é feliz.’
Após persuadi-lo a revelar o nome de Gisa Hertz e todos os detalhes a respeito dela, seu relato tornou-se claro e sistemático. A predecessora dela foi Lise O., uma outra Lise. (Ele sempre tinha simultaneamente vários interesses, do mesmo modo como mantinha diversas modalidades de ligações sexuais, derivados de suas várias irmãs.)
Verão de 1898. (Idade: 20.) Sonho: - Ele discutia com Lise II um assunto abstrato. De repente, o quadro onírico desapareceu e ele olhava para uma grande máquina, com um impressionante número de rodas, ficando assim espantado com a sua complexidade. - Isto tem algo a ver com o fato de que essa Lise sempre lhe parecia uma pessoa muito complexa, comparada com Julie, de quem ele, naquele tempo, era também admirador, e que morreu faz pouco tempo.
Prosseguiu, fazendo-me um relato prolixo de suas relações com sua dama. Na noite depois de ela o haver recusado, teve ele o sonho seguinte (dez. de 1900): - `Eu estava andando pela rua. Havia uma pérola no chão da rua. Abaixei-me a fim de apanhá-la, mas sempre que me abaixava ela desaparecia. Depois de uns dois ou três passos, ela reaparecia. Eu disse para mim, “você não pode”.’ Explicou essa proibição, para si mesmo, como significando que seu orgulho não o iria permitir, porque ela o havia recusado uma vez. Na realidade, esta foi provavelmente a questão de uma proibição feita por seu pai, que se originou em sua infância e se estendeu até o casamento. Então evocou em sua memória uma das observações reais de seu pai, de efeito semelhante: `Não vá lá tantas vezes assim.’ `Você se tornará ridículo’ era uma outra de suas observações ofensivas. Mais coisas desse sonho: - Pouco antes, ele vira um colar de pérolas numa loja e imaginou que, se tivesse dinheiro, o compraria para ela. Chamava-a, muitas vezes, de uma pérola entre as jovens. Era uma frase que usavam com freqüência. `Pérola’ parecia-lhe, também, adequado para ela porque a pérola é um tesouro escondido que precisa ser buscado dentro da sua concha.
Uma suspeita de que foi através de suas irmãs que ele foi levado à sexualidade, talvez não por sua própria iniciativa - de que ele fora seduzido.
Os diálogos em seus sonhos não precisam ser relacionados a diálogos reais. Suas idéias do Ics. - como se fossem vozes internas - têm o valor de falas reais que ele só ouve em seus sonhos. [Ver em [1].]
27 de out. - A doença da avó de sua dama [ver em [2]] era uma enfermidade do reto.
O desencadeamento da doença do paciente acompanhou uma queixa feita por seu tio viúvo: `Vivi apenas para essa mulher, ao passo que outros homens se divertem por aí.’ Pensava que seu tio se referia ao pai dele, embora essa idéia não lhe tivesse ocorrido de imediato, mas apenas uns poucos dias depois. Quando falou com a dama a esse respeito, ela se riu dele; e noutra ocasião, estando presentes ele e seu tio, ela deu um jeito de levar a conversa para o assunto de seu pai, a quem o tio punha nas nuvens. Isto, entretanto, não bastou para ele. Pouco tempo depois, sentiu-se obrigado a interrogar diretamente o seu tio, se ele se havia referido a seu pai; seu tio negou, com indignação. O paciente ficou particularmente surpreso com esse episódio, de vez que ele próprio não reprovaria seu pai, sequer se ele tivesse cometido um deslize eventual.
Nesse contexto, mencionou uma observação meio jocosa que sua mãe fez a respeito do período em que seu pai fora obrigado a viver em Pressburg, vindo a Viena apenas uma vez por semana. (Ao contar-me isto pela primeira vez, omitiu essa conexão característica.)
Coincidência notável, enquanto estudava para a sua segunda prova do concurso público. Ele deixou de ler duas passagens apenas, de quatro páginas cada uma, e precisamente essas é que constituíram assunto de seu exame. Depois, estudando para a terceira prova, teve um sonho profético [ver adiante]. Esse período viu o início propriamente dito de sua piedade e de suas fantasias de que seu pai ainda mantinha contato com ele. Costumava deixar aberta a porta do corredor, à noite, convencido de que seu pai estaria parado do lado de fora. Suas fantasias, nessa época, ligavam-se diretamente a esse hiato ao conhecimento atingível. Finalmente ele se recompôs e tentou agir da melhor maneira possível mediante um sensível argumento - o que seu pai iria pensar de seu comportamento, caso ainda fosse vivo? Contudo, isto não lhe causou nenhuma impressão, ele fora apenas levado a fazer uma pausa através da forma delírica da fantasia - de que seu pai poderia sofrer em virtude de suas fantasias, até mesmo na vida após a morte.
As compulsões que emergiram enquanto estudava para a terceira prova e que apontavam a necessidade de ele realizá-la positivamente em julho, parecem haver-se relacionado com a chegada, de Nova Iorque, de um dos tios da dama, X., de quem o paciente estava terrivelmente enciumado; porventura, também relacionado até mesmo com a sua suspeita (posteriormente confirmada) de que a dama viajaria para a América.
29 de out. - Falei-lhe que desconfiava de que a sua curiosidade sexual se havia excitado relativamente às suas irmãs. Isto provocou uma conseqüência imediata. Ele tinha recordação de que notou, pela primeira vez, a diferença entre os sexos ao ver a falecida irmã Katherine (cinco anos mais velha do que ele) sentada no urinol, ou algo parecido com isso.
Contou-me o sonho que tivera quando estudava para a terceira prova [ver acima]. Grünhut tinha por hábito, de três ou de quatro em quatro vezes, durante o exame, fazer uma pergunta particular com respeito a saques pagáveis em um lugar específico; e ao ser respondido, prosseguia perguntando `e qual é a razão dessa lei?’ A resposta correta era `servir de proteção contra as Schicamen das partes oponentes’. O sonho do paciente versou exatamente sobre isso; ele, contudo, em lugar disso respondeu `como proteção contra as Schügsenen’ etc. Um chiste que ele, do mesmo modo, poderia ter feito quando estava desperto.
O nome de seu pai não era David, mas sim Friedrich. Adela não era irmã de Braun; a idéia sobre o duplo casamento deve ser deixada de lado.
8 de nov. - Quando era criança, ele sofria muito de vermes [ver em [1]]. É provável que costumava pôr os dedos no traseiro, e era um tremendo porco, tal qual seu irmão, conforme disse. Agora exagera a limpeza.
Fantasia antes do sono: - Estava casado com sua prima [a dama]. Ele a beijava nos pés; porém, estes não estavam limpos. Havia marcas negras sobre eles, que o escandalizaram. Durante o dia ele não fora capaz de se lavar com muito esmero e observara a mesma coisa em seus próprios pés. Deslocava esse aspecto para a sua alma. De noite, sonhou que estava lambendo os pés dela, os quais, todavia, estavam limpos. Esse último elemento é um desejo onírico. Aqui a perversão é exatamente a mesma com que estamos familiarizados em sua configuração indeformada.
Ser-lhe o traseiro algo particularmente excitante revela-se pelo fato de, ao perguntar-lhe sua irmã sobre o que é que ele gostava em sua prima, ele respondeu jocosamente: `Do traseiro dela.’ A costureira a quem beijou hoje excitou pela primeira vez a sua libido quando ela se curvou para baixo e mostrou as curvas de suas nádegas de uma maneira muito clara.
Pós-escrito à aventura dos ratos. O Capitão Novak disse que a tortura deveria ser infligida a alguns membros do Parlamento. Surgiu-lhe, então, a idéia de que ele [N.] não deve mencionar Gisa, e, com pavor, imediatamente após ele de fato mencionou o Dr. Hertz, o que mais uma vez lhe pareceu ser uma ocorrência fatalista. Sua prima realmente se chama Hertz e ele logo achou que o nome Hertz o faria pensar em sua prima; e ver o exemplo desse fato. Procura isolar sua prima de tudo que é sujo.

Ele sofre de compulsões sacrílegas, como as freiras. Um sonho seu tem algo a ver com termos jocosos de desrespeito usados por seu amigo V. - `filho de uma prostituta’, `filho de uma macaca caolha’ (Arabian Nights/Noites Árabes).
Aos onze anos de idade, foi iniciado nos segredos da vida sexual por seu primo, a quem ele detesta, e que lhe deu a entender que todas as mulheres eram prostitutas, inclusive sua mãe e suas irmãs. Ele rebateu essa assertiva com a pergunta `você pensa o mesmo de sua mãe?’
11 de nov. - Durante uma doença de sua prima (complicação da garganta e perturbações no sono), na época em que sua afeição e simpatia estavam no auge, ela estava deitada num divã e ele, de súbito, pensou: `que ela fique deitada assim para sempre’. Interpretou essa idéia como um desejo de que ela estivesse permanentemente doente, para alívio dele próprio, de modo que se pudesse livrar de seu terror de que ela ficasse doente. Um equívoco supersagaz! O que ele já me disse revela que isso se relacionava com um desejo de vê-la sem defesas, por causa de ela haver resistido a ele, rejeitando seu amor; e isso corresponde, cruelmente, a uma fantasia necrofílica que, certa vez, ele teve conscientemente, mas que não arriscou a levar avante além do ponto de olhar para seu corpo inteiro.
Está ele constituído de três personalidades: uma plena de humor e normal, outra ascética e religiosa, e a terceira, imoral e perversa.
Equívoco inevitável do Ics. mediante o Cs., ou melhor, distorção da forma do desejo Ics.
Os pensamentos híbridos resultam desses dois.
17 de nov. - Até então ele tem passado uma fase de animada disposição. É alegre, solto e ativo, e está-se comportando agressivamente com relação a uma jovem costureira. Uma boa idéia que tem é de que sua inferioridade moral de fato merecia ser punida com a sua doença. Seguiram-se confissões acerca de suas relações com as irmãs. Conforme ele disse, fez repetidas investidas sobre a irmã mais nova, logo abaixo dele, Julie, depois que seu pai faleceu; estas - certa vez chegou a atacá-la - devem constituir a explicação de suas mudanças patológicas.
Uma vez teve um sonho de estar copulando com Julie. Foi tomado do remorso e medo de haver quebrado o juramento de se manter afastado dela. Despertou e regozijou-se com ver que era apenas um sonho. Foi então até o quarto dela e deu um beijo no traseiro dela, por baixo do lençol. Ele não era capaz de compreender isso, e só podia compará-lo com a masturbação praticada quando lia a passagem de Dichtung und Wahrheit [ver em [1]]. Daí concluímos que o fato de ser castigado por seu pai [ver em [2]] se relacionava com sua investida sobre suas irmãs. Mas como? De forma puramente sádica, ou já de um modo claramente sexual? Suas irmãs mais velhas, ou mais novas? Julie é três anos mais nova do que ele, e como as cenas, pelas quais estamos buscando, devem ter-se passado quando ele tinha três ou quatro anos, é quase improvável que ela tenha sido a própria. Katheriene, a irmã que morreu?
Sua sanção que encerrava a idéia de que alguma coisa iria acontecer a seu pai no outro mundo deve ser compreendida puramente como uma elipse. O que significava era o seguinte: `Se meu pai ainda estivesse vivo e soubesse disso, ele me castigaria de novo e eu mais uma vez me tomaria de raiva contra ele, o que lhe causaria a morte, de vez que os meus afetos são onipotentes.’ Por conseguinte, esse aspecto é da seguinte categoria: `Se Kraus ler isso, ele vai levar bofetões no ouvido.’
Inclusive nos anos mais recentes, estando sua irmã caçula dormindo no quarto dele, retirou, de manhã, os lençóis que a cobriam, a fim de poder vê-la inteirinha. Então, sua mãe entrou em cena como obstáculo para sua atividade sexual, assumindo esse papel desde a morte de seu pai. Ela o protegia contra as bem-intencionadas tentativas de sedução dele por parte de uma criada chamada Lise. Certa vez ele se exibiu a essa última, com muita originalidade, durante seu sono. Ele adormecera, exausto, após uma crise de doença, e dormiu descoberto. De manhã, quando a jovem falou com ele, ela lhe perguntou, desconfiada, se ele havia rido durante seu sono. Ele havia rido - em virtude de um sonho extremamente adorável no qual sua prima tinha aparecido. Admitiu que se tratava de um estratagema. Em anos mais remotos ele se havia exibido abertamente. Aos treze anos, ele ainda se exibia para [Fraülein] Lina, que voltara para ficar por pouco tempo. Deu a desculpa exata, de que ela sabia como ele era exatidão, desde a sua tenra infância. (Ela estivera com eles quando ele tinha entre seis e dez anos.)
18 de nov. - Entrava na neurose de sua prima, a qual se lhe estava tornando clara, e na qual desempenha um papel o padrasto dela, surgido à cena quando ela tinha doze anos de idade. Era um oficial, um homem bonitão, hoje separado de sua mãe. Gisa trata-o muito mal quando ele, vez e outra, vem visitá-los, e ele sempre procura fazê-la suave com relação a ele. Os detalhes, conforme me foram narrados, deixam muito poucas dúvidas de que ele tenha feito uma investida sexual sobre a jovem, e de que alguma coisa nela, da qual ela não tinha consciência, favoreceu, em parte, que ela se encontrasse com ele - o amor transferido de seu pai verdadeiro, de quem ela sentia falta desde os seis anos de idade. Por conseguinte, imagina-se que a situação entre eles seja gélida e tensa. Parece como se o próprio paciente o soubesse. Isso porque esteve muito aborrecido durante as manobras, ao mencionar o Capitão N. o nome de Gisela Fluss (!!!), malgrado quisesse ele evitar qualquer contato entre Gisa e um oficial. Um ano atrás ele teve um curioso sonho sobre um tenente bávaro a quem Gisa rejeitou por pretendente. Esse fato aludia a Munique e ao caso que ele teve com a garçonete; contudo, não havia associação alguma com o tenente, sendo que um adendo ao sonho sobre os adjuntos do oficial apenas se referia ao tenente padrasto.
21 de nov - Admite ser plausível que ele tenha tido semelhantes suspeitas a respeito de sua prima. Estava muito alegre e tivera uma recaída para a masturbação, a qual, ademais, o perturbou seriamente (período de latência interpolado). Quando se masturbou pela primeira vez teve a idéia de que ela resultaria em uma ofensa contra alguém de quem ele gostava (sua prima). Por conseguinte, proferiu uma fórmula protetora construída, como já conhecemos [ver em [1]], a partir de extratos de diversas preces pequenas e providas com um `amém’ isolado. Nós a examinamos, tratava-se de Gleijsamen: -

g1  = glückliche [feliz], isto é, que L [Lorenz] seja feliz; também [que] tudo [seja feliz].
e    = (significado esquecido).
j      = jetzt und immer [agora e sempre].
I      = (agora indistintamente ao lado do j).
s    = (significado esquecido).

                          G-I-S-E-L-A
                                   S        AMEN
e que ele uniu o seu `Samen‘ [`sêmen’] ao corpo de sua amada, ou seja, colocando-o abruptamente; que se masturbara com a imagem dela. Naturalmente ele estava convicto, e acrescentou que às vezes a fórmula assumia, em plano secundário, a forma de Giselamen, mas que ele a considerou apenas como sendo uma assimilação ao nome de sua dama (um equívoco invertido).
No dia seguinte caiu em um estado de depressão profunda, e desejava conversar sobre assuntos aleatórios; contudo, logo admitiu que se encontrava em crise. A coisa mais assustadora veio-lhe à mente quando, ontem, estava no bonde. Era realmente impossível dizer. A sua cura não mereceria semelhante sacrifício. Eu, de preferência, iria afastá-lo, pois a transferência ficava prejudicada. Por que iria eu aturar uma coisa dessas? Nenhuma das explicações que lhe dei a respeito da transferência (que para ele não pareceu de todo estranha) teve algum efeito. Somente depois de lutar uns quarenta minutos, como me pareceu durar, e após eu revelar o elemento vingança contra mim e mostrar-lhe que, recusando contar-me e abandonando o tratamento, ele estaria se vingando mais completamente de mim do que me contando - somente depois disso é que me deu a entender que a coisa dizia respeito a minha filha. Com isso, a consulta chegou ao fim.
Era ainda bastante difícil a situação. Após lutas e asserções, de sua parte, de que meu esforço para mostrar que todo o material referente apenas a ele mesmo parecia com uma ansiedade de minha parte, ele capitulou apresentando a primeira das suas idéias.
(a) Um traseiro de mulher, nu, com nits (larva de piolho) no cabelo.
Fonte. Uma cena com sua irmã Julie, que ele esquecera na confissão que me fez. Após a travessura deles, ela se voltou de costas, na cama, de um modo que ele viu de frente aquelas partes de seu contorno - sem piolhos, naturalmente. No referente a piolhos, confirmou minha sugestão de que a palavra `nits‘ designava que algo semelhante havia, certa vez, ocorrido há muito tempo atrás, quando ele era bebê.
Os temas são claros. Punição, à vista, pelo prazer que ele sentiu; ascetismo utilizando as técnicas da repulsa; raiva de mim por forçá-lo a [ficar ciente de] isso. Daí, o pensamento transferencial: `Não há dúvida de que a mesma coisa acontece entre os seus filhos.’ (Ouviu falar de uma de minhas filhas e sabe que tenho um filho. Muitas fantasias de ser infiel a Gisa, com sua filha, e punição por isso.)
Após acalmar-se, debatendo-se um pouco, deu início - com ainda mais dificuldade - a toda uma série de idéias que, contudo, o impressionaram de modo diferente. Ele compreendeu que não tinha necessidade alguma de usar da transferência, no caso deles; porém, a influência do primeiro caso fez todos os outros incidirem na transferência.
[? (b)] O corpo nu de minha mãe. Duas espadas cravando-se nos seios dela, do lado (como uma decoração, disse ele mais tarde - segundo o motif de Lucrécia). A parte inferior do corpo dela, sobretudo os seus genitais, foi completamente devorada por mim e pelos filhos.
Fonte, acessível. A avó de sua prima (ele mal se recorda de sua própria avó). Certa vez, entrou no quarto quando ela se despia, e ela deu um grito. Eu disse que sem dúvida ele deve ter tido alguma curiosidade com respeito ao corpo dela. Em resposta, contou-me um sonho. Teve-o na época em que pensou que sua prima era velha demais para ele. No sonho, sua prima levou-o até o leito da avó dele, cujo corpo e cujos genitais estavam à mostra, e lhe mostrou como ela ainda era bonita, aos noventa anos (realização de desejo).
As duas espadas eram as espadas japonesas dos seus sonhos: casamento e cópula. É claro o significado. Ele se permitiu ser desorientado por uma metáfora. Não era seu conteúdo a idéia ascética de que a beleza de uma mulher se consumia - era devorada - pela relação sexual e pelo nascimento de crianças? Dessa vez ele próprio riu.
Ele tinha um quadro de um dos juízes representantes, um sujeito sujo. Imaginou-o despido, e uma mulher praticava `minette‘ [felação] com ele. De novo minha filha! O sujeito sujo era ele próprio - ele espera ser em breve um juiz representante, de modo a poder casar-se. Ele ouvira, com horror, falarem de minette; mas certa vez, quando estava com a jovem em Trieste, ele se atirou mais para cima, sobre ela, à guisa de um convite para que ela fizesse isso com ele, o que, porém, não ocorreu. Repeti minha conferência de sábado sobre as perversões.
22 de nov. - Alegre, mas tornando-se depressivo quando o reconduzi ao tema. Uma transferência recente: - Minha mãe morreu, ele estava ansioso por oferecer as suas condolências, porém tinha receio de que, fazendo-o, poderia irromper em um riso inoportuno como repetidas vezes correu anteriormente, na ocasião de algum falecimento. Portanto preferiu deixar um cartão para mim com um `p.c.’ nele escrito; e que se transformou em um `p.f.’ [ver em [1]].
`Jamais lhe ocorreu que, se sua mãe morresse, você ficaria livre de todos os conflitos, de vez que você ficaria apto para se casar?’ `O senhor, está se vingando de mim’, ele disse. `Está me forçando a fazê-lo, porque, por seu lado, deseja vingar-se de mim.’
Admitiu que seu passeio em redor da sala, enquanto fazia essas confissões, devia-se ao fato de ele estar com medo de ser espancado por mim. A razão que alegou foi delicadeza de sentimento - que ele não podia ficar deitado confortavelmente ali, enquanto me dizia essas coisas terríveis. Além disso, ficou batendo em si próprio enquanto fazia essas aquiescências que ele ainda julgava tão difíceis.
`Agora o senhor irá me afastar.’ Tratava-se de uma imagem minha e de minha mulher, na cama, e entre nós dois uma criança deitada, morta. Ele conhecia a origem dessa cena. Quando pequeno (idade incerta, talvez 5 ou 6 anos), ele estava deitado entre seu pai e sua mãe, e urinou na cama, e seu pai lhe bateu e o mandou sair. A criança morta só podia ter sido sua irmã Katherine, ele deve ter ganhado com sua morte. Essa cena, como confirmou, ocorreu após a morte dela.
Sua conduta nesse momento era a de um homem em desespero e de alguém que estivesse procurando salvar-se de pancadas terrivelmente violentas: enterrou a cabeça nas mãos, correu para longe, cobriu o rosto com o braço etc. Disse-me que seu pai tinha um temperamento passional, então não sabia o que ele estava fazendo.
Outra idéia horrível - a de ordenar-me que trouxesse minha filha até a sala, para que ele pudesse lambê-la, dizendo `traga aqui a “Miessnick‘’’, Associou a isso a história a respeito de um amigo que queria apontar armas no bar que ele costumava freqüentar, mas antes desejava salvar o excelente e feíssimo garçom com as palavras `Miessnick, sai’. Ele era um Miessnick, comparando com seu irmão mais novo. [ver em [1].]
Também brincando com meu nome: `Freundenhaus-Mädchen‘ [`raparigas que pertencem a uma casa de prazeres’ - isto é, prostitutas].
23 de nov. - A consulta seguinte ficou repleta das mais assustadoras transferências, para cujo relato ele encontrou a mais enorme dificuldade. Minha mãe estava em desespero enquanto todos os seus filhos eram enforcados. Ele me lembrou da profecia de seu pai, de que ele seria um grande criminoso [ver em [1]]. Eu não era capaz de adivinhar a explicação que ele elaborou, para possuir essa fantasia. Ele disse saber que, certa ocasião, uma grande desgraça se abateu sobre minha família: um meu irmão, que era garçom, cometera um assassinato em Budapest e fora executado por isso. Perguntei a ele, rindo, como é que sabia disso, após o que todo o seu afeto ruiu. Explicou que seu cunhado, que conhece meu irmão, lhe havia contado o fato, como prova de que a educação se frustrava e que a hereditariedade era tudo. Seu cunhado, acrescentou, tinha o hábito de inventar coisas, e havia encontrado o parágrafo do relato num exemplar antigo da Presse [o conhecido jornal de Viena]. Sei que ele se referia a um certo Leopold Freud, o assassino do trem, cujo crime data da época em que eu tinha três ou quatro anos. Garanti a ele que jamais tivemos parentes em Budapest. Ficou muito aliviado e confessou que havia começado a análise com uma boa dose de desconfiança, em virtude disso.
25 de nov. - Ele tinha achado que, se houvesse impulsos assassinos em minha família, eu cairia sobre ele como um animal de rapina, procurando o que havia nele de maligno. Hoje estava bastante animado e alegre, e contou-me que seu cunhado estava constantemente inventando coisas como essa. Ele, de súbito, passou a querer descobrir a explicação - seu cunhado não esquecera o estigma ligado à sua própria família, pois seu pai havia fugido para a América em virtude de dívidas fraudulentas. O paciente achava que tal se deveu ao fato de ele não ter sido nomeado lente em botânica, na Universidade. Passado um momento, encontrou a explicação de toda a hostilidade contra minha família. Sua irmã Julie observou uma vez que Alex [irmão de Freud] seria o marido ideal para Gisa. Daí a sua fúria. (Foi o mesmo com os oficiais.)
Segue-se um sonho. Estava parado, sobre uma colina, com uma arma, com a qual ensaiava atirar sobre uma cidade que se poderia ver desde onde ele estava, cercada de alguns muros horizontais. Seu pai estava ao seu lado, e eles discutiam sobre a época em que a cidade foi construída - o Antigo Oriente da Idade Média alemã. (Era certo que isso não foi de todo verdadeiro.) Os muros horizontais tornaram-se então verticais e se ergueram no ar como cordas. Ele tentou demonstrar alguma coisa sobre elas, mas as cordas não estavam suficientemente esticadas e se mantinham como se estivessem caindo. Adendo; análise.
26 de nov. - Ele interrompeu a análise do sonho para contar-me algumas transferências. Algumas crianças estavam deitadas no chão, ele se aproximou de cada uma delas e fez alguma coisa com as suas bocas. Uma delas, meu filho (o irmão dele, que, quando tinha dois anos, havia comido excremento), tinha ainda em volta da boca marcas marrons e lambia os lábios, como se fosse algo muito gostoso. Seguiu-se uma mudança: era eu, e eu o estava fazendo com minha mãe.
Isso o fez recordar de uma fantasia na qual ele pensava que uma sua prima mal comportada não era sequer digna de que Gisa fizesse o negócio em sua boca; e então o quadro se invertera. Por trás disso havia orgulho e elevado respeito. Uma outra recordação de que seu pai era muito vulgar e gostava de usar palavras como `cu’ e `merda’, com o que sua mãe sempre mostrava sinais de ficar horrorizada. Certa vez ele tentou imitar seu pai, e isso o envolveu em um crime que passou impune. Ele era um porco sujo, como numa ocasião, quando tinha onze anos, sua mãe decidiu dar-lhe uma boa limpeza. Ele chorou de vergonha e disse `Onde é que você agora vai me esfregar? No cu?’ Isso deveria ter desencadeado sobre ele um tremendo castigo por parte de seu pai, caso não o tivesse salvo sua mãe.
Seu orgulho familial, que ele admitiu com um riso, provavelmente se emparelhava com sua auto-estima. `Afinal de contas, os Lorenz são as únicas pessoas boas’, disse uma de suas irmãs. Seu cunhado mais velho se acostumava com o fato e fazia piada com a situação. Lamentaria muito se tivesse de desdenhar seus cunhados simplesmente, em virtude das suas famílias. (Contraste entre seu próprio pai e os de seus cunhados. Seu pai era primo em primeiro grau de sua mãe, ambos de condições bem humildes, e ele costumava fazer, jocosamente, uma imagem exagerada das condições em que viviam quando jovens. Seu ódio por mim, portanto, constituía um caso especial do ódio que sentia pelos seus cunhados.)
Ontem, após haver acudido em auxílio de um epiléptico, teve medo de ser acometido de um ataque de raiva. Estava furioso com sua prima e feriu seus sentimentos com algumas indiretas. Por que estava raivoso? Depois disso, teve uma crise de choro diante dela e de sua irmã.
Outro sonho correlacionado com isso.
(Idade: 29) Uma impressionante fantasia anal. Estava deitado de costas sobre uma jovem (minha filha) e copulava com ela pelas fezes que se desprendiam de seu ânus. Isso indicou imediatamente Julie, a quem dissera `nada com relação a você seria repulsivo a mim’. Durante a noite empenhou-se em uma séria luta. Ele não sabia do que se tratava. Resultou que se tratava de saber se ele se casaria com sua prima ou com minha filha. Essa hesitação pode ser reportada a uma de suas duas irmãs.
Uma fantasia de que, se ele ganhasse o primeiro prêmio da loteria, se casaria com a prima e cuspiria no meu rosto, revelou sua idéia de que eu desejava tê-lo por genro. - Ele foi, provavelmente, um desses bebês que prendem as suas fezes.

Ele tinha, para hoje, um convite para um encontro. O pensamento sobre `ratos’ logo se apossou dele. Nessa correlação ele me contou que, ao encontrá-lo pela primeira vez, o Tenente D., o padrasto, referiu como, quando menino, se empenhava com abrir fogo com uma pistola Flaubert sobre toda coisa viva, e atirou em si próprio, ou em seu irmão, na perna. Lembrou-se disso numa visita posterior, quando viu um grande rato, coisa que porém o tenente não lembrou. Sempre dizia `Vou atirar em você’. O Capitão Novak deve ter-lhe lembrado o Tenente D., sobretudo quando ele estava no mesmo regimento ao qual D. pertencia, e este dissera `Era para eu agora ser capitão’. - Foi um outro oficial quem mencionou o nome de Gisela; Novak havia mencionado o nome Hertz [ver em [1]]. - D. é sifilítico, e foi em virtude disso que o casamento ruiu. A tia do paciente ainda tem medo de ter sido contagiada. Os ratos significam medo da sifílis.
29 de nov. - Ele teve muito aborrecimento com assuntos de dinheiro com seus amigos (dar garantia etc.). Ficava bastante desgostoso se a situação se voltava em direção de dinheiro. Os ratos têm uma conexão particular com dinheiro. Ontem, quando pediu emprestado dois florins a sua irmã, pensou: `cada florim, um rato’. Em nossa primeira entrevista, ao dizer-lhe quais eram meus honorários, disse consigo mesmo: `Para cada krone um rato para os filhos’. Agora `Ratten‘ [`ratos’] realmente, para ele, significava `Raten‘ [`prestações’]. Pronunciou as palavras da mesma forma, e o justificou dizendo que o `a’ em `ratum‘ (de `reor‘) é breve; certa vez foi corrigido por um advogado, que assinalou que `Ratten‘ e `Raten‘ não eram a mesma coisa. Um ano antes, ofereceu garantia a um amigo que devia pagar uma importância em dinheiro, em vinte prestações, e conseguiu do credor a promessa de fazê-lo saber quando vencia cada prestação, de modo que não se responsabilizasse, sob as condições do acordo, a pagar a importância total de uma só vez. Assim, esse dinheiro e sífilis convergem para `ratos’. Ele agora paga em ratos. - Moeda `rato’.
Ainda sobre a sífilis. É evidente que a idéia de sífilis, que rói e come, o tenha lembrado de ratos. Ele, com efeito, forneceu várias fontes para essa idéia, em especial a partir do seu tempo de serviço militar, quando se discutiu o assunto. (A analogia com as transferências sobre os genitais tendo sido devorados [ver em [1]].) Sempre ouvira falar que todos os soldados eram sifilíticos, daí provindo o terror de o oficial mencionar o nome de Gisela.
A vida militar não o lembrou apenas de D., mas também de seu pai, que esteve muito tempo no exército. A idéia de que seu pai era sifilítico não lhe era de todo estranha. Muitas vezes pensara nela. Contou-me algumas histórias da vida de divertimentos de seu pai, enquanto estava servindo. Com freqüência pensara que os distúrbios nervosos, dentre todos, talvez pudessem dever-se ao fato de seu pai ter sífilis.
A idéia do rato, no concernente a sua prima, era a seguinte: - Medo que ela tivesse sido contagiada por seu padrasto; por trás disso, de que a doença tivesse sido transmitida por seu próprio pai, e, mais atrás, o medo lógico e racional de que, sendo filha de um paralítico do corpo inteiro, ela própria fosse doente (ele conhecera essa correlação por muitos anos. A irrupção de sua doença após a queixa feita por seu tio [ver em [1]] pode ser, agora, compreendida de um modo diferente. O significado disso deve ter sido a realização de um desejo de que seu próprio pai também pudesse ser sifilítico, de modo que nada haveria com que reprovar sua prima, podendo, em última análise, casar-se com ela.
30 de nov. - Mais histórias sobre ratos; contudo, conforme admitiu no final, ele as havia coligido a fim de escapar a fantasias de transferência que afluíram nesse meio tempo, as quais, segundo encarava, expressavam remorso com relação ao encontro marcado para hoje.
Pós-escrito. Sua prima e seu tio X., de Nova Iorque, enquanto viajavam de trem, encontraram um rabo de rato numa salsicha, e ambos tiveram vômitos, horas e horas. (Estaria ele regozijando-se com malícia por esse fato?)
Novo material. Repulsivas histórias sobre ratos. Ele sabe que os ratos agem como portadores de muitas doenças contagiosas. Na Fugbachgasse tinha-se uma vista sobre um pátio que dava para a casa de máquinas das termas romanas. Viu que estavam apanhando ratos e ouviu dizer que os atiravam nas caldeiras de vapor. Lá também havia gatos em quantidade, fazendo um barulho tremendo com guinchos e miados; ele, certa vez, viu um operário que batia com um saco contra o chão, com alguma coisa dentro. A uma pergunta sua, disseram-lhe que era um gato, o qual, em seguida, foi atirado dentro da caldeira.
Seguiram-se outras histórias sobre crueldades, as quais finalmente se centraram em seu pai. A visão que teve do gato deu-lhe a idéia de que seu pai estava dentro do caso. Quando seu pai servia no exército, o castigo corporal ainda vigorava. Descreveu como ele, certa vez, uma única vez, em crise de mau humor, bateu num recruta com a coronha do seu mosquetão, e caíra prostrado. Seu pai gostava bastante de loteria. Um de seus camaradas do exército tinha o hábito de gastar nisso todo o seu dinheiro; certa ocasião, seu pai achou um pedaço de papel que esse homem havia jogado fora, no qual dois números estavam escritos. Ele apostou seu dinheiro nesses números e ganhou com ambos. Retirou os seus ganhos durante a marcha e correu para alcançar a coluna, com os florins tilintando dentro da sua cartucheira. Ironia cruel que o outro homem jamais ganhara coisa alguma! Numa ocasião seu pai dispunha de dez florins da caixa militar, para cobrir determinadas despesas. Perdeu parte deles num jogo de cartas com outros homens, deixou-se tentar para continuar jogando e os perdeu totalmente. Lamentou com um de seus companheiros que ele teria de se suicidar com um tiro. `Sem dúvida, então se mate’, disse o outro, `um homem que faz uma coisa dessas deveria dar um tiro na cabeça’; contudo, acabou emprestando-lhe o dinheiro. Terminado o serviço militar, seu pai procurou encontrar o homem, mas não conseguiu. (Será que ele lhe reembolsou o dinheiro?)
Sua mãe foi educada pelos Rubenskys como filha adotiva, mas era muito maltratada. Ele contou como um dos filhos era tão sensível, que cortava fora a cabeça de frangos a fim de se tornar um homem rijo. É óbvio que isso era apenas uma desculpa, e o irritou muitíssimo. - Uma imagem onírica de um rato enorme e gordo que tinha nome e se comportava como um animal doméstico. Isso, de imediato, recordou-lhe um dos dois ratos (foi essa a primeira vez que disse existirem somente dois) que, segundo a história do Capitão Novak, foram colocados no urinol. Ademais, os ratos foram os responsáveis por sua ida a Salzburg. Sua mãe referiu-se ao mesmo Rubensky sobre o modo como ele, certa vez, `preparou à moda judaica’ um gato, pondo-o no forno e, depois, esfolando-o. Isso o fez sentir-se tão mau, que seu cunhado o aconselhou amigavelmente a fazer alguma coisa pela sua saúde. Sua atenção fixa-se tanto nos ratos, que em toda parte ele os está encontrando. Na ocasião em que regressou das manobras, deparou como Dr. Springer acompanhado de um colega a quem apresentou como o Dr. Ratzenstein. A primeira representação a que assistiu foi o Meitersinger, quando ouviu o nome de `David’ ser repetidas vezes evocado. Havia, entre os de sua família, usado o motif de David como uma exclamação. Ao repetir a sua fórmula mágica `Gleijsamen’, ele agora acrescenta `sem ratos’, embora a imagine pronunciada sem um `t’ [ver em [1]]. Produziu esse material, além de outros mais, com fluência. As conexões são superficiais e outras mais profundas estão ocultas; evidentemente ele o preparara como uma confissão, a fim de encobrir mais alguma coisa. Parece que esse material contém a conexão entre dinheiro e crueldade, de um lado, com ratos, do outro, com seu pai; e deve apontar em direção do casamento de seu pai. Contou-me uma outra anedota. Não havia muitos anos, quando seu pai voltava de Gleichenberg, disse à sua mãe, depois de trinta e três anos de casados, que ele tinha visto uma quantidade tão incrível de viúvas, que teve de implorar-lhe que lhe garantisse que ela jamais tinha sido infiel a ele. Quando ela objetou, disse que só acreditaria nela caso ela jurasse pelas vidas de seus filhos; e depois de jurar, ele se tranqüilizou. Ele pensa muito em seu pai, em razão disso, como um sinal de sua sinceridade, tal como em sua confissão de haver maltratado o soldado, ou em seu deslize num jogo de baralhos. - Por trás disso existe um importante material. A história dos ratos vai-se tornando cada vez mais um ponto crítico.
8 de dez. - Muita mudança no decorrer de uma semana. Seus ânimos elevaram-se em virtude de seu encontro com a costureira, embora tenha terminado com uma ejaculação precoce. Logo após, ficou melancólico, e isso resultou em transferências no tratamento. Durante o seu encontro com a jovem, havia apenas leves indícios da sanção sobre ratos. Sentiu-se inclinado a se abster de usar os dedos que haviam tocado a jovem, ao tirar um cigarro da cigarreira que lhe dera sua prima; resistiu, contudo, a essa inclinação. Mais detalhes a respeito de seu pai, de sua rudeza. Sua mãe chamava-o de um `sujeito ordinário’ porque ele tinha o hábito de soltar gases abertamente.
Nosso objetivo da transferência em tratamento percorria muitos desvios. Descreveu uma tentação, de cuja significação parecia não estar ciente. Um parente de Rubensky oferecera instalar para ele um escritório nas vizinhanças do Mercado do Gado, logo após ele receber o grau de doutor - para o que, na época, faltavam apenas poucos meses - e conseguir, lá, clientes para ele. Tal se enquadrava no velho esquema de sua mãe, de ele se casar com uma das filhas de R., uma jovem encantadora, hoje com dezessete anos. Ele não tinha noção de que era para escapar a esse conflito que se refugiou na doença - uma fuga facilitada pelo problema infantil de sua escolha entre uma irmã mais velha e uma mais moça, e por sua regressão à história do casamento de seu pai. Era costume de seu pai fazer um relato pleno de humor do seu namoro, e sua mãe eventualmente fazia troça dele, contando que ele, tempos antes, fora pretendente da filha de um açougueiro. Parecia-lhe ser uma idéia intolerável que seu pai pudesse haver abandonado o seu amor a fim de assegurar o seu futuro mediante uma aliança com R. Cresceu nele uma grande irritação com relação a mim, expressa em insultos, que lhe era extremamente penoso proferir. Acusou-me de eu pôr os dedos no nariz, recusou-se a apertar minhas mãos, pensou que um porco asqueroso como eu precisava aprender boas maneiras, e considerou que o cartão-postal que eu lhe mandara, e que eu assinara `cordialmente’, era íntimo demais.
Ele lutava claramente contra as fantasias de ser tentado a casar com minha filha em vez de casar com sua prima, e contra insultos à minha mulher e minha filha. Uma de suas transferências era, francamente, que Frau Prof. F. lhe lamberia o cu / que ele mandasse Frau Prof. F. tomar no cu / - revolta contra uma família de maior trato. Em outra ocasião, viu minha filha com dois pedaços de esterco no lugar dos olhos. Isso significa que ele não se tinha apaixonado pelos olhos dela, mas sim pelo seu dinheiro. Emmy [a jovem com quem sua mãe desejava que ele se casasse] tinha uns olhos particularmente bonitos. Nesses últimos dias, enfrentou virilmente a lamentação de sua mãe, de ele haver gasto 30 florins para suas pequenas despesas, no mês passado, em vez de 16 florins.
O tema sobre os ratos careceu de algum elemento dirigido a sua mãe, evidentemente porque existe uma muito forte resistência com relação a ela. Igualando `Ratten‘ e `Raten‘, ele estava, entre outras coisas, zombando de seu pai. Seu pai certa vez, disse a seu amigo `Eu sou apenas um Laue‘, em lugar de dizer `Laie‘. Como qualquer outro sinal da falta de educação de seu pai, este a seguir o desconcertou enormemente. Seu pai fazia tentativas ocasionais para economizar, juntamente com os esforços para instituir um régime espartano; contudo, sempre os abandonava, passado um curto tempo. Sua mãe é que é a pessoa econômica, porém ela dá muito valor ao conforto em casa. A maneira como o paciente mantém secretamente a sua amiga é uma identificação com seu pai, que se comportava exatamente da mesma forma com relação ao primeiro inquilino deles, cujo aluguel ele costumava pagar, e com relação a outras pessoas também. Na verdade, ele era um homem bemautêntico, positivo, amável, com senso de humor; e o paciente normalmente apreciava plenamente essas qualidades. Não obstante, com a sua super-refinada atitude, sentia manifesta vergonha da natureza simples e soldadesca de seu pai.
9 de dez. - Alegre, apaixona-se pela jovem - loquaz - um sonho com um neologismo, plano do estado-maior do W L K (palavra polonesa). Devemos entrar nesse aspecto amanhã. Vielka [em polonês] = `velho’, L = Lorenz, G1 = abreviação de Gleijsamen [ver em [1]] = Gisela Lorenz.
10 de dez. - Ele me contou o sonho inteiro, mas não compreende nada do que sonhou; por outro lado, fez-me algumas associações com W L K. Não confirmada minha idéia de que significasse um W.C.; porém com W [`vay’] ele associou uma canção cantada por sua irmã `In meinem Hezen sitzt ein grosses Weh‘ (também pronuncia-se `vay’). Isso se lhe deparou, freqüentemente, como algo muito engraçado, e ele não podia deixar de imaginar um grande W.
Sua fórmula defensiva contra compulsões é, conta-me ele, um enfático `aber‘ [`mas’]. Recentemente (apenas desde o tratamento?) ele enfatizava a pronúncia `abér‘ [a tônica normal dessa palavra é `áber‘]. Disse haver-se explicado essa acentuação incorreta com o fato de ela servir para fortalecer o `e’ mudo, que não constituía uma proteção suficiente contra intrusões. Acabou de ocorrer-lhe que o `abér‘ talvez substituísse `Abwehr‘ [`defesa’] onde o W omitido se podia encontrar em W L K.
A sua fórmula `Gleijsamen’, na qual numa hora feliz, ele, como uma palavra mágica, fixou aquilo que doravante tinha de continuar imutável, permanecera, disse ele, válida durante bastante tempo. Ela, não obstante, ficou exposta ao inimigo, isto é, houve inversão ocorrendo o seu contrário; por essa razão é que ele se empenhou para abreviá-la mais ainda, e assim a substituíra - desconhecem-se os motivos - por um curto `Wie‘ [`como’, pronunciado como o inglês `vee’].

O K corresponde a `vielka‘ [pronuncia-se como o inglês `vee - ell -ka’] = `velho’. Também o recordou de sua ansiedade quando, na escola, a letra K [isto é, os meninos cujos nomes começavam com K] estava sendo examinada, por significar isso que o seu L estava ficando bem próximo. Corresponderia, por conseguinte, a um desejo de que o K seguisse ao L, de modo que o L já tivesse passado.
Grande redução nas transferências em tratamento, do paciente. Ele receia muito encontrar minha filha. De modo um tanto inesperado, contou-me que um de seus testículos era atrofiado, embora seu potencial seja muito bom. Em um sonho, ele se encontrou com um capitão que usava a insígnia de sua patente apenas do lado direito e uma das três estrelas estava dependurada. Ele apontou a analogia com a operação de sua prima [ver em [1]].
12 de dez. - Suas transferências `de coisas sujas’ continuaram, anunciando-se mais outras coisas. Acontece ele ser um renifleur. Em sua juventude, era capaz de reconhecer as pessoas pelo cheiro de suas roupas; podia distinguir odores familiares, e obtinha um positivo prazer a partir do cheiro do cabelo das mulheres. Posteriormente, parece que ele fez uma transferência da luta inconsciente que o fez cair doente, deslocando o seu amor pela prima para a costureira; e agora está fazendo essa última competir com minha filha, que figura como o partido rico e respeitável. Sua potência com a costureira é excelente. Hoje arriscou-se a atacar o assunto sobre sua mãe. Tinha uma recordação antiga dela, deitada no sofá; ela se ergueu, tirou alguma coisa amarela de debaixo do vestido e a colocou numa cadeira. No momento ele quis tocá-la; mas, tanto quanto o recordava, tratava-se de algo horrível. Depois, a coisa se transformou numa secreção, e isso acarretou uma transferência de todos os membros femininos de minha família asfixiando-se num mar de repulsiva secreção de todo tipo. Ele supunha que todas as mulheres tinham secreções repelentes e, depois, estava assombrado por saber que elas não existiam nas suas duas liaisons. Sua mãe sofria de uma infecção abdominal, e agora os seus genitais cheiram mal, o que o faz ficar muito irritado. Ela própria diz que ela cheira mal, a não ser que se banhe com freqüência; diz, porém, que ela não pode controlar a situação e isso muito o intimida.
Narrou-me duas fascinantes histórias de crianças. Uma tratava-se de uma menina de cinco ou seis anos, que tinha muita curiosidade sobre Papai Noel. Ela fingiu estar dormindo e viu seu pai e sua mãe enchendo os sapatos e meias de maçãs e pêras. De manhã cedo, ela disse a sua babá `Não existe Papai Noel. É o papai e a mamãe que trazem presentes. Agora não acredito em mais nada, nem mesmo na cegonha. É o papai e a mamãe que resolvem a coisa, também.’ A outra história versava sobre o seu sobrinho de sete anos. É um menino muito medroso e fica assustado com cachorros. Seu pai lhe disse: `O que você faria se dois cachorros passassem por você?’ `Eu não tenho medo de dois. Eles iam cheirar o traseiro um do outro por tanto tempo, que eu teria tempo de correr para longe.’
14 de dez. - Ele continua bem com a jovem, porque a sua naturalidade lhe agrada e ele tem muita potência com ela; entretanto, a partir de exemplos de uma compulsão pouco séria que ele trouxe à baila, ficou claro que existe uma cadeia hostil de sentimento contra sua mãe, ao qual ele reage com uma exagerada consideração por ela, e que deriva dos rigores da educação que ela recebeu, sobretudo com respeito à sujeira dele. Anedota sobre os arrotos de sua mãe; e ele tinha dito, aos doze anos de idade, que não podia comer por causa de seus pais.
16 de dez. - Enquanto estava com a costureira, pensou: `Para cada cópula, um rato para minha prima’. Isso mostra que os ratos são alguma coisa pela qual se pode pagar. A frase é produto de uma conciliação entre correntes de sentimentos amigáveis e hostis; porque (a) toda cópula desse tipo prepara o caminho para alguém com sua prima, e (b) toda cópula é feita em desafio a ela e para enfurecê-la.
A imagem é forjada de claras idéias conscientes, fantasias, delírios [ver em [1]], associações compulsivas e transferências.
Contou-me a respeito de uma `aterradora’ experiência relacionada com a história dos ratos. Numa época, antes de cair doente, estando visitando o túmulo de seu pai, viu um bicho parecido com um rato passando pelo túmulo. (Sem dúvida uma doninha, das tantas que vivem por lá.) Ele supôs - podia parecer bem provável que sim - que a criatura acabava de fazer um repasto de seu pai. Suas idéias em seu Ics. a respeito de sobrevivência após a morte são tão consistentemente materialistas como as dos antigos egípcios. Esse aspecto está vinculado à sua ilusão, após a conversa do Capitão N. a respeito dos ratos, de que via o chão se levantar à sua frente, como se houvesse um rato debaixo dele, o que ele tomou por um agouro. Ele não tinha suspeita alguma dessa conexão.
19 de dez. - Agora se explica a sua avareza. Ele, a partir de uma observação que sua mãe deixou escapar com respeito ao fato de que a relação dela com Rubensky era digna de alguma coisa a mais além de um dote, estava convencido de que seu pai se tinha casado com ela e abandonara o seu amor em favor de sua vantagem material. Isso, juntamente com sua recordação das dificuldades financeiras de seu pai durante o seu serviço militar, fê-lo detestar a pobreza que induz as pessoas a tais crimes. Desse modo, sua baixa opinião a respeito de sua mãe foi satisfeita. Por conseguinte, ele economizou a fim de não trair o seu amor. Por esse motivo, também, é que ele entrega todo o seu dinheiro a sua mãe, porque não quer ter nada que venha dela; pertence a ela e não há evocação de qualquer benefício a respeito dele.
Diz que tudo que é ruim, na sua natureza, ele o recebe de sua mãe. Seu avô materno era um bruto, que maltratava a esposa. Todos os seus irmãos e irmãs passaram, como ele, por um vasto processo de transformação, desde crianças maldosas até pessoas muito dignas. Já isso é pouco procedente com relação ao seu irmão, que parecia um parvenu.
21 de dez. - Tem-se identificado com sua mãe em seu comportamento e nas transferências em tratamento. Comportamento: - Tolas observações durante todo o dia, esforçando-se para dizer coisas desagradáveis a todas as suas irmãs, comentários críticos a respeito de sua tia e de sua prima. Transferências: - Teve a idéia de dizer que não me entendia, e teve o pensamento de que `20 kronen são suficientes para o Parch’. Confirmou minha construção dizendo que usava, de modo idêntico a sua mãe, as mesmas palavras a respeito da família de sua prima. Parece provável que ele também se está identificando com sua mãe nas críticas que ele faz a respeito de seu pai e, portanto, prossegue com as diferenças entre os seus pais, que tem dentro de si. Em um (antigo) sonho que me contou, fez um paralelo direto entre as suas razões de odiar o seu pai e as razões de sua mãe: - Seu pai tinha regressado. Ele não ficou surpreso com isso. (Força de seu desejo.) Ficou grandemente satisfeito. Sua mãe disse em tom de censura: `Friedrich, porque se passou tanto tempo depois que soubemos de você a última vez?’ Ele pensou que teriam, em última análise, de reduzir as despesas, de vez que então estaria morando na casa mais uma pessoa. Esse pensamento constituía vingança contra seu pai que, conforme lhe haviam contado, se desesperara com o seu nascimento, como sempre ficava com a vinda de um novo bebê. Havia algo mais por trás disso, ou seja, que seu pai gostava que lhe pedissem permissão, como se quisesse abusar de seu poder, embora talvez estivesse, de fato, apenas desfrutando o sentimento de que tudo provinha dele. A queixa de sua mãe remontou a uma de suas histórias, a de que, certa vez, encontrando-se ela no campo, ele escrevia tão poucas vezes, que ela voltou a Viena para ver o que se passava. Com outras palavras, uma queixa de não ser bem tratada.
23 de dez. - Muitíssimo aborrecido porque o Dr. Pr. caiu enfermo novamente. O caráter do Dr. Pr. é semelhante ao de seu pai - um homem distinto, malgrado sua rudeza. O paciente está passando pela mesma situação por que passou quando seu pai estava doente. Incidentalmente, a doença é a mesma - enfisema. Ademais, os seus remorsos estão em parte mesclados com sentimentos de vingança. Ele pode ver que isso se confirma, a partir de fantasias de que Pr. já está morto. A razão desses sentimentos pode estar no fato de ele ter sido censurado, no seio da família, por tão longo tempo, por não haver insistido com força suficiente em que seu pai se aposentasse do trabalho. A punição com ratos também se estende a Pr. Ocorreu-lhe que, poucos dias antes da morte de seu pai, Pr. disse que ele próprio estava doente e pretendia passar o caso para as mãos do Dr. Schmidt. Evidentemente porque era um caso irremediável, que o afetava fundamentalmente em virtude de sua amizade íntima. Naquela ocasião o paciente pensara `Os ratos estão abandonando o navio que naufraga’. Tinha a noção de que seu desejo era matar Pr. e de que podia conservá-lo vivo - uma idéia da sua onipotência. Pensou que um de seus desejos realmente havia mantido viva a sua prima, em duas ocasiões. Uma dessas foi no ano passado, quando ela sofria de insônia e ele não se deitou a noite inteira; e ela, naquela noite, realmente dormiu melhor pela primeira vez. A outra ocasião foi quando ela sofria de seus ataques; sempre que estava prestes a cair num estado de insensibilidade, ele era capaz de mantê-la acordada, dizendo alguma coisa que fosse do interesse dela. Ela reagiu, também, às suas observações mesmo encontrando-se nesse estado.
Qual a origem da sua idéia de uma sua onipotência? Acredito que a data dessa origem remonta à primeira morte ocorrida em sua família, a de Katherine - da qual ele tivera três lembranças [ver em [1]]. Ele corrigiu e ampliou a primeira delas. Ele a via sendo levada para a cama, não por seu pai, e antes que se soubesse que ela estava doente. Pois seu pai estava ralhando e ela era levada para longe da cama de seus pais. Por muito tempo ela esteve se queixando de sentir-se cansada, fato a que não se deu atenção. Contudo, certa vez quando o Dr. Pr. a examinava, ele empalideceu. Diagnosticou um carcinoma (?), do qual ela faleceu posteriormente. Enquanto eu discutia as razões possíveis de ele se sentir culpado pela morte da irmã, ele adotou um outro ponto de vista, também importante, porque aqui, aliás, ele não se tinha lembrado previamente de sua idéia de onipotência. Quando tinha vinte anos de idade, eles empregaram uma costureira, a quem ele fez, várias vezes, propostas amorosas, mas com quem realmente não se importava, pois ela fazia exigências e tinha excessivo desejo de ser amada. Ela se queixou de que as pessoas não gostavam dela; pediu que ele lhe garantisse que gostava dela, e desesperou-se quando ele a recusou cabalmente. Poucas semanas depois, ela se atirou da janela. Ele disse que ela não o teria feito se ele tivesse aderido à liaison. Por conseguinte, a onipotência de uma pessoa manifesta-se quando ela dá ou nega o amor de alguém, na medida em que a pessoa tem o poder de tornar alguém feliz.
No dia seguinte, ele ficou surpreso por não ter tido remorso após fazer essa descoberta; mas refletiu que este, de fato, já estava ali instalado. (Excelente!)
Propôs, a seguir, fazer um relato histórico de suas idéias obsessivas. A primeira idéia, teve-a em dezembro de 1902, quando de repente pensou que precisava prestar os seus exames em uma determinada época, janeiro de 1903, e que ele cumpriu. (Depois da morte da sua tia e de suas autocensuras em virtude das severas críticas de seu pai.) Ele entende perfeitamente esse fato como sendo uma tarefa adiada. Seu pai estivera sempre aborrecido com ele não ser laborioso. Conseqüentemente, era sua idéia que, estivesse vivo seu pai, ele estaria magoado com sua ociosidade; a mesma coisa ocorre agora como fato procedente. Indiquei-lhe que essa tentativa de negar a realidade da morte de seu pai é a base de toda a sua neurose. Em fevereiro de 1903, depois da morte de um tio para com quem ele era indiferente, houve um novo desencadeamento de autocensuras por haver dormido pela noite afora [a da morte de seu pai]. Desespero extremo, idéias de suicídio, horror com o pensamento de sua própria morte. O que significava morrer?, ele queria saber. Era como se o som da palavra devesse dizer-lhe o quê. Deve ser assustador não ver ou ouvir ou sentir mais nada! Deixou totalmente de observar essa sua conclusão equivocada e evadiu-se a esses pensamentos admitindo que é preciso existir um outro mundo, o próximo, e uma imortalidade. No verão do mesmo ano, 1903, quando atravessava de barco o Mondsee, teve a súbita idéia de pular dentro d’água. Voltava, com Julie, de uma visita paga ao Dr. E., por quem ela estava apaixonada. Enquanto pensava sobre o que ele faria por seu pai, começou com essa idéia hipotética, que lhe adveio: `se você tivesse de se atirar na água a fim de que nenhum dano sobreviesse a ele…’; esta imediatamente se acompanhou de uma ordem positiva [para a mesma finalidade]. Era, mesmo nas frases reais que continha, uma idéia análoga às suas reflexões, antes da morte de seu pai, quanto a saber se ele abdicaria de tudo para salvá-lo. Daí algum paralelo com sua prima, que pela segunda vez o tratara mal, naquele verão. Sua fúria contra ela fora impressionante; ele lembra, de repente, haver pensado que, estando ele sentado no divã, `ela é uma prostituta’, fato que lhe causou profundo horror. Já não mais duvida de que tinha de se penitenciar por tais sentimentos de raiva contra seu pai. Naquela ocasião seus receios já oscilavam entre seu pai e sua prima (`prostituta’ parece implicar uma comparação com sua mãe). A ordem de saltar para dentro d’água, portanto, só pode ter partido de sua prima - ele era seu amante frustrado.
27 de dez. - Começou fazendo uma correção. Foi em dezembro de 1902 quando contou a sua amiga as suas autocensuras. Prestou os exames em janeiro e, na ocasião, não deu uma data fixa, como havia pensado equivocadamente; isso não se passou antes de 1903, sendo julho o mês exato.
Na primavera [?1903] sentiu violentas autocensuras (por quê?). Um pormenor trouxe a resposta. De repente caiu de joelhos, evocou sentimentos piedosos e teve a resolução de acreditar no outro mundo e na imortalidade. Isso envolvia cristianismo e freqüência à igreja em Unterach [cf. em [1]], após haver chamado sua prima de prostituta. Seu pai jamais consentira ser batizado, contudo lamentava muito o fato de seus ancestrais não o haverem poupado desse desagradável negócio. Muitas vezes ele dissera ao paciente que não fazia nenhuma objeção se ele quisesse tornar-se cristão. Será, perguntei, que, talvez, uma jovem cristã houvesse aparecido precisamente como uma rival de sua prima? `Não.’ `Os Rubensky são judeus, não?’ `Sim, e professam o seu judaísmo.’ De fato, se ele se tornasse cristão significaria o fim de todo o esquema R. Repliquei: Assim, haver-se ajoelhado deve ter sido um ato dirigido contra o esquema R., e ele, portanto, deve ter sabido desse plano antes da cena da genuflexão. Não pensou senão em admitir que havia alguma coisa da qual não tinha uma explicação. Aquilo de que concludentemente se lembrava era da iniciação do esquema - ir com seu primo (e futuro cunhado) Bob St. visitar os R., mencionando-se o plano de que eles estavam estabelecidos nas proximidades do Mercado do Gado, St. como advogado e ele como seu escrevente. St. xingou-o por causa disso. No decorrer da conversa ela havia dito `Cuide bem de estar pronto para a ocasião’. É bem possível que sua mãe lhe tivesse contado a respeito do esquema, alguns meses antes.
Disse-me que na primavera de 1903 tinha sido relaxado nos estudos. Fez um horário, mas estudava apenas de noite, até meia-noite ou uma hora. Lia, então, horas a fio, mas não compreendia nada. A essa altura interpolou a recordação de que, em 1900, fizera o juramento de jamais se masturbar novamente - o único de que se recorda. Nessa ocasião, porém, costumava, após a leitura, iluminar bastante o hall e o banheiro, tirar a roupa e mirar-se diante do espelho. Tinha alguma preocupação com relação a saber se seu pênis era muito pequeno, e realizando esses atos conseguia a ereção a um certo grau, que lhe devolvia a segurança. Às vezes também colocava um espelho entre as pernas. Além disso, costumava então também ter a ilusão de que alguém batia à porta da rua. Achava que era seu pai tentando entrar no apartamento, e que, não estando aberta, ele veria que não era desejável e se retiraria. Pensava que ele vinha quase sempre e batia à porta. Continuou com esse ato, até que afinal ficou assustado com a natureza patológica dessa idéia, libertando-se dela mediante o pensamento: `se eu fizer isso, vai magoar meu pai’.
Tudo isso era algo desconexo e inintelígivel. É oportuno supormos que ele, por razões de superstição, aguardava uma visita de seu pai entre meia-noite e uma hora, e que, assim, procurou estudar à noite de modo que seu pai viesse a ter com ele enquanto estudava; mas também que, então - após um destacado intervalo de tempo e um   [ ] de incerteza sobre o tempo -, ele realizava aquilo que ele próprio encarava como um substituto para a masturbação, desafiando assim o seu pai. Confirmou o primeiro desses pontos e, no que concerne ao segundo, disse que sentia como que este estivesse relacionado com alguma obscura lembrança da infância, a qual, contudo, não emergiu.
Na noite anterior em que ele partiu para o campo, no início ou em meados de junho, ocorreu a cena de despedida com sua prima que viera para casa com X., na qual sentiu que fora repelido por ela. Nas primeiras semanas de sua estada em Unterach ele esquadrinhou as rachaduras na parede da cabina de banho, vendo através delas uma menina despida. Suportou as mais aflitivas autocensuras, curioso por saber como ela se sentiria se soubesse que estava sendo espiada.
Esse consecutivo relato de eventos acabou com qualquer referência a acontecimentos correntes.
28 de dez. - Ele estava com fome e foi alimentado.
Continuação de sua história. Compulsão em Unterach. De repente ocorreu-lhe que precisa ficar mais magro. Começou a levantar-se da mesa - naturalmente deixava a sobremesa - e correr para lá e para cá, no sol, até ficar pingando de suor. Fazia então uma pausa e, a seguir, voltava de novo a correr. Subia montanhas correndo também desse mesmo modo. À beira de um íngreme precipício teve a idéia de saltar por cima dele. É natural que isso poderia significar a sua morte. Passou para uma lembrança de seu serviço militar. Durante aquele tempo, ele não havia achado fácil escalar montanhas. Durante as manobras de inverno no Exelberg ele se atrasou, e tentou acelerar, imaginando que sua prima estava no alto da montanha esperando por ele. Isso, contudo, teve um resultado frustrado e ele continuou atrasando-se, até que se achou entre os homens que se haviam prostrado. Pensou que durante o seu serviço militar - no ano em que morreu seu pai - as suas primeiras obsessões eram todas hipotéticas: `Se você tivesse de cometer alguma insubordinação.’ Imaginou situações, como mensurar o amor que sentia por seu pai. Se estivesse marchando nas fileiras e visse seu pai cair diante de seus olhos, será que lhe sucederia subir correndo até ele, a fim de ajudá-lo? (Recordação de seu pai embolsando seus ganhos e correndo para alcançar) [ver em [1]]. A origem de sua fantasia estava em passar por sua casa, em marcha, vindo da caserna. Durante as primeiras semanas difíceis após a morte de seu pai, fora incapaz de ver o seu pessoal, pois, naquela ocasião, estava confinado à caserna por 3 semanas. Não se deu bem no exército. Era apático e ineficiente, e tinha um tenente que era um valentão e que lhes batia com a lâmina deitada da espada se eles deixavam de executar determinados movimentos. Recordação de que certa vez St. ficou tão nervoso a ponto de dizer `Podemos nos arranjar sem a espada, senhor’. O homem contraiu-se, mas logo veio ter com ele e disse: `Da próxima vez vou trazer um chicote de cocheiro’. O paciente teve de reprimir boa parte da raiva que sentiu com esse fato; teve algumas fantasias de desafiá-lo para um duelo, contudo abandonou a idéia. De uma outra forma estava contente porque seu pai não era mais vivo. Como um velho soldado, ele teria ficado muitíssimo aborrecido. Seu pai lhe havia fornecido uma apresentação. Quando o paciente lhe mostrou uma lista dos oficiais a quem estava subordinado, seu pai reconheceu um dos nomes - o filho de um oficial sob cujo comando ele próprio havia servido - e escreveu para ele. Seguiu-se uma história sobre o pai desse oficial. Certa ocasião, em Pressburg, não podendo o trem entrar na estação em virtude de uma forte nevasca, o pai do paciente armou de pás os judeus, embora lhes fosse, via de regra, proibido o acesso ao mercado. O oficial encarregado da intendência, na ocasião, chegou até ele, dizendo `Muito bem, meu velho camarada, foi um bom trabalho’, ao que seu pai retrucou `Seu vagabundo! Você está me chamando de “velho camarada” porque eu ajudei você, mas no passado você me tratou de modo muito diferente.’
(Existe, evidentemente, um esforço de agradar a seu pai com o ato de correr.)
Uma outra compulsão em Unterach, sob a influência do fato de ser repudiado por sua prima: compulsão de conversar. Via de regra, ele não conversa muito com sua mãe, porém acaba de forçar-se a conversar incessantemente com ela, enquanto passeavam juntos. Passava de um assunto para outro e falou uma porção de bobagens. Falava disso ou daquilo como se fosse algo de interesse geral; contudo, o exemplo que ele deu mostrou que a coisa partiu de sua mãe. - Uma obsessão vulgar de contar, isto é, contar até 40 ou 50 entre o trovão e o relâmpago [ver em [1]]. - Uma espécie de obsessão por proteger. Quando estava com ela num barco, sob um forte vento, ele precisou de cobrir a cabeça dela com o seu casquete. Era como se ele tivesse uma ordem de que nada deveria acontecer a ela. - Obsessão por compreender. Forçou-se a compreender cada sílaba que lhe diziam, como se estivesse a perder algum precioso tesouro. Conseqüentemente, ficava perguntando: `Que foi que você disse!’; e quando era repetido, parecia-lhe que a comunicação soava diferente na primeira vez que fora dita, e ele achara muita graça.
Esse material carece de ser relacionado com sua prima. Ela lhe havia explicado que aquilo que ele tinha encarado como um desencorajamento imposto a ele, fora, na realidade, uma tentativa, da parte dela, de protegê-lo do ato de ele parecer ridículo às vistas de X. Essa explicação deve ter alterado fundamentalmente a situação. A obsessão de proteger evidentemente expressava remorso e penitência. A obsessão por compreender também regrediu à mesma situação; por que foram essas palavras dela que tinham sido tão preciosas para ele. Realmente, ele não tivera essa última obsessão antes da chegada de sua prima. É fácil compreender o modo como ela se tornou generalizada. As outras formas de obsessão tinham estado presentes antes do éclaircissement com sua prima, conforme ele se recorda. Sua ansiedade de contar durante as tempestades com trovoadas tinha a natureza de um oráculo e aponta em direção a um medo da morte - o número de anos que ele iria viver. Aliás, correr no sol encerrava algo de suicida, em virtude de seu infeliz amor. Ele confirmou tudo isso.
Antes de deixar Unterach, contou a seu amigo Y. que tinha então, uma sensação estranhamente definida de que ele não regressaria a Viena. Desde a sua infância fizera-se íntimo de claras idéias de suicídio. Por exemplo, quando vinha para casa com notas baixas em seu boletim escolar, que ele sabia que iria desgostar seu pai. Entretanto, certa vez, aos dezoito anos de idade, a irmã de sua mãe os visitava. O filho dela havia-se suicidado com um tiro, dezoito meses antes, em virtude de um infeliz caso amoroso, conforme se dizia; e o paciente achou que era ainda por causa de Hilde, por quem o jovem estivera muito apaixonado em certa época, que ele se suicidara. Essa tia parecia tão infeliz e desanimada, que ele jurou a si próprio que, por bem de sua mãe, ele jamais se mataria, não importa o que lhe acontecesse, mesmo se estivesse desiludido de amor. Sua irmã Constanze disse-lhe, depois de ele haver regressado da corrida: `Paul, você vai ver, um dia desses você vai ter um ataque.’
Se é que ele tinha impulsos suicidas antes do éclaircissement, estes só podem ter sido autopunições por haver desejado, em sua raiva, que sua prima morresse. Dei-lhe para ler Joie de vivre, de Zola.
Ele continuou e me disse que no dia em que sua prima partiu de U. ele encontrou uma pedra na estrada e teve a fantasia de que a carruagem dela poderia bater na pedra, e ela, com isso, poderia sofrer alguma conseqüência séria. Portanto, ele a retirou do caminho, mas vinte minutos depois imaginou que isso era absurdo e voltou, a fim de recolocar a pedra em sua posição anterior. Assim temos aqui novamente um impulso hostil voltado contra sua prima, paralelamente a um impulso protetor.
2 de dez. [? jan.]. - Interrupção devida à doença e morte do Dr. Pr. Ele o tratou como se fosse seu pai, chegando a ter relações pessoais com ele, nas quais todas as espécies de elementos hostis vieram à tona. Desenhos com relação a ratos, derivados do fato de que ele era o médico da família deles e recebia dinheiro pago por eles. `Tantos kreuzers, tantos ratos’, dizia para si, enquanto punha dinheiro no prato de coleta no funeral. Identificando-se com sua mãe, ele até mesmo achava razões para um ódio pessoal contra ele; pois ela o havia censurado por não haver persuadido seu pai a aposentar-se dos negócios. No caminho para o cemitério, ele mais uma vez se viu sorrindo de um modo estranho, que sempre o perturbava quando participava de enterros. Mencionou também uma fantasia que consistia em o Dr. Pr. investir sexualmente sobre sua irmã Julie. (Isso provavelmente era inveja pelos exames médicos.) Passou para uma lembrança, de que seu pai deve ter cometido algum ato com relação a ela, quando ela tinha dez anos de idade, o qual ela não deveria ter praticado. Ouviu gritos que provinham da sala, então seu pai saiu e disse: `Essa menina tem uma bunda que nem pedra.’ Fato bastante estranho, sua crença de que ele realmente nutria sentimentos de raiva contra seu pai não fez progresso algum, apesar de ele verificar que existia uma razão lógica qualquer para supor que possuía esses sentimentos.
Em conexão com esse fato, embora não se saiba em que ponto não esteja claro, existia uma fantasia de transferência. Entre duas mulheres - minha esposa e minha mãe - foi estirado um arenque, desde o ânus de uma até o ânus da outra. Uma menina cortava-o em dois, e depois de cortado os dois pedaços caíram (como se tivessem sido descascados). Tudo quando foi capaz e dizer, a princípio, foi que detestava grandemente arenques; há pouco [cf. em [1]], quando se alimentou, haviam-lhe dado um arenque e ele o deixou intocado. A menina tratava-se de alguém que ele vira nas escadas e que ele tomava por minha filha de doze anos.
2 de jan. [1908]. - (Expressão indisfarçada.) Ele estava surpreso por ter ficado tão zangado hoje de manhã, quando Constanze o convidara para ir ao jogo com ela. Ele logo desejou os ratos para ela e então começou a ter dúvidas com respeito a saber se ele iria ou não, e qual das duas decisões iria dar motivo para uma compulsão. O convite dela impediria um encontro com a costureira e uma visita a fazer a sua prima que está doente (essas foram suas próprias palavras). Sua depressão, hoje, sem dúvida se deve à doença de sua prima.
Além disso, aparentemente tinha ele apenas banalidades para relatar, e eu era capaz de lhe dizer bastante coisas, hoje. Enquanto desejava os ratos para Constanze, sentiu que um rato lhe roía o ânus e teve uma imagem visual do fato. Estabeleci uma conexão que lança nova luz a respeito dos ratos. Em última análise, ele tivera vermes. Que foi que lhe deram a fim de combatê-los? `Comprimidos.’ Enemas, também não? Achou que se lembrava de haver, com certeza, recebido enemas também. Assim sendo, sem dúvida ele deve ter-se oposto energicamente contra eles, de vez que por trás deles existe um prazer reprimido. Também concordou com isso. Antes disso ele deve ter sentido, por algum tempo, comichões em seu ânus. Eu lhe disse que a história acerca do arenque me lembrava muito dos enemas. (Um pouquinho antes ele havia usado a frase `wächst ihm zum Hals heraus‘. [`Ele estava chateado com isso.’ Literalmente: `a coisa foi crescendo pela sua garganta’.]) Ele não tivera outros vermes além desses - solitárias - pelos quais as pessoas lhe dão arenques, ou não tinha ouvido falar disso, pelo menos? Ele não pensava assim, mas continuou com a idéia dos vermes. (Quando estava em Munique, encontrou uma grande lombriga /round-worm/ em suas fezes, depois de ter tido um sonho em que estava de pé num trampolim que girava com ele em círculo. Isso correspondia aos movimentos do verme. Tinha um apelo irresistível para defecar imediatamente após despertar.) Certa vez, aos dez anos, viu seu primo, ainda menino, defecar, e este lhe mostrou um verme grande que estava em suas fezes; ele ficou muitíssimo enojado. A isso associou aquilo que descreveu como o maior susto de sua vida. Tinha ele um pouco menos de seis anos de idade, sua mãe tinha um passarinho empalhado que fazia parte de um chapéu, que ele pediu emprestado para brincar. Quando corria com ele nas mãos, as asas mexeram-se. Ficou horrorizado, com o passarinho haver revivido, e o atirou no chão. Imaginei a conexão com a morte de sua irmã - certamente essa cena ocorreu mais tarde - e mostrei como o fato de ele haver pensado nisso (acerca do passarinho) facilitou sua crença, mais tarde, na ressurreição de seu pai.
Como não reagiu a isso, dei-lhe uma outra interpretação, ou seja, a de uma ereção causada pela ação de suas mãos. Tracei uma correlação com a morte deduzindo-a do fato de ele haver sido ameaçado com a morte num período pré-histórico, caso ele se tocasse e provocasse uma ereção de seu pênis; e sugeri que ele atribuía a morte de sua irmã à masturbação que ele praticava. Penetrou no assunto até o ponto de se admirar com jamais haver conseguido masturbar-se na puberdade, malgrado ter ele sido incomodado com ereções tão constantes como essas, mesmo quando criança. Descreveu uma cena na qual realmente mostrou uma ereção à sua mãe. Recapitulou sua sexualidade, ela consistia no fato de ele haver-se contentado com simplesmente olhar para [Fräulein] Peter e para outras mulheres. Sempre que pensava numa mulher atraente, sem roupas, ele tinha uma ereção. Uma nítida recordação de estar na piscina de mulheres e de ver duas meninas de doze e treze anos, cujas coxas lhe agradavam tanto, que ele teve um desejo definido de ter uma irmã com umas coxas tão bonitas como essas. Seguiu-se, então, um período homossexual com amigos masculinos; contudo, nunca houve contato mútuo, apenas olhar e um prazer enorme que extraía disso. O olhar substituiu, nele, o tocar. Lembrei-lhe as cenas em frente do espelho, depois de ele haver estudado à noite [ver em [1]], nas quais, conforme a interpretação, ele se masturbara em desafio a seu pai, após estudar a fim de agradá-lo - exatamente da mesma forma que o seu `Deus o proteja’ se acompanhava de um `não’. Deixamos a coisa nesse ponto.

Continuando, contou-me o sonho com o verme, que tivera em Munique, e então me deu algumas informações a respeito de sua rápida defecação pela manhã, relacionada com sua fantasia de transferência sobre o arenque. Como associação à menina que realizou a difícil tarefa [de cortar em dois o arenque] com `suave virtuosidade’, ele pensou em Mizzi Q., uma encantadora menina que tinha oito anos quando ele conheceu boa parte de sua família, e antes que ele próprio obtivesse seu grau de doutor. Ele tomava o trem das 6 da manhã para Salzburg. Estava muito irritadiço porque sabia que logo iria querer defecar; e quando, com efeito, sentiu muita vontade, pediu desculpas e, na estação, saiu. Perdeu o trem, e Frau Q. apanhou-o no momento em que ele ajustava as suas roupas. Todo o resto do dia ele se sentiu envergonhado diante dela. Nesse ponto, pensou num touro, e então interrompeu. Passou a fazer uma associação ostensivamente irrelevante. Numa conferência proferida por Schweninger e Harden, ele encontrou o Professor Jodl, a quem muito admirava naquele tempo, e de fato trocou com ele algumas palavras. Mas Jodl representa touro, como ele sabe muito bem. Schönthan escrevera um artigo por aquela época, descrevendo um sonho no qual ele era Schweninger e Harden agrupados num só, sendo pois capaz de responder a todas as perguntas que se lhe faziam, até que alguém lhe perguntou por que os peixes não têm cabelo. Ele suou de medo, até que lhe acudiu uma resposta, e disse que naturalmente se sabia bem com que grande intensidade as escamas interferem no crescimento de cabelos, sendo essa a razão por que os peixes não podiam tê-los. Foi isso que determinou o aparecimento do arenque na fantasia de transferência. Certa vez, quando me contara que sua jovem se havia deitado de bruços e os cabelos do seu genital estavam visíveis por detrás, eu lhe disse que era uma pena que hoje em dia as mulheres não tenham cuidado com eles e falavam deles como algo sem graça: por esse motivo ele cuidou de que as duas mulheres [na fantasia] estivessem sem cabelo.
Minha mãe parece ter representado a avó dele, que ele mesmo jamais conhecera; ele, contudo, pensava era na avó de sua prima. Uma casa administrada por duas mulheres. Quando eu lhe trouxe alguma coisa para comer, imediatamente pensou que fora preparada por duas mulheres [ver em [1]].

3 de jan. - O rato, sendo um verme, é também um pênis. Resolvi contar-lhe isto. Assim sendo, a sua fórmula é simplesmente manifestação de um ímpeto libidinal em direção à relação sexual - um ímpeto caracterizado tanto pela raiva como pelo desejo, e expresso em termos arcaicos (retornando à teoria sexual da infância sobre a relação através do ânus). Esse ímpeto libidinal é tão bilateral como a maldição dos eslavos meridionais sobre foder pelo cu [ver em [1]]. Antes disso ele me disse, bastante animado, a solução da última fantasia. Era a minha ciência a criança que resolveu o problema com a alegre superioridade de uma `virtuosidade sorridente’ e retirou os disfarces de suas idéias, liberando as duas mulheres dos desejos de arenque.
Após contar-lhe que o rato era um pênis, por intermédio de vermes (ponto em que ele logo interpolou `um pequeno pênis’) - rabo de rato - rato, ele apresentou um fluxo inteiro de associações, nem todas fazendo parte do contexto, sendo que a maioria delas provinha do lado da estrutura pleno de desejo. Produziu alguma coisa com referência à pré-história da idéia acerca de ratos, a qual ele sempre havia considerado como relacionada com esta. Alguns meses antes de se formar a idéia sobre ratos, ele encontrou uma mulher, na rua, a quem logo reconheceu como uma prostituta ou, de qualquer modo, como alguém que teve relações sexuais com o homem que estava com ela. Ela sorriu de uma maneira peculiar e ele teve a estranha idéia de que sua prima estava dentro do corpo dela e de que os genitais dela estavam colocados atrás dos genitais da mulher, de tal forma que, daí, ela extraía algum proveito, um pouco, sempre que a mulher copulava. Sua prima, dentro da mulher, foi-se enchendo, crescendo, até que ela a explodiu. Naturalmente isso apenas pode significar que a mulher era a mãe dela, a tia Laura do paciente. Desses pensamentos, que faziam dela uma pessoa não muito melhor do que uma prostituta, ele, afinal, passou para o irmão dela, seu tio Alfred, que a insultou abertamente dizendo `Você empoa o rosto como uma chonte‘. Esse tio morreu em terrível sofrimento. Segundo a sua inibição ele se assustava com a ameaça de que seria punido da mesma maneira por causa desses seus pensamentos. Seguiram-se diversas idéias de haver realmente desejado que sua prima tivesse relações sexuais; isto fora antes da teoria dos ratos com a sua forma ocasional de ter de atacá-la com ratos. Ademais, também determinado número de conexões com dinheiro, e a idéia de que sempre fora seu ideal estar em situação de uma disposição sexual mesmo imediatamente após haver copulado. Porventura não estava ele pensando numa transposição para o próximo mundo? Dois anos após a morte de seu pai, sua mãe lhe contou que ela jurara, junto ao túmulo de seu pai, que ela, em futuro imediato, iria recolocar, economizando, o capital que fora gasto. Ele não acreditava que ela tivesse feito o juramento contudo era esse o motivo principal de ele próprio economizar. Portanto, jurara (em sua maneira habitual) que não gastaria mais de 50 florins por mês, em Salzburg. Mais tarde, tornou insegura a inclusão das palavras `em Salzburg’, de modo que jamais viesse a ser capaz de gastar mais, e jamais ser capaz de se casar com sua prima. (Como a fantasia do arenque, isto poderia reportar-se, por via de tia Laura, à corrente hostil de sentimentos voltada para sua prima.) Teve, contudo, uma outra associação, segundo a qual ele não precisava casar com sua prima caso ela apenas se oferecesse a ele sem casamento, e em troca, opondo-se a isto, a objeção de que, assim sendo, ele teria de pagar com florins por toda cópula, como fazia com a prostituta. Voltou, pois, ao seu delírio de `tantos florins, tantos ratos’, ou seja: `tantos florins, tantos rabos (cópulas’).
Naturalmente toda a fantasia sobre prostituta retrocede até sua mãe - as sugestões feitas, quando ele tinha doze anos, por seu primo que, com malícia, lhe disse que a mãe dele era uma prostituta, e fazia sinais como se fosse uma [ver em [1]]. Os cabelos de sua mãe são agora muito finos, e enquanto ela os penteia ele costuma puxá-los e chamá-los de rabos de rato. - Quando era criança, ocorreu sua mãe, estando certa vez na cama, mexer-se descuidada e lhe mostrar o traseiro; e ele imaginou que o casamento consistia em as pessoas mostrarem umas às outras as suas nádegas. Durante as brincadeiras homossexuais com seu irmão, ficou certa vez horrorizado quando, pulando juntos na cama, o pênis de seu irmão ficou em contato com seu ânus.
4 de jan. - Animado. Numerosas outras associações, transferências etc., as quais não interpretamos logo. Em relação com a criança (minha ciência) que esclareceu a difamação com o arenque, ele teve uma fantasia de beijá-lo, e, depois, de seu pai despedaçar uma vidraça. Mantendo-se nessa idéia, contou-me uma história que forneceu uma razão para o seu ressentimento contra seu pai. Quando matou a sua primeira aula de Escritura, na escola secundária, e desajeitadamente negou esse fato, seu pai ficou muito irritado, e quando o paciente se queixou de Hans haver batido nele, disse seu pai `Está muito bem; dê um chute nele’. Outro caso de chutes, a respeito do Dr. Pr. O cunhado do paciente, Bob St., hesitou por muito tempo entre Julie e a filha do Dr. Pr., cujo nome de casada é, hoje, Z. Quando foi preciso tomar uma decisão, ele foi chamado a uma reunião em família e ele aconselhou que a jovem, que o amava, iria fazer-lhe a pergunta direta, quanto a saber se era sim ou não. O Dr. Pr. disse [a ela]: `Muito bem, se você o ama, está tudo bem. Mas se hoje à noite’ (depois do encontro com ele) `você puder me mostrar a marca do traseiro dele na sola do seu sapato, eu lhe darei um abraço bem apertado.’ Ele não gostava do outro, contudo. De repente ocorreu ao paciente que essa história de casamento estava intimamente ligada com a sua própria tentação de Rub. A esposa de Pr. era uma Rubensky de nascimento, e se Bob se tivesse casado com sua filha ele teria sido o único candidato ao sustento da família Rubensky. Dando posseguimento ao assunto sobre o seu cunhado Bob, ele [o paciente] disse que [Bob] tinha muito ciúme dele. Ontem aconteceram cenas com sua irmã, nas quais ele dissera isso abertamente. Os próprios criados disseram que ela o amava e beijava-o [o paciente] como a um amante, não como um irmão. Ele próprio, após ter estado por um momento no quarto contíguo com a sua irmã, disse ao seu cunhado: `Se Julie tiver uma criança dentro de 9 meses, você não precisa achar que sou o pai dela; sou inocente.’ Ele já tinha pensado na necessidade de se comportar realmente mal, de modo que sua irmã não teria motivo para preferir a ele, fazendo uma escolha entre marido e irmão.
Antes disso, eu lhe havia contado, de feição a esclarecer uma transferência, que ele desempenhava o papel de um homem mau com relação a mim - quer dizer, o papel de seu cunhado. Eu lhe disse que isso significava ele lamentar não ter Julie por sua esposa. Essa transferência foi seu derradeiro delírio com respeito a se comportar mal, e ele o revelou de maneira muito confusa. Nessa transferência pensou que eu tirara algum proveito da refeição que lhe dera [ver em [1]]; isso porque ele tinha gasto tempo comendo e o tratamento assim iria durar mais tempo. Ao me entregar o pagamento pelas consultas, ocorreu-lhe a idéia de que também teria de me pagar pela refeição, ou seja umas 70 kronen. Isso derivava de uma farsa num music-hall de Budapest, na qual um frágil noivo oferecia a um garçom 70 kronen para ele realizar, em seu lugar, a primeira cópula com a noiva.

Havia sinais de que ele receava que os comentários feitos por seu amigo Springer a respeito do tratamento pudessem torná-lo antagônico com relação a este. Ele disse que toda vez que eu louvava alguma de suas idéias ele sempre ficava muito contente; mas que uma outra voz passava a dizer `Eu não ligo a mínima pelo elogio’, ou então, mais indisfarçadamente: `Estou cagando para isso’.
O significado sexual de ratos não veio à baila, hoje. Sua hostilidade era, de longe, mais evidente, como se ele tivesse uma má consciência a meu respeito. Os pêlos púbicos de sua jovem mulher recordavam-no da pele de um camundongo, e esse camundongo lhe parecia ter algo a ver com ratos. Não entendia que esta é a significação do nome carinhoso `Mausi‘, que ele próprio emprega. Aos quatorze anos, um primo depravado mostrou seu pênis a ele e a seu irmão, e dissera `O meu mora num bosque’ [``Meiner hauset in einen Vorwald‘], mas achou que ele estava dizendo `camundoguinho’*[Mausel].
6 e 7 de jan. - Sorria travesso, divertido, como se estivesse ocultando alguma coisa.
Um sonho e algumas miudezas. Sonhou que foi ao dentista para extrair um dente cariado. Extraiu um, mas não era o dente certo, e sim um outro, próximo, que só estava um pouquinho ruim. Quando o dente saiu, ele ficou admirado com seu tamanho. (Dois adendos depois.)
Tinha um dente cariado; não doía, contudo, às vezes ficava apenas um pouco sensível. Foi ao dentista, certa vez, para que o obturasse. Mas o dentista disse não haver outra coisa a fazer senão extraí-lo. De hábito ele não era medroso, mas se recolhia diante da idéia de que, de um modo ou outro, a sua dor iria prejudicar sua prima; então rejeitou que o extraíssem. Sem dúvida, acrescentou, tivera leves sensações no dente, que acarretaram o sonho.
Todavia, disse eu, os sonhos podem desprezar sensações mais intensas do que estas, e até mesmo uma dor real. Conhecia ele o significado dos sonhos com dente? Lembrava-se vagamente de que tinha algo a ver com morte de parentes. `Sim, em certo sentido. Os sonhos com dente encerram uma transposição de uma parte inferior a uma parte superior do corpo.’ `Como é?’ `O uso lingüístico iguala o rosto aos genitais.’ `Contudo ali embaixo não existem dentes.’ Eu o fiz ver que era precisamente a razão por que (e isso eu lhe disse também) arrancar um galho de uma árvore tem o mesmo significado. Ele disse que conhecia a expressão `humilhar alguém’*. Porém, objetou, ele próprio não extraiu o dente, mas foi outro alguém que o fizera. Admitiu que com a costureira sentiu a tentação de fazê-la segurar seu pênis e soube como levá-lo a cabo. Quando lhe perguntei se ele já se sentia aborrecido com ela, retrucou `Sim’, com espanto. Confessou que sentia o receio de ela o arruinar financeiramente e que lhe estava dando aquilo que de direito era devido à dama de seu amor. Revelou-se que ele se comportara com pouquíssima cautela em matéria de seu dinheiro. Não vinha fazendo contas, de modo que não sabia quanto por mês ela estava custando a ele; também emprestara 100 florins ao seu amigo. Admitiu que eu o detivera no meio do caminho, para fazê-lo desgostar-se de sua liaison e retomar a abstinência. Eu disse que achava ser isto suscetível de outras interpretações, mas não lhe diria quais. Qual podia ser o significado de não ter sido o dente certo?
7 de jan. - Ele próprio tinha a sensação de que sua doença dissimulada ocultava algo por trás de si. Novamente, tinha sido amável com a costureira. Sua segunda cópula não logrou produzir ejaculações; foi dominado pelo terror de que iria urinar em lugar de ejacular. Quando criança, no quinto ano da escola primária, um de seus colegas lhe contou que a reprodução entre os homens se efetuava `mijando’ dentro da mulher. Ele havia esquecido o seu preventivo para a cópula. Busca claramente meios de estragar o seu caso (ter sentimentos desconfortantes?), ou seja, mediante coitus interruptus - impotência.
Ontem apresentou um adendo ao sonho. O dente não se parecia, em absoluto, com um dente, mas sim com um bulbo de tulipa [`Zwiebel‘], ao qual forneceu a associação de rodelas de cebola [também `Zwiebel‘]. Não aceitou as novas associações de `orquídeas’ - o seu criptorquismo [testículos não afundados, cf. em [1]] - operação de sua prima [cf. em [2]]. Em relação com a operação, contou-me que, naquela época, estava fora de si, movido por ciúme. Quando estava com ela no sanatório (em 1899), um jovem doutor a visitou, durante a sua ronda, e colocou sua mão na paciente, por debaixo do lençol. Ele não sabia se esse ato era algo correto, que se fazia. Quando soube como ela fora corajosa durante a operação, ele teve a tola idéia de que fora assim porque ela adorava mostrar a beleza de seu corpo aos médicos. Ele estava espantado por eu ter considerado essa idéia tão tola.
Ouvira falar dessa beleza, ao apaixonar-se por ela em 1898, através de sua irmã Hilde. Esse fato causava-lhe ainda mais impressão, de vez que a própria Hilde tinha um corpo muito bonito. Essa pode ter sido a origem de seu amor. Sua prima compreendeu perfeitamente bem sobre o que eles conversavam e ficou ruborizada. A costureira T., que se suicidou, depois, disse saber que ele considerava sua prima, oficialmente, como a mais linda das mulheres, embora na realidade ele soubesse muito bem que havia outras, mais bonitas.
Sim, o dente era um pênis, ele compreendeu. Então havia mais outro adendo: o dente tinha pingado. - Está bem, mas qual era o significado de o dentista haver extraído o seu `dente’? Só com dificuldade é que ele poderia ser levado a verificar ter sido uma operação para extrair a sua cauda. Foi a mesma coisa que ocorreu com o outro fato óbvio - de que o pênis realmente grande só podia ser o de seu pai; afinal aceitou esse fato como um tu quoque e como uma vingança contra seu pai. Os sonhos têm grande dificuldade de revelar tais lembranças desagradáveis.
20 de jan. - Longa interrupção. Ótima disposição. Boa quantidade de material. Progressos. Nenhuma solução. Uma explicação casual mostrou que correr pelo recinto de modo a evitar que fique gordo [`dick‘] relacionava-se com o nome de seu primo americano Dick (apelido de Richard) - Passwort - a quem ele odiava [ver em [1]]. Contudo essa idéia partiu de mim e ele não a aceitou. Cinco sonhos, hoje, quatro dos quais se referiam ao exército. O primeiro destes revelou uma raiva contida contra oficiais e seu autocontrole de não desafiar um deles por bater no traseiro do imundo garçom Adolph. (Esse Adolph era ele próprio.) Isso levou até a cena com os ratos por via do pince-nez (pinças [`Kneifer‘]). Esse fato abordou uma experiência em seu primeiro ano na universidade. Um amigo desconfiou dele, de ele `morrer de medo’ [`Kneifen‘], porque havia deixado que um colega de escola o golpeasse no ouvido, desafiando este a um duelo, a um conselho jocoso de Springer, e nada então fizera a seguir. Havia uma zanga suprimida contra seu amigo Springer, cuja autoridade se origina pois, desse fato, e contra um outro homem que o traiu e a quem, em troca, ele ajudara posteriormente à custa de sacrifícios. Assim encontramos uma supressão sempre crescente do instinto de raiva acompanhada por um retorno do instinto erógeno pela sujeira.
[Aqui se interrompe o manuscrito.]














APÊNDICE: ALGUNS ESCRITOS DE FREUD QUE TRATAM DA ANSIEDADE E DAS FOBIAS EM CRIANÇAS E DA NEUROSE OBSESSIVA


Os dois tópicos principais dos Casos Clínicos neste volume foram, naturalmente, abordados repetidamente por Freud. As relações que se seguem, contudo, incluem algumas das principais passagens nas quais eles foram discutidos mais especificamente. A data do início de cada item é a mesma do ano durante o qual o trabalho em questão provavelmente foi escrito. A data no final é a da publicação; e, sob essa data, encontram-se dados particulares mais completos sobre o trabalho na bibliografia que se segue.
(A) ANSIEDADE E FOBIAS EM CRIANÇAS
1909   `Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos.’ (1909b.)
1913   Totem e Tabu (Ensaio IV, Seção 3). (1912-13.)
1914   `Sobre o Caso de uma Neurose Infantil.’ (1918b.)
1917   Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Conferências XXV). (1916-17.)
1926   Inibições, Sintomas e Ansiedade (Capítulos IV, VII e VIII). (1926d.)
(B) NEUROSE OBSESSIVA
1894   `As Neuropsicoses de Defesa’ (Seção II). (1894a.)
1895   `Obsessões e Fobias.’ (1895c.)
1895   Rascunho `K’ (Correspondência com Fliess). (1950a.)
1896   `Novas Observações sobre as Neuropsicoses de Defesa’ (Seção II). (1896b.)
1907   `Atos Obsessivos e Práticas Religiosas.’ (1907b.)
1908   `Caráter e Erotismo Anal.’ (1908b.)
1909   `Observações sobre um Caso de Neurose Obsessiva.’ (1909d.)
1912   Totem e Tabu (Ensaio II, Seções 2 e 3 (c), e Ensaio III, Seções 3 e 4). (1912-13.)
1913   `Predisposição à Neurose Obsessiva.’ (1913i.)
1914   `Sobre o Caso de uma Neurose Infantil’ (Seção VI). (1918b.)
1916   `Um Paralelo Mitológico com uma Obsessão Visual.’ (1916b.)
1917   Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Conferência XVII) (1916-17.)
1917   `Transformações do Instinto conforme Exemplificado no Erotismo Anal.’ (1917c.)

1926   Inibições, Sintomas e Ansiedade (Capítulos V e VI). (1926d.)f